Hey Judes! Como estão?

A “fantasia” de mulher ou o hábito de se vestir como mulher durante os dias de carnaval não é uma novidade para ninguém. Até porque, como acabei descobrindo durante a pesquisa, esse hábito tem registro desde muito tempo e acaba se misturando às raízes do nosso carnaval “moderno” – classifiquemos assim. Descobri que, em 1835, um anúncio oferecia, entre outros itens de fantasias, “peitos de senhora para vestir-se de mulher”. No entanto, recentemente esse costume mais que centenário foi alvo de uma campanha de desconstrução de culturas preconceituosas e racistas.

Posto ao lado de outros elementos e fantasias já consolidados nos inúmeros carnavais brasileiros, como a “nega maluca”, a peruca black power e as fantasias de rastafari, indígena e cigano, o trans-fake compôs uma cartilha da prefeitura de Belo Horizonte(MG) para o carnaval deste ano. Nela, alertava sobre os significados pejorativos que esses costumes carregam e como o vestir-se “de mulher” alimenta o machismo e o desrespeito. Sendo assim, o intuito da prefeitura era preservar o respeito aos que têm constantemente seus direitos violados.

Ponto é que, quando falamos sobre roupas e gênero, estamos falando de uma construção social. Portanto, o que vale pra um nem sempre vale para o outro e exemplo disso é o Marrocos. Lá é comum que homens andem de mãos dadas nas ruas e deem selinhos como cumprimento simbolizando o alto grau de amizade. Além disso, o luto entre os marroquinos é representado pela cor branca, uma vez que a associação com o preto é uma construção ocidental datada do século XIX. Em suma, o ato de se vestir é variável assim como as muitas outras manifestações sociais.

No entanto, antes desse debate, precisamos ter em mente como é a nossa relação com as roupas e o que elas dizem sobre nossa sociedade e cultura. Quando pensamos em homens vestidos de mulher (e vice-versa) estamos, automaticamente, determinando que certas peças são destinadas a um gênero específico. Nesse sentido, o que pretendo enfatizar é a latente hipocrisia social – e por que não dizer também historiográfica? – sobre como lidamos com os corpos, estando inseridas nisso tanto as vestimentas quanto a ausência delas, ou seja, a nudez.

O uso de roupas foi introduzido pelo dominador europeu, mas o uso delas por tribos indígenas é mínimo além de que, em solenidades, a nudez e as vestes específicas são retomadas. Outro fator de subsistência das culturas nativas é a utilização de saiotes, tangas e cintos para cobrir o sexo por parte de tribos com pouco contato externo. No entanto, até esse tipo de classificação, “cobrir o sexo”, não contempla com exatidão o significado desse uso, uma vez que em seu universo elas não se associam a aspectos morais, ainda que apresentem diferenciações no uso de determinados elementos, como o fato de as plumas serem privilégio masculino. Ainda que haja a divisão sensível entre “o que é do homem e o que é da mulher”, essa construção está relacionada à estrutura social e não o contrário, como na sociedade oriunda das influências europeias.

Também evocamos, quando pensamos no tabu que deixa de ser vestir-se “de mulher” no carnaval e na construção social de gênero binário a que isso se relaciona, as transformações pelas quais a moda passou e a influência das correntes de pensamento sobre ela. Isso porque, se olharmos para o berço da civilização ocidental em cerca de 3.000 anos atrás, não veremos a distinção de gênero através das roupas. Homens e mulheres vestiam-se com roupas sem gênero como o quíton, que era uma espécie de túnica, o pharos e o himation, mantos e vestidos usados contra o frio.

Andando um pouco mais no tempo, temos na Roma Antiga as togas e as “saias” usadas pelos gladiadores. Se buscarmos nos dias atuais, encontraremos no Oriente Médio a kandura, uma túnica bastante comum; na Indonésia e na Somália é comum o sarog, semelhante à saia. Até mesmo se procurarmos na Bíblia, não existem referências claras às roupas por distinção de gênero. Em Gn. 3:21, Ex. 22:26-27 e Jo 19:23-24 temos referências a túnicas e manto sendo, na primeira, usado para vestir Adão e Eva e na última sobre a roupa usada por Jesus. Por outro lado, Dt. 22:5 diz apenas que Deus tem aversão ao homem que usa roupa feminina e mulher que usa roupa masculina; 2Sm. 13:18 fala de uma túnica longa comum às virgens; e 1Tm. 2:9-10 diz apenas sobre a maneira como a mulher deve se vestir e não sobre o tipo de roupa.

Se temos um histórico desses, então, o que mudou? A pergunta não é bem essa, mas o que e quando mudou? Nos idos do século XIV, o uso de vestes bifurcadas passa a ser associado à demonstração de virilidade. Isso acontece como herança da mentalidade de que a mulher representava o mal e um perigo iminente à salvação do homem; assim suas “partes baixas” deveriam ficar escondidas. Os estágios finais dessa mudança nos nossos guarda-roupas se dão nos séculos XVIII, quando o Iluminismo tenderá a reforçar a diferenciação entre homens e mulheres, e XIX, com o fortalecimento da masculinidade através do vestuário masculino. Esse último evento, inclusive, culminará num movimento questionador e revolucionário da estilista francesa Coco Chanel ao criar a calça feminina.

Pois bem… e como esse pequeno histórico nos leva mais propriamente dito ao carnaval e a esse hábito de alguns homens “fantasiarem-se” de mulher? Bem, o carnaval é um festejo que não tem as suas origens muito bem definidas, mas que apresenta alguns consensos suficientes para nos fazer entendê-lo e reconhecê-lo. Ele parece ter raízes que remontam às antigas saturnálias. Elas eram banquetes festivos dedicados ao deus romano Saturno em que, além do carrum navalis, carros em forma de navio que desfilavam pelas ruas carregando homens e mulheres nus, a ordem social era invertida com homens vestidos como mulheres, escravos como reis, etc. Mais tarde, esses costumes se fizeram presentes em um dos carnavais mais famosos da história, o de Veneza.

O sentimento que o carnaval despertava e ainda desperta está no papel social que ele incorpora, isto é, um período em que as estruturas determinadas são postas de lado e a liberdade não encontra limites, nem mesmo os morais. E eis a grande querela, tendo em vista a oposição que se cria face às construções sociais dominantes. Nesse sentido, ressaltamos em especial a moralidade cristã característica do ocidente. Entre as tentativas etimológicas acerca do termo, existe a interpretação de que signifique algo como “tirar a carne” e isso teria a ver com a relação entre o carnaval e a Igreja, uma vez que a festa aqui é determinada pela Páscoa, ocorrendo 7 domingos antes do domingo pascoal e terminando na noite anterior à Quarta-feira de Cinzas.

Esse sentimento de zombaria, subversão, inversão e ausência de limites é terra fértil para manifestações como o trans-fake. O ponto em questão atualmente está entre duas leituras distintas. Enquanto uma enxerga que esse hábito está relacionado à vontade de transgredir e à facilidade de fazê-lo através de uma fantasia ou ainda de purgar a masculinidade frágil, o outro percebe um tom jocoso na representação do feminino. Indiscutível é que o tema é mais sensível do que aparenta se olharmos para os meandros e entrelaços constituídos e constituintes do carnaval e do ato de travestir-se.

Percebemos que esse hábito está presente desde a origem do carnaval e mesmo na Rússia czarista dos anos 1700. Talvez o que guie hoje as leituras mais recentes sejam as transformações socioculturais e o fortalecimento de classes que antes eram meramente subjugadas. Nesse sentido, podemos notar que os ares de inversão e subversão de valores está no DNA do carnaval assim como hoje existe o movimento de valorização da mulher, do combate ao machismo e ao patriarcalismo – e não apenas homenagem ao feminino – permitindo a disputa pelo espaço e a problematização ao questionar. Isso pode parecer indiferente, mas, quando pesquisamos sobre blocos que são caracterizados por esse travestimento, a maioria deles apresenta nomes que desmerecem, estereotipam e ofendem as mulheres.

Aqui no RJ o nome mais comum para essa manifestação é “Bloco das Piranhas”. Pesquisando a partir dessa nomenclatura para encontrar a origem e as intenções que constituíram essa fundação (o que não encontrei), tive acesso ao seguinte: tem o Bloco das Piranhas no Amazonas com 40 anos de existência e marcado pela irreverência, assim como o Piranhas da Serra, de Teresópolis (RJ) de 35 anos. Já em Santa Catarina tem: Bloco dos Sujos, onde os homens se vestem de mulher e as mulheres do que quiserem; Bloco da Vagabunda, completando 48 anos em 2020 e no qual homens e mulheres vestem-se como seu gênero oposto; Navegay, em que os homens vestidos de mulheres são a principal atração; e Bloco DNA, “Dia e Noite Alcoolizado”, em que neste ano teve uma noite especialmente dedicada ao público feminino.

Tem ainda o Bloco das Virgens em Óbidos (PA), fundado em 1993; mais um Bloco das Piranhas em Cantagalo (RJ), onde homens e mulheres se travestem assim como no Bloco Os Gatões, de União (PI); e em Belo Horizonte (MG) tem uma parcela do bloco Leão da Lagoinha que desde 1948 sai vestida de mulher e uma das inspirações é a lenda urbana da Loira do Bonfim.

Em Vitória (ES) tem os primórdios da escola de samba Pega no Samba, que tinha homens saindo travestidos, batendo lata pelas ruas e arrastando o pessoal no Bloco Pega Tudo. Por fim, no estado do Mato Grosso, tem uma manifestação cultural – não conectada ao carnaval – em que homens se travestem. É a Dança dos Mascarados, uma manifestação típica do município de Poconé, em que metade dos homens se travestem para dançar com a outra metade dos homens. A origem dessa festa é desconhecida, ainda que acreditem estar ligada aos indígenas naturais da região, e reúne elementos europeus, africanos e nativos.

Nesse minúsculo levantamento é notável como o caráter degradante da imagem da mulher toma conta do espírito da maioria dos blocos carnavalescos de rua. Além disso, a indumentária é sempre vulgar e desejável quando não depreciativa, objetificando o corpo feminino. Também é maioria essa manifestação em comparação com o movimento inverso, ou seja, mulheres travestidas de homens.

Isso me faz pensar sobre os reforços à imaturidade masculina e como lidamos com as repressões que o machismo impõe a nós também, especialmente no que se refere à afetividade e por extensão à sexualidade. Afinal, é quase sinônimo de “gayzisse” um homem demonstrar afeto e como ainda se sustenta a cultura de ofensa em comparar um heterossexual a um homossexual chamando-o de “viado”. Dessa forma, o travestir-se é entrar em contato superficial com a afetividade sem o já esperado julgamento e sem a necessidade de reafirmar a masculinidade.

Além disso, a mulher tem em seu guarda-roupas uma variedade que o masculino não possui. Além disso, ela pode fazer uso de “peças masculinas” sem que sua sexualidade seja posta em xeque. E ainda que isso aconteça, os tabus sociais manipulam as estruturas para que seja tolerável – é só pensar no fetiche tradicional do ménage. As maiores novidades da moda para o universo masculino desde os anos 1960 foram a regata, a bermuda e a bata.

Enfim, tudo é permitido porque é uma realidade com ares de fantasia, pois o carnaval parece habitar um espaço intersetorial de maleabilidade ímpar dos valores morais e dos limites deixando ao gosto do freguês o que é permitido e o que é proibido.

Ainda assim, alguns sinais de segurança se fazem presentes como o caso de sair sempre em bando a fim de não dar margem a interpretações equivocadas, o que me faz pensar que a justificativa de que o trans-fake funciona como um ativismo de gênero não se sustenta, tendo em vista haver diversas outras formas de desconstruir o machismo nosso de cada dia.

Esses pequenos detalhes evidenciam, acima de tudo, os limites brutais que a sexualidade pautada no binarismo de gênero significa e como rouba de cada um de nós o todo, ou seja, a humanidade.

 

Links e Referenciais Bibliográficos

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