Outro dia estava em casa, bem tranquilo, tomando uma cerveja com meu irmão, conversando sobre vários assuntos. Então resolvi abrir o Instagram para mostrar um post de um amigo e fiquei bastante curioso, para não dizer assustado, com as propagandas que começaram a aparecer na minha timeline… Muitas delas traziam produtos ou serviços relacionados com os assuntos que estávamos conversando! 

Você alguma vez já ouviu, ou leu, a seguinte frase: “se o serviço é gratuito, você é o produto…“? Ou ainda: “a internet, mais especificamente o Facebook, elegeu o presidente dos Estados Unidos…“? Ou, para mantermos as coisas dentro do nosso território: “criamos um mito e isso aconteceu através do WhatsApp…“? Considerar um cenário onde isso é verdade, parece que estamos fazendo parte de um episódio de Black Mirror.

Maaaaaaaaaaaassssssssss! Quisera eu que as essas coisas fossem meras obras de ficção!

Tudo isso está diretamente relacionado aos serviços oferecidos por uma empresa chamada Facebook, que foi criada pelo menino prodígio Mark Zuckerberg. Sim! O Facebook é dono tanto do Instagram como do WhatsApp e tudo aquilo que é falado, escrito, enviado, discutido é, de alguma forma, usado para aumentar o valor da empresa através dos nossos dados. Parece teoria da conspiração, mas não é!!

O documentário Privacidade Hackeada, em inglês The Great Hack, apresenta o famoso caso da Cambridge Analytica que teve bastante repercussão na mídia em 2018 depois que descobriram que, no ano de 2015, durante a campanha para eleger o novo presidente dos Estados Unidos, ela acessou, indevidamente, dados de mais de 87 milhões de usuários do Facebook. A empresa foi contratada pelo time do Donald Trump com o objetivo de traçar o perfil dos eleitores americanos que se enquadrariam como “influenciáveis” ou, sendo um pouco mais carinhoso, “manipuláveis“. E como eles fizeram isso?

A Cambridge Analytica tinha acesso a muitos dados dos usuários do Facebook: perfil, posts, fotos, comentários, amigos, etc. Além disso, coletava muitas informações extras através do uso de alguns testes de personalidade. Se você já fez algum teste do tipo: “veja com qual ator de Hollywood você se parece”, saiba que você foi um grande colaborador do modelo de dados criado pela empresa. Esses dados coletados permitiram que fosse criado um mapeamento com mais de 5.000 pontos diferentes de dados de cada indivíduo! Caraca, você leu direito! São 5.000 pontos de dados! Quando eu penso no que eu poderia oferecer de informação a meu respeito, não consigo pensar em muito mais do que 10 coisas diferentes: nome, gênero, idade, estado civil, endereço, formação, filhos, tipo de música que eu gosto, tipo de filme que eu gosto, orientação sexual, orientação política…

O objetivo principal era traçar o perfil dos eleitores manipuláveis, entenda manipulável como alguém que ainda não decidiu o candidato e aquele que pode, de alguma forma, mudar de opinião, pois a decisão ainda não está totalmente tomada. Essa quantidade enorme de pontos de dados permitiram à Cambridge Analytica traçar uma estratégia para grupos de perfis, chegando à, então impensável, estratégia definida por indivíduo. Com ela em mãos, foi possível fornecer esses dados para os responsáveis da campanha do Donald Trump, para que os eleitores fossem estimulados, de maneira mais efetiva, a votar neste candidato. Durante o ano de 2015, lembro de acompanhar os debates dos candidatos estadunidenses e ficar incrédulo como era possível um ser humano não se preocupar com seus programas de governo, e outras coisas que deveriam fazer parte de debates importantes como aqueles, e ainda assim ser tão assertivo nas palavras, nas colocações e na maneira como se dirigia ao público, falando exatamente o que o eleitor queria ouvir, tudo baseado nas análises fornecidas pela empresa citada. Enxurradas de vídeos “demonizando” a sua rival Hillary Clinton, manipulações da verdade, posts e fake news sendo espalhados para “catequizar” esses eleitores que eram o alvo.

Mas não foi só na campanha para presidente dos Estados Unidos que a empresa atuou! Ela também foi uma das grandes responsáveis, se não ponto chave de decisão, pela campanha de saída do Reino Unido da União Européia, também conhecida como Brexit. O mesmo conceito de mapeamento de eleitores manipuláveis foi aplicado através dos 5.000 pontos de dados, campanhas específicas com uso de fake news, ou informações direcionadas, para dar um empurrãozinho a favor do Brexit.

Tá legal, falamos muito da Cambridge Analytica, mas onde entra o Facebook nessa história? A empresa de logo azul com um “efe” branco no meio tem uma grande participação por fornecer, indiscriminadamente, dados de seus usuários para que esse mapeamento fosse feito. Dados esses que deveriam ser privados ou aplicadas regras de anonimização de perfis. Assim, o modelo poderia ter sido criado, mas com um alcance mais controlado, sem que os usuários tivessem sido identificados como indivíduos e as campanhas fossem feitas de maneira direcionada, no seu menor nível possível. Neste momento você pode estar pensando em como foi possível o fornecimento desses dados sem o seu consentimento… Na verdade nós autorizamos quando não lemos a política de uso dos aplicativos, não nos preocupamos em entender a política de proteção e uso dos nossos dados, ou ainda quando entramos em uma onda de testes, como o de “veja como você fica mais velho”, que aconteceu recentemente com o aplicativo FaceApp.

Esse “modus-operandi” também foi intensamente usado durante a campanha presidencial de 2018 no Brasil. Naquele ano, presenciamos discursos de extrema polarização tanto da “esquerda” quanto da “direita”, sempre com o intuito de catequizar os eleitores manipuláveis. De um lado tínhamos o então candidato Bolsonaro, com discursos homofóbicos e de ódio, sempre querendo “lacrar” na maneira como falava com seus eleitores. Do outro lado o também então candidato Haddad, seguindo uma orientação do partido, no início, tentou colar sua imagem ao ex-presidente Lula e, em uma segunda fase, descolar sua imagem, por conta de repercussões negativas apresentadas pelos eleitores.

Desde este caso da Cambridge Analytica, o Facebook vem sofrendo para contratar novos talentos. A empresa tem visto um declínio na aceitação entre os candidatos e engenheiros de software para as suas equipes de produtos, tendo suas taxas de aceitação caido de 90% para 50% em 2019, segundo dados dos recrutadores de talentos responsáveis por essas contratações na área de tecnologia. Além disso, o Facebook também vem sofrendo uma evasão de usuários e um baixo número de novos participantes na plataforma. Ainda, assim, continua faturando muito com publicidade e venda de informações. 

Não se engane! Não é apenas o Facebook que invade indiscriminadamente sua privacidade! Recentemente tivemos casos do Google enviando áudios dos usuários para uma empresa analisa-los, a Microsoft acessando conversas do Skype, quando em conferências em grupo, a Amazon tendo acesso às conversas capturadas pela Alexa e, até mesmo a Apple, que é uma grande ativista da privacidade e proteção dos dados, tendo que se explicar para os usuários pois estava enviando um percentual dos áudios coletados pela Siri para serem analisados por seres humanos. Todos esses casos tiveram o mesmo objetivo: analisar as informações para melhorar a Inteligência Artificial das empresas.

Se você ainda não assistiu o documentário Privacidade Hackeada, assista! Mas prepare seu estômago e seus ânimos… Não assista se estiver em um momento mais depressivo, porque pode te levar ainda mais para o fundo do poço. Prepare-se para tomar medidas de segurança em relação a seus dados, se expor menos nas redes sociais, ficar menos tempo rolando a timeline desses aplicativos e, por mais chato que possa parecer, ler os termos de uso antes de aceita-los.