Essa resenha é uma parceria do Portal Deviante com a Cia da Letras, que disponibiliza livros do seu catálogo para os nossos redatores escreverem as resenhas. Livro de hoje: O Oráculo da Noite.
Sonhos são misteriosos. Miscelânea de conteúdos que muitas vezes nem o próprio sonhador pode interpretar. Às vezes os sonhos até fazem sentido, que é quando são interpretados como oráculos — ou talvez a falta de sentido estimule algumas pessoas a encontrarem alguma interpretação possível no meio do caos onírico. Foi assim na maior parte da história humana. Afinal, como explicar sem invocar o sobrenatural esse filme que passa diante dos nossos olhos enquanto dormimos?
Na medida em que o sonho é hoje objeto de estudo científico, explicações desprovidas de elucubrações sobrenaturais se tornaram possíveis. Em o Oráculo da Noite, o neurocientista Sidarta Ribeiro faz um interessante passeio sobre a história do sonho pelas culturas humanas, passando por relatos reais de sonhos até dados científicos surpreendentes sobre sua a natureza e função biológica.
Os sonhos pela história humana
Hoje as pessoas sonham e o máximo que acontece é elas comentarem sobre eles quando acordam, mais em tom de curiosidade do que de preocupação real. Mas sonhos já foram muito mais do que meras curiosidades. Sonhos já foram sinônimo de poder. São os tataravós do xamanismo, das religiões institucionalizadas, e até da filosofia e da ciência. Sonhar pode ter sido o motor da metafísica. Essa capacidade pode ter desenvolvido o insight fundamental de que existe algo por trás da realidade observável, de que existem outros mundos explorados pelo espírito quando sai do corpo durante o sono.
Xamãs, em culturas tradicionais, até hoje usam o sonho como material para sua atividade que mistura o papel de terapeuta e sacerdote. É nessa fase do sonho que, para eles, o espírito se descola do corpo e entra em contato com os ancestrais, que oferecem conselhos e avisos sobre quais decisões tomar, por exemplo. Às vezes, tribos xamânicas discutem os sonhos de seus membros ao redor de uma grande fogueira. É nesses momentos que o material enigmático é dissecado e interpretações proféticas surgem.
Esse hábito de compartilhar sonhos teve continuidade em sociedades maiores, como o próprio Império Romano. O Imperador Otávio Augusto criou uma lei segundo a qual sonhos premonitórios deveriam ser compartilhados e discutidos em praça pública. Tais experiências oníricas também decidiam o destino de impérios. Alexandre III decidiu conquistar o Oriente Próximo depois de sonhar com um sátiro. Sátiro é uma criatura metade bode, metade homem, da mitologia greco-romana. Nesse sonho, um sátiro aparecia sendo capturado com dificuldade. Alexandre pediu o auxílio de um interpretador de sonhos. Ele quebrou a palavra satyros em duas palavras, sa e Tyros, que em grego significa “Tiro é sua”. Tiro o nome de uma cidade que Alexandre já visava a conquistar. O sonho foi interpretado como uma mensagem de incentivo dos deuses para a sua conquista.
Palavras, um jeito novo de sonhar
A importância política dos sonhos veio caindo junto com o aumento da importância da escrita. A popularização da escrita roubou um pouco da funcionalidade do sonho. Para ouvir os deuses ou receber conselhos de familiares falecidos não era mais preciso ouvi-los durante o sono. Lembre de José sonhando com um anjo antes de se casar com Maria, em Sidarta Gautama sonhando antes de decidir abandonar seu clã e seguir a vida de asceta.
Digamos que a escrita tornou possível a comunicação com ancestrais e deuses sem precisar cair no sono para isso. Para saber o que os deuses diriam, bastava consultar textos escritos pelos seus representantes terrenos. “Um ser humanos que já quase não escuta os deuses, mas conversa o tempo todo consigo mesmo” (p. 69).
A ideia levantada por Ribeiro encontra paralelos com o que autores clássicos como Vygotsky defendem. A escrita teria mudado a forma como os humanos experienciam seu mundo interior. Por exemplo, vem aumentando a frequência de citação de palavras associadas à introspecção em manuscritos, papiros e livros ao longo dos milênios.
O ponto é que a escrita proporcionou um acesso ao mundo interior antes proporcionado apenas pelos sonhos. Durante os sonhos suas memórias se associavam e frequentemente surgia dali uma nova ideia que era posta em prática ao acordar — como no sonho de Alexandre. A escrita possibilitou que esse processo ocorresse também durante a vigília. Em outras palavras, esse acesso às memórias e aos pensamentos que se dava pelo sonho passou a se dar pela escrita. Isso faz todo sentido considerando que a linguagem em si já é uma forma de sofisticar o acesso ao mundo interior. Com a linguagem é possível falar sobre nossas emoções e pensamentos. Com a escrita é possível registrá-los num meio físico e pensar sobre eles, elaborando-os ainda mais.
Não é por acaso que, na Idade Média, Aquino escreveu que a sonhos deveriam importar menos do que a vigília para tomar decisões e para decidir sobre a moralidade de alguém. Sonhar com o pecado não é pecado. Por isso, o mundo da vigília vale mais que o onírico. Talvez isso seja um sinal do sonho já dividindo espaço com a escrita. Aquino fazia parte da elite escolarizada da época, que não dependia tanto mais dos sonhos para trabalhar suas ideias porque tinha papiro, pena e tinta para isso. Os monges cristãos tentavam minimizar a importância do mundo onírico de tal modo que seguiam uma rígida rotina que resultava na diminuição da frequência dos sonhos. Os monges dormiam com o pôr do sol, mas acordavam perto da meia noite para ceiar e rezar. Acontece que perto da meia noite dava o tempo certo para adentrar no sono REM, período de sono no qual os sonhos ocorrem. Acordando, claro, impedia-se os sonhos.
A ciência dos sonhos
Mas o que a ciência tem a dizer sobre isso? As respostas científicas se dividem em pelo menos dois tipos. As causas proximais dos sonhos, isto é, como o cérebro gera essa experiência; e as causas distais, que é o motivo pelo qual a capacidade de sonhar teria sido adaptativa ao longo da história evolutiva do Homo sapiens.
Comecemos com o mecanismo biológico que gera os sonhos. Espécies que parecem sonhar são espécies que entram em sono REM (movimento rápido dos olhos, na sigla em inglês). É nesse estágio do sono que ocorre a seleção, consolidação e exclusão de memórias. Os sonhos seriam consequência desse processo de edição das redes de neurônios que correspondem às memórias. Essas redes acabam sendo ativadas nesse processo de edição de memórias. A ativação de uma memória gera a experiência subjetiva daquela memória. Em parte, sonhos são essas imagens mentais geradas pela ativação dessas redes nesse processo de coleta seletiva feita pelo cérebro.
Bom, nada disso implica que especificamente os sonhos tenham alguma função adaptativa. Talvez sonhos sejam meros subprodutos dos mecanismos de consolidação de memórias. Seria um pouco como a chaminé que sai de uma maria fumaça. A fumaça não faz o trem andar, mas é consequência do processo que move a composição.
O sono REM, e consequentemente a capacidade de sonhar, poderia ter sido selecionado pela vantagem de formar memórias. Memórias são importantes, especialmente para espécies prematuras e sociáveis, como humanos e outros primatas, além de cetáceos e corvos. Essas espécies precisam de uma capacidade mnemônica turbinada para tunar o aprendizado ao longo desse período de imaturidade, até adquirir a vida adulta anos depois. Esse processo envolve tanto o aprendizado de maneiras eficientes de lidar com seu ambiente quanto de relações sociais. Por exemplo, a memória ajudaria tanto no aprendizado de técnicas eficazes de conseguir alimento em ambientes complexos e variáveis. Também seria útil na memorização de laços sociais (quem são os pais, os estranhos, os hostis, os amigáveis). Não é por acaso que todas essas espécies cognitivamente mais complexas parecem passar pelo sono REM.
Conclusão
Nas quase 400 páginas de O Oráculo da Noite, o neurocientista Ribeiro desenvolve esses pontos que abordei com muito mais informações e detalhes, óbvio. Um ponto positivo desse livro é que ele junta muito bem aspectos culturais e biológicos. Isso porque sonhos são um excelente exemplo de como biologia e cultura se acoplam de maneiras que fica muito difícil separar ou dizer quem começou primeiro a influenciar quem. Por exemplo, sonhar é uma possibilidade biológica. Mas essa característica se reflete na cultura porque as pessoas criam diferentes explicações e usos para isso. E isso por sua vez define uma grande parte do destino dos seres humanos enquanto agentes históricos e também como espécie. E isso é bem contemplado nesse livro porque Ribeiro faz questão de conciliar testemunhos pessoais, relatos de sonhos importantes em eventos históricos e explicações biológicos que estão lá na base do fenômeno tornando possíveis todas as suas ressonâncias subjetivas e culturais.