“Água, malte, lúpulo e nada mais!” Um dos maiores slogans recentes no marketing de cervejas chegou para se diferenciar das fórmulas misturadas e equivocadas produzidas no Brasil.
O Brasil é líder no consumo de cerveja no mundo, com cerca de 68% da sua população acima de 18 anos participando para colocá-lo nessa posição. Atualmente, o consumo per capita brasileiro de cerveja aumentou de 57 litros por ano, em 2008, para 66,9 litros por ano em 2014 (CERVBRASIL, 2015).
No entanto, até a chegada da Heineken, autora da propaganda citada, a qualidade desse produto era, no mínimo, questionável. Isso porque a legislação brasileira permite que até 45% dos cereais usados na produção nacional de cervejas possam ser do tipo não-maltados, incluindo nesse quesito principalmente arroz e milho. Cada empresa define a proporção de malte e adjunto em seus produtos, conforme lhe convém, seguindo uma tendência mundial de aumento de adjuntos por parte das cervejarias.
A presença desses cerais não-maltados reduz a qualidade da cerveja, assim como seu custo de produção e preço de prateleira, porém exclui esses produtos do padrão internacional. Lembrando que essa “alteração” é autorizada em lei com o Decreto n˚ 6.871 de 2009, que dispõe as normas gerais sobre registro, padronização, classificação, inspeção, fiscalização e controle da produção e comércio de bebidas no país e estabelece que parte do malte de cevada poderá ser substituída por adjuntos (cevada, arroz, trigo, centeio, milho, aveia e sorgo, integrais, em flocos ou a sua parte amilácea) e por carboidratos (açúcar) de origem vegetal.
Por isso, a partir da entrada de cervejas da marca Heineken no mercado brasileiro a produção das cervejas chamadas Puro Malte aumenta cada vez mais. Esse aumento levou os pesquisadores a desenvolverem trabalhos científicos que analisaram diversas marcas disponíveis em mercados para confirmar a sua pureza.
O processo se baseia basicamente no estudo dos isótopos de carbono (12C e 13C) para identificar quais tipos de grãos foram utilizados na produção.
Isótopos são elementos da tabela periódica que possuem o mesmo número de prótons, mas podem diferenciar em números de nêutrons ou elétrons. Com isso a sua massa atômica pode variar, tornando-os mais leves ou mais pesados. Os grãos maltados e não-maltados são diferenciados pela concentração do isótopo pesado de carbono (13C) nas suas células, resultantes da sua atividade fotossintética.
O que acontece é que grãos de climas mais frios, como trigo e cevada, que constituem os grupos dos maltes, utilizam um composto de 3 carbonos na sua fotossíntese, devido a isso, são chamadas de plantas C3. Por outro lado, grãos como arroz e milho utilizam uma cadeia com 4 carbonos na sua fotossíntese, sendo então chamadas de plantas C4.
Assim, para quantificar e diferenciar a quantidade de grãos C4 nas cervejas e consequentemente identificar o quanto de grãos não-maltados foram utilizados na sua produção, costuma-se calcular o valor de δ13C dos compostos envolvidos, utilizando a fórmula comum de estudos de isótopos estáveis:
δ13C ={[Razão 13C/12C na amostra / Razão 13C/12C padrão] – 1} x 1000. (expresso em “partes por mil” ؉)
Nos casos desses estudos, os compostos envolvidos são a cerveja analisada, a cevada e o milho. Os valores da cevada e do milho são conhecidos e são aproximadamente -25,2؉ e -12,5؉, respectivamente.
Isso significa que quanto mais distante do valor do δ13C da cevada for o valor analisado na amostra, maior foi a adição de milho na sua fabricação. Caso a cerveja seja puro malte, a tendência é que esse valor seja praticamente o mesmo da cevada. A fórmula então se configura como:
C4 (%) = {[ δ13C C cerveja – δ13C cevada] / [δ13C milho – δ13C cevada]} x 100.
Por exemplo, a cerveja supracitada apresenta razões de δ13C de -27,4؉ numa análise realizada por Mardegan et al. (2013), indicando que sua fórmula realmente pode ser classificada como puro malte. Outras análises de marcas nacionais, dentre as mais consumidas pelos brasileiros, podem atingir até -15,5؉ ou -17,8؉ na razão δ13C, indicando um alto índice de mistura com os cerais não-maltados.
Assim, podemos analisar as cervejas em laboratório e, ao quantificar a abundância do isótopo pesado do carbono, determinar o quanto de grãos maltados foram realmente utilizados na produção de cervejas disponíveis nas prateleiras.
Diversos trabalhos desse tipo já foram publicados ao longo dos anos e é marcante a diferença do tipo de cerveja no padrão europeu para o padrão brasileiro, principalmente em estudos mais antigos, que precedem essa onda liderada pela chegada do slogan citado.
Assim como outros setores da tecnologia precisam de estímulo do mercado para se desenvolver, a qualidade de produtos que consumimos também pode se basear em casos de sucesso e fórmulas vitoriosas. Essa procura pelo slogan da pureza leva à procura pela qualidade, haja vista que os consumidores de cerveja estão abrindo os olhos, ou o paladar, para cervejas de melhor qualidade. Um brinde à ciência e aos isótopos de carbono!
Canal Geologia Geral
Fontes:
– O que é puro malte? Saiba tudo sobre esse tipo de cerveja (bomdebeer.com.br)
– Lista de países por consumo de cerveja por pessoa – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
– Limite de milho e arroz não será extinto nas cervejas brasileiras (gazetadopovo.com.br)
– Gramíneas C3 e C4: você sabe a diferença? | Blog (educapoint.com.br)
– Anuário da CERBRASIL (Associação Brasileira da Industria da Cerveja) ano 2015