Calma! Não pretendo resgatar uma história milenar da dita cuja; apontar os primeiros vestígios arqueológicos do que poderia ter sido usado como um preservativo no Egito pré-cristo, na Antiguidade europeia, nos trópicos trobriandeses, etc. Também vou pular a parte da galera no Império Romano usando tripa de ovelha ou dos japoneses que, por mais incrível que pareça, elegeram um fucking casco de tartaruga como acessório sexual… Depois vocês me agradecem.

Quero falar da camisinha sob a perspectiva que me cabe, a da Saúde Coletiva. Pensar, brevemente, sobre como esse objeto tão trivial carrega consigo um mundo de significados, uma pá de transformações e que hoje representa não só uma tecnologia a serviço das pessoas como também um direito adquirido, aos trancos e barrancos, e que parece ainda não ter se consolidado como tal: o direito à prevenção e a uma saúde sexual plena.

E essa perspectiva tem a ver, fundamentalmente, com um importantíssimo fenômeno contemporâneo: a deflagração da epidemia mundial da Aids. Se, como eu disse, existem registros históricos muito antigos de artefatos tipo camisinhas já sendo usados para fins de evitar a gravidez ou de se proteger de infecções venéreas, nas sociedades pós-Aids, o preservativo ganhou um destaque nunca antes vistos na história desse país.

A ideia de usar camisinha para prevenir a transmissão sexual do HIV (vírus causador da Aids) surgiu atrelada a intenção de resistir ao “isolamento sanitário” incitado, inicialmente, pelos médicos e epidemiologistas no início da epidemia. Em meio ao pânico moral gerado pela doença, a camisinha significava o reconhecimento da agência e da autonomia sexual dos grupos na linha de frente da epidemia, e a circulação dos preservativos nos meios sociais e midiáticos representava a confirmação da necessidade de se estabelecer um debate positivado sobre prevenção. A camisinha foi, neste sentido, um recurso estratégico, não apenas para a promoção de hábitos sexuais ditos mais seguros – e assim contribuindo para o controle da Aids no mundo – como também era artifício material e pedagógico (e isso é muito importante!) na luta por direitos e contra a estigmatização.

Portanto, a camisinha despontou numa aposta de campanha que não veiculasse uma ideia proibitiva do sexo, como as que insistiam em promover comportamento restritivos, como abstinência sexual, por exemplo. Não por acaso a proposição do uso sistemático da camisinha data desde os primórdios da epidemia, ainda no iniciozinho dos 1980, a partir da iniciativa do movimento gay organizado nos Estados Unidos, justamente um dos mais atingidos pela doença.

Um parêntese: É fundamental ressaltar que houve uma mudança significativa na trajetória social da camisinha. Com as tecnologias reprodutivas já disponíveis até a década de 1980 (principalmente as pílulas anticoncepcionais e as técnicas mais seguras de vasectomia e interrupção voluntária da gestação), o preservativo deixou de ser, naquela época, o recurso principal de planejamento familiar, perdendo espaço e adesão. As infecções sexuais eram tratadas com antibióticos e anti-inflamatórios e as gravidezes evitadas de outras formas – pílulas, tabelinha, ligação das trompas, eventuais abortos… A Aids recolocou a camisinha no centro da sexualidade moderna e esta não foi uma tarefa simples. Depois procure saber, com as gerações que viveram a adolescência e juventude entre as décadas de 1960 e 1970, e que em 1980 foram atingidas em cheio pela epidemia, como era diferente a relação deles com o sexo…

Voltando…

A intenção era, como disse, construir um contraponto aos primeiros planos de contenção da epidemia, cujos princípios norteavam-se a partir da negação do sexo e da condenação antecipada de “certos estilos de vida” – vocês podem imaginar quais. Os poucos recursos para guiar as ações preventivas e um total desconhecimento acerca de como a doença de fato se alastrava, contribuíram para que propostas de prevenção preconceituosas e desinformadas estivessem moralmente implicadas em um modelo bastante restritivo da sexualidade.

“No Brasil, a ideia de sexo protegido pelo uso da camisinha integra-se, como vemos, à perspectiva dos direitos humanos, sendo identificada no uso da camisinha uma possibilidade de atrelar o trabalho preventivo a um conceito positivo dos direitos sexuais, que para além de garantir a proteção (contra violações e doenças) promove o direito ao prazer, à vida sexual satisfatória e segura.” (Petchesky, 1999 apud Pinheiro et al, 2013, p. 817)

E resistir ao isolamento e à abstinência sexual foi, desde sempre, a forma como as populações mais atingidas incorporaram a camisinha como um método preventivo que permitisse a manutenção das práticas e relações sexuais livres, ao invés de coibi-las ou condena-las.

Essa m&%#@ aberração de atrelar a Aids à “““promiscuidade””” e/ou somente à prática do sexo anal masculino, além de fomentar um dos mais arraigados e cruéis estigmas da nossa história recente, serviu para mascarar e acobertar os inúmeros casos de infectados entre mulheres, homens heterossexuais (em especial os hemofílicos), crianças e usuários de drogas.

A intenção dos discursos em torno da camisinha, mais uma vez, era a de contrapor esse discurso médico e epidemiológico imbecil sobre a doença. A responsabilidade pelo sexo seguro deveria ser, lógico, de toda a população sexualmente ativa e não apenas de um segmento ou comunidade; e os programas internacionais, bem como os Estados nacionais, precisavam estar focados em identificar e atuar sobre os determinantes sociais que implicam em maior suscetibilidade à infecção, e não na forma como as pessoas escolhem seus parceiros. Enquanto os profissionais da saúde estabeleceram, pelas métricas estatísticas, o conceito de grupo de risco e, mais tarde, comportamento de risco, os ativistas e mobilizados produziram a noção de solidariedade e vulnerabilidade ao HIV, recusando se manterem sob uma classificação totalizante e, em última instância, completamente acusatória – vide a forma como os soropositivos eram retratados na mídia nas décadas de 1980 e 1990.

Porém, com o passar dos anos, entraram em cena as teorias cognitivo-comportamentais que, de certa forma, tomaram o lugar das abordagens digamos, mais coletivas da prevenção, dentre elas a camisinha. A aposta dos programas, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, era outra: produzir e disseminar uma certa racionalização do risco, acionando, de maneira inédita, o indivíduo, isoladamente, como o responsável pela sua saúde, no caso da Aids, da sua saúde sexual. Comprovou-se que, realmente, o preservativo era a forma mais eficaz de controle da infecção e, com isso, ele foi alçado à categoria de “aliado na guerra contra a Aids”. Como consequência, novas tecnologias em torno da camisinha foram criadas e sua distribuição massificada. Não por acaso, também entram em cena o complexo industrial farmacêuticos e seus interesses privados no curso da epidemia.

Como resultado mais imediato, a camisinha transbordou as comunidades e foi incorporada nas campanhas publicitárias governamentais e internacionais, adotada como a principal estratégia de proteção contra a transmissão sexual do HIV. Por um lado, a massificação da camisinha e a luta constante contra a estigmatização das pessoas vivendo com HIV – particularmente entre a comunidade LGBT – fez o preservativo se popularizar a olhos vistos. Nos anos 2000 a camisinha circulou ostensivamente na mídia, nas escolas, na vizinhança, etc. e até a sua avó, aposto, dizia pra você se proteger quando tu saia pras festinhas.

Por outro lado, o constante processo de individualização dos riscos e de responsabilização única do sujeito para com suas próprias práticas sexuais, distorceu o sentido original do sexo seguro, distanciando-se da ideia de direito coletivo, transformando-o em pura retórica. Ao ignorar fatores estruturais determinantes como a violência de gênero, a pobreza, a desigualdade racial e territorial, entre outros, a política global de prevenção baseada na distribuição de camisinha foi perdendo sua potencialidade pedagógica. Paralelamente, os avanços no tratamento da doença que “cronificaram” a Aids, amenizando seus efeitos, e a investida de movimentos conservadores anti qualquer tipo de discussão franca e pública sobre sexualidade e saúde, colaboraram para essa distorção. O que era pra ser uma ferramenta viabilizadora de educação sexual e promoção de equidade, aos poucos tornou-se um chavão vazio e desinteressante. O que era pra enaltecer o sexo, aos poucos tornou-se motivo de culpabilização, afinal, “hoje, só pega Aids quem quer” [sic]. Vocês nem imaginam como me dói reproduzir um absurdo desses.

Outros diversos fatores contribuíram para que a camisinha perdesse espaço no nosso dia-a-dia. A Aids perdeu espaço no nosso dia-a-dia. Mas não vou me ater a todos esses fatores aqui. Se quiserem, podemos continuar conversando nos comentários ou pelo Twitter. A questão que gostaria de frisar é que há algo de revolucionário no preservativo, e que não podemos perder isso de vista. Não é porque a coisa toda ficou meio higienizada que nós temos que concordar. Não é só uma retórica do tipo “todo mundo sabe que faz bem pra saúde comer verduras”, mas no fim ninguém segue direito aquelas pirâmides nutricionais. Sem dúvidas, argumento que tornar o sexo algo prazeroso e satisfatório passa por aprender sobre as opções preventivas que temos à disposição, descobrindo e compartilhando as melhores forma de usá-las. Podem acreditar, não é só na pele e sem papel que o sexo fica gostoso. Se quiserem, depois eu posso fazer um Quiz, estilo esse aqui sobre HIV/Aids, com dicas sobre como incorporar melhor a camisinha nas suas pegações. Tipo um coach sexual.. hahaha.. Já topei.

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Espero que tenha dado para perceber como que a camisinha converge vários sentidos distintos numa coisa só. Ela é ao mesmo tempo a constatação da existência da Aids enquanto urgência pública, um panfleto informativo que carrega consigo a ideia de sexo seguro e um discurso preventivo específico, cujo o mote central gira em torno de uma visão positivada da vida sexual, embora atualmente ela sirva mais como uma ordem do que uma escolha. Além disso, a camisinha também circula fora do serviço de saúde e não depende dele, pois sua distribuição é praticamente autônoma e imprevisível – tem na sexshop, no Rock in Rio, nas ruas durante o carnaval, na farmácia, nas ONGs… tem extra lubrificada, tem com sabor, tem as que brilham no escuro, as sem látex, as “do posto” e de tamanhos diferentes… E pode ter certeza, tem uma ideal pra você e sua parceria, ou pra situação que você queira curtir. Só ir testando com carinho as formas de conciliar.

No fim, as relações sociais acumuladas ao longo do tempo fazem com que a camisinha esteja profundamente enraizada no cotidiano das pessoas, marcando diferentes gerações, sob diferentes pontos de vistas. Então, da próxima vez que ‘cês ouvirem essa bordão meio cafona, meio careta, meio autoritário, meio inflexível do use camisinha (e eu super concordo com todos esses adjetivos!), espero que percebam o quão significativo ele pode ser. Se a gente começar a tratar o preservativo não como uma imposição sanitária e sim como um resgate da ideia de que ela é mais uma forma de viver o direito que temos de desfrutar de uma sexualidade plena, talvez a camisinha deixe de ser uma obrigação incômoda e passe a ser uma etapa comum dos nossos roteiros sexuais mais livres e divertidos. Essa é a minha aposta.

 

 

Referências:

KHAN, Fahd et al. The story of the condom. Indian journal of urology: IJU: journal of the Urological Society of India, v. 29, n. 1, p. 12, 2013.

Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3649591/

 

PINHEIRO, Thiago Félix et al. Uso de Camisinha no Brasil: um olhar sobre a produção acadêmica acerca da prevenção de HIV/Aids (2007-2011). Temas em Psicologia, v. 21, n. 3, 2013.

Disponível em: https://www.redalyc.org/html/5137/513751772009/

 

Recomendo também os textos dos pesquisadores e professores Vera Paiva, Jose Ricardo Ayres e Richard Parker sobre Aids, camisinha e prevenção.