Hoje é dia de polêmica, vamos falar sobre um dos assuntos que mais geram debates tanto entre pesquisadores, quanto entre a população leiga: vício/dependência em substâncias. 

Desde que o mundo é mundo, as drogas estão aí e são usadas em diferentes culturas, com as finalidades mais diversas possíveis: tratamentos de saúde, rituais religiosos, festividades, socialização e por aí vai… Apesar do uso de substâncias não ser algo recente, sua caracterização como um transtorno talvez o seja. 

É interessante notar que os hábitos relacionados ao consumo de drogas – lícitas e ilícitas – mudam de acordo com o passar do tempo e das mudanças socioculturais. A busca pelo alívio do sofrimento e também pelo prazer através do uso de substâncias passou a ser considerada uma questão de saúde depois da Revolução Industrial, com o processo de urbanização.

Já imaginou o papai noel fumando? Pois é, foi comum nas antigas…

Mas será que todo usuário de substâncias é viciado? Caso não seja, o que diferenciaria o uso recreativo do vício? Antes disso, vamos entender o que acontece no nosso corpinho quando chega alguma coisinha diferenciada.

Passeando pelo cérebro

Provavelmente você já ouviu falar no sistema de recompensa cerebral (SRC) por aí e é justamente essa belezinha que mais trabalha quando falamos sobre uso de substâncias. Isso porque ele é o responsável pelas sensações prazerosas que experimentamos. Mas existem 2 coisas que talvez você não saiba: 

  1. a principal via de ativação desse sistema é feita por atividades ligadas à sobrevivência (alimentação, atividade sexual…);
  2. tem um papel fundamental na aprendizagem, memória e repetição de comportamentos.

Para entender como o SRC se envolve em tantos processos comportamentais, vamos ver onde ele está na sua cabecinha: no sistema mesolímbico-mesocortical. Falei bonito, mas não disse muita coisa, não é? Vamos simplificar, ele fica ali em uma parte do sistema límbico e vai se estendendo até um pedaço do córtex cerebral, fazendo quase uma junção emoção-razão, já que a área límbica está bem conectada às reações emocionais, enquanto o córtex (principalmente o frontal) tem relação com o aprendizado, planejamento e controle moral.

Sistema mesolímbico-mesocortical

Aqui cabe um parêntese bem grande: quando eu falo de junção emoção-razão, estou usando uma alegoria para ilustrar um processo mediado pelo neurotransmissor mais famoso da internet, a dopamina. Essa substância, quando liberada nas nossas sinapses (que são as fofocas entre os neurônios), vai deixar a gente com aquela sensação gostosa ao fazer coisas que nos trazem prazer. 

Aliado a isso, pequenas pistas ambientais podem servir de gatilho para lembrar de como era prazerosa a sensação, de como o mundo era mais interessante e dando “vontade” de repetir.

Mas essa sensação muda com o passar do tempo, porque a sensibilidade do SRC pode ser modulada por plasticidade sináptica. O nome bonito é para dizer que seu sistema de recompensa vai acostumando com aquele tantinho de dopamina que chega de forma fácil e começa a pedir mais um pouco… Esse estardalhaço neuronal todinho acontece quando já está instalada a dependência e a pessoa está sem fazer uso da substância – em abstinência. 

 

O que é dependência química? 

Essa é a pergunta que vale 1 milhão de dólares! Até hoje ainda são debatidos critérios – bem como sua cientificidade – que sejam capazes de definir, diagnosticar, prever a gravidade do quadro ou até mesmo o surgimento da dependência química antes da instalação dos sintomas mais graves. Para entender porque de tanta dificuldade nesse rolê, vamos de história…

Se engana quem pensa que o uso abusivo de substâncias é único e exclusivamente fruto da vida moderna. As sociedades da Antiguidade Clássica, como a grega e a egípcia, já descreviam quadros de abuso de álcool e episódios de delirium tremens.

Mas o caldo começa a entornar mesmo é na Idade Moderna, com a perda de alguns fatores de proteção social, se liga:

  • Uso atrelado à subsistência: o consumo de drogas tinha relação íntima com o cotidiano. Muitas vezes servindo como fonte de água e  nutrientes, modulador de estresse, favorecendo o aumento da tolerância à dor, à fome e à fadiga;
  • Consumo in natura: um menor processamento das plantas levava a uma menor concentração da substância em si;
  • Disponibilidade restrita: os métodos de plantio, colheita e armazenamento das drogas ocorriam em menor escala;
  • Baixa expectativa de vida: o que dificultava a visualização dos sintomas atrelados ao uso abusivo prolongado.

Isso aliado a um modelo de vida com vínculos comunitários mais frágeis e distantes, maior carga horária de trabalho, piores condições de emprego, renda e moradia, poucas opções de lazer e socialização… A gente sabe bem onde vai resultar, não é? 

E com isso vão surgindo as primeiras tentativas de diagnóstico. Marcadas inicialmente por um forte componente moral e atribuindo o uso abusivo de drogas a uma espécie de desvio moral ou falha de caráter do indivíduo. Dessa forma os tratamentos tinham como base a “correção moral”, em uma espécie de punição ou penitência para alcançar a abstinência. 

Com o passar do tempo, foram surgindo diagnósticos feitos de acordo com o tipo de substância consumida, o que dificultava o processo de tratamento, tendo em vista o frequente uso concomitante de drogas diferentes. Um ponto bastante comum nesse museu de tentativas classificatórias foi a passagem da ênfase essencialmente moral, para uma cujo foco se fixava nos aspectos biológicos. 

Se por um lado isso ajudou a caracterizar o padrão de consumo, influências do histórico familiar, traços de personalidade e transtornos mentais mais frequentes, por outro pouco se atentou a fatores psicossociais que poderiam levar ao uso abusivo, mantendo então como causa da dependência química distúrbios de personalidade a nível individual. 

As definições diagnósticas atuais tem como base estudos lá dos anos 1970/1980, de um psiquiatra britânico chamado Griffith Edwards. A principal inovação desse médico foi elaborar um conjunto de sintomas, conhecido como os 7 critérios de Edwards, que se aplicava a qualquer quadro de dependência de substâncias, alterando sua gravidade de acordo com influências externas e internas. 

E é justamente por aí que vai o conceito atual de dependência química, com a diferença que agora ele engloba um contínuum, envolvendo desde o uso esporádico, até o abuso propriamente dito. O que torna esse sistema capaz de contemplar outras modalidades de uso problemático de substâncias. 

A existência do conceito de síndrome de dependência abriu novas possibilidades justamente por se fundamentar em sintomas e comportamentos de risco, saindo – parcialmente – de um padrão culpabilizador do paciente e mostrando caminhos para um tratamento. 

Isso trouxe impactos significativos na turminha da ciência da época, porque modificava o status de desvio moral atribuído a dependência química desde o século XVIII, para sua concepção enquanto um transtorno psicológico passível de tratamento como problema de saúde. 

Depois desse rolê todinho, posso finalmente mostrar como isso aparece atualmente nos principais manuais diagnósticos: a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) e o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5).

No CID-10 há 3 definições correlacionadas entre si. São elas, o baixo risco, entendido como o consumo em pequenas doses e tomando precauções para evitar acidentes; o uso nocivo ou abuso, onde sempre há algum tipo de complicação ou prejuízo decorrente, como brigas e acidentes; e a dependência, definida como o consumo compulsivo, buscando evitar o desconforto da abstinência e acompanhado de sintomas físicos, psicológicos e sociais. 

Já no DSM-5 é usado o termo Transtorno por uso de substâncias, classificado em leve, moderado ou grave. Para isso, o paciente deverá ter apresentado pelo menos 2 critérios – de uma lista de 11 – durante o período de um ano. 

Por questões de responsabilidade, e para ninguém ficar se diagnosticando, não vou reproduzir nenhuma das listagens de critérios e sintomas aqui. Mas se você percebe que tem algo te incomodando ou trazendo prejuízos nesse sentido, busque ajuda! E nesse texto te digo como. 

 

Atenção à saúde

No fim do século XIX, os tratamentos para dependência química tinham como base o isolamento do convívio social e a abstinência, frequentemente incorrendo em violações dos Direitos Humanos. 

A situação passou a sofrer alterações a partir da Declaração de Caracas, em 1990, que vinculava a atenção psiquiátrica à Atenção Primária à Saúde (APS). Além disso, o reconhecimento da Organização Mundial de Saúde (OMS), de que a dependência química deve ser tratada como doença crônica e um problema social, começou a apontar a necessidade de uma atenção psicossocial especializada. 

Em decorrência desse processo, surge em 2002 o Programa Nacional de Atenção Integrada ao usuário de Álcool e outras Drogas, o que ajudará na consolidação e ampliação do modelo baseado nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), dos quais já falei em textos anteriores aqui. 

Atualmente, a lei Paulo Delgado, que regulamenta as políticas de saúde mental, define 3 tipos de internação – que também se aplicam em casos de dependência de substâncias: voluntária, que acontece com o consentimento do paciente; involuntária, onde não há o consentimento e a solicitação é feita por terceiro; e a compulsória, quando acontece via decisão judicial.

Infelizmente sabemos quem geralmente vai internado involuntariamente…

Mas nem todo serviço de tratamento envolve internação. Na verdade, a maioria deles incentiva que o paciente permaneça inserido na sua comunidade. Opções no Sistema Único de Saúde (SUS):

  • Unidades Básicas de Saúde (UBS), Centros de especialidades ou secretarias municipais de saúde: costumam oferecer grupos de tratamento para tabagistas, e em algumas cidades, alcoolistas. A entrada acontece mediante avaliação prévia e o usuário é acompanhado por uma equipe multidisciplinar; 
  • Centro de Atenção Psicossocial para usuários de Álcool e outras Drogas (CAPS-AD): realizam acompanhamento para qualquer tipo de dependência química, possuindo uma equipe profissional multidisciplinar. Geralmente a entrada depende de avaliação prévia, feita pela própria equipe do CAPS ou através de encaminhamento da UBS;
  • Hospitais gerais: são acionados apenas em casos de crises graves de abstinência que requerem internação mínima de 24 horas para controle dos sintomas.

Também existem outras opções:

  • Alcoólicos Anônimos (AA) e grupos de autoajuda: geralmente são gratuitos, por isso dificilmente contam com uma equipe especializada, mas podem servir como um espaço de acolhimento e escuta;
  • Clínicas de reabilitação: podem ou não contar com uma equipe multiprofissional, tendo em vista que a legislação é flexível quanto a isso. Possuem protocolos variáveis que podem envolver isolamento social dos pacientes e o valor se modifica de acordo com a infraestrutura oferecida;

Comunidades terapêuticas: geralmente são fazendas isoladas do meio urbano, muitas vezes mantidas por instituições religiosas de variadas vertentes. Em tese, são locais de internamento com atividades desenvolvidas por equipes multidisciplinares especializadas que tem como base do tratamento a abstinência total. Porém, são instituições cercadas de polêmicas pela falta de regulamentação e fiscalização adequadas, tendo em vista que são parcialmente financiadas pelo poder público e não são raros os casos envolvendo episódios de violação aos Direitos Humanos nesse tipo de instituição.

O prazer pode ser viciante

Quando se fala de dependência química, estamos falando também de um comportamento condicionado que pode ser influenciado pelos mínimos gatilhos ambientais, ocupando um espaço cada vez maior na vida do usuário. E é aqui que entra um conceito clássico da psicologia comportamental: o paradigma do condicionamento operante. 

Lá nos primórdios da Psicologia, um tiozinho chamado B.F. Skinner ao desenvolver uma série de experimentos com ratos e pombos, percebeu que ao obter uma recompensa, os animais tendiam a “operar” mais no ambiente e isso aumentava conforme eles eram recompensados. Confirmou-se então o princípio do reforço: uma tendência de repetir os comportamentos que traziam uma consequência prazerosa ou tinham como resultado a esquiva de uma situação desagradável.

Skinner e seus pombinhos

Já vimos aí então 2 elementos que poderiam fortalecer o uso problemático de substâncias: a busca pelo prazer e a fuga de situações-problema. E como falamos de um processo de condicionamento, isso vai se dando aos pouquinhos: o comportamento resposta vai se ampliando através de um processo chamado de generalização de estímulos, e quando menos se espera, quase tudo faz lembrar da substância ou remete ao seu uso. 

Olhando por esse ângulo, talvez fique mais fácil de entender porque dificilmente alguém para de fumar apenas com uso de medicamentos, já que a pessoa tem todo um contexto que serve de gatilho para o uso do cigarro. 

Mas voltando ao experimento do Skinner, outro ponto chamava a atenção: quando as cobaias paravam de receber mimos, seu comportamento de “ação no ambiente” não cessava. Pelo contrário, os ratinhos e pombos ficavam ainda mais agitados, aumentando a frequência do comportamento, que bem lentamente ia se extinguindo pela ausência do reforço. 

Outros experimentos também mostraram um importante papel do enriquecimento ambiental na queda da frequência do uso de substâncias. Ratos expostos a uma gaiola com mais opções do que fazer – brinquedos, comida, exercício, socialização – consumiram menos drogas e se aproximaram menos do local onde elas estavam.

Isso ofereceu excelentes bases de como são pensados os tratamentos atuais (e efetivos) para dependência química, focados não na abstinência pura e simples, mas na redução de danos e ampliação do repertório comportamental, incluindo habilidades de socialização, resolução de problemas e lazer, diminuindo as chances de recaídas. 

Talvez, em um primeiro momento, isso passe a ideia de que tudo o que nos traz prazer pode se tornar um vício, principalmente se lembrarmos da nossa tendência natural à preguiça, conhecida como economia de esforço. Inclusive esse conceito ajuda a explicar porque buscamos fontes fáceis e rápidas de prazer, nos engajando em comportamentos às vezes meio “sem-sentido”.

Existe vício sem droga?

Bom, já falamos de como as características da substância ingerida, diferenças individuais e o contexto ambiental são fundamentais para entender o grau de dependência e as estratégias para tratamento em casos de abuso. Mas eu tenho certeza que vocês já ouviram falar em comportamentos ditos viciantes, certo? 

Jogos, compras, sexo, apostas, redes sociais, consumo de açúcar e tantos outros comportamentos vez ou outra são apontados – na literatura especializada e leiga – como vício e relacionados aos transtornos de dependência.

E aqui temos um dos pontos de maior polêmica entre os pesquisadores da saúde mental: as dependências comportamentais, também conhecidas popularmente como vício sem substância. 

De modo geral, são definidas como um uso compulsivo, acompanhado de tentativas frustradas de controle, com aumento de frequência e intensidade ao longo do tempo, gerando prejuízos em diferentes esferas da vida de quem as apresenta. Como o assunto é extenso, polêmico e cheio de reviravoltas, não vou me aprofundar agora e deixo esse papo com gostinho de quero mais para o próximo texto!

 

REFERÊNCIAS:

 

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.

ARAÚJO, M. R. de; LARANJEIRA, R. A evolução do conceito de dependência química. In: GIGLIOTTI, A.; GUIMARÃES, A. (org.). Adição, dependência, compulsão e impulsividade. Rio de Janeiro: Rubio, 2017. cap. 5, p. 57-68. ISBN 978-85-8411-076-6. Disponível aqui. Acesso em: 8 fev. 2021.

 

ARAUJO, R. B. et al . Craving e dependência química: conceito, avaliação e tratamento. J. bras. psiquiatr.,  Rio de Janeiro ,  v. 57, n. 1, p. 57-63,    2008 . Disponível aqui. Acesso em: 8 fev. 2021.

 

CHAIM, C. H.; BANDEIRA, K. B. P.; ANDRADE, A. G. de. Fisiopatologia da dependência química. Revista de Medicina, [S. l.], v. 94, n. 4, p. 256-262, 2015. Disponível aqui. Acesso em: 8 fev. 2021.

 

PRATTA, E. M. M.; SANTOS, M. A. dos. O processo saúde-doença e a dependência química: interfaces e evolução. Psic.: Teor. e Pesq.,  Brasília ,  v. 25, n. 2, p. 203-211, 2009 . Disponível aqui. Acesso em: 8 fev. 2021.