Enquanto escrevo essas palavras a eleição nos EUA segue com a apuração de seus votos. Ao que tudo indica, Joe Biden, candidato do Partido Democrata, será eleito o 46º Presidente dos EUA com 306 votos no Colégio Eleitoral. Ao longo de quase uma semana de indecisão, enquanto as cédulas eram contadas, as emissoras aqui no Brasil apontavam os possíveis vitoriosos de cada estado por lá. Por isso mesmo, imagino que você já deva se sentir um expert a respeito do funcionamento do sistema eleitoral norte-americano.

Apesar disso, gostaria de levantar uma pergunta que talvez ainda necessite de algum esclarecimento: por que ele é assim?

De maneira rápida, devo dizer que a resposta se encontra escondida na própria alcunha daquela “nação sem nome”, afinal de contas os Estados Unidos não é chamado assim à toa. Se pararmos para pensar, entre a Declaração de Independência dos EUA, em 1776, e a Ratificação da Constituição, em 1788, os EUA não eram exatamente um país. Tratava-se, na verdade, da reunião de treze estados independentes e autônomos entre si.

Para ser bem honesto, entre 1776 e 1781 os EUA era exatamente isso: um grupo de treze ex-colônias, soberanas e autônomas, porém, que lutavam conjuntamente por sua independência contra a “tirania” de sua metrópole. Não por menos, ainda em 1776, as primeiras declarações de independência surgiram em cada uma dessas ex-colônias e, juntamente com isso, começaram a elaborar suas próprias constituições que foram responsáveis por estabelecer seus sistemas de governo e de escolha de seus representantes.

Em 1781, quase no final das guerras de independência, essas 13 ex-colônias resolveram enfim se reunir, mas ainda sem se converter nos EUA que conhecemos hoje. A opção naquele momento foi pela criação de uma Confederação, formada por um Congresso que reuniria os representantes oriundos de cada estado, em torno de uma espécie de Constituição que receberia o nome de Artigos da Confederação e União Perpétua entre os Estados.

Artigos da Confederação e União Perpétua entre os Estados.

Percebam que neste modelo não existe a figura do Poder Executivo, fato que possibilitou aos estados manter sua autonomia e soberania, sendo o Congresso responsável unicamente por deliberar sobre assuntos comuns a todos, como: política externa, tratados, impressão de dinheiro e guerras internacionais. As leis e impostos, por exemplo, seguiriam sendo um assunto que cada um dos estados deliberaria de maneira independente.

Com o fim dos combates com a Inglaterra, no ano seguinte, e a assinatura do tratado de paz de Paris, em 1783, a guerra começou a cobrar seu preço, o que levou os EUA a entrar em uma profunda crise econômica. Diante disso, uma série de saídas foram pensadas para se superar tal situação, tendo como a última delas a adoção de uma estratégia fundamentada na austeridade fiscal, o que envolve, não apenas controle de gastos, mas o aumento de impostos.

Em alguns lugares isso funcionou muito bem, como na Virgínia, o estado mais rico daquela Confederação. Porém, em outras regiões, como Massachussets, a coisa desandou, colocando em conflito o campo contra a cidade. A tensão chegaria ao limite no final de 1786 quando um grupo de produtores rurais, liderados por Daniel Shays, realizaria um levante contra a alta de impostos.

General Daniel Shays (esq.) e Coronel Joe Shattuck

A rebelião serviu de inspiração para grupos de outros estados, fazendo com que seus simpatizantes começassem a usar as bandeiras do movimento como plataforma eleitoral. Em Massachussets mesmo, John Hancock seria eleito governador em maio de 1787, com um discurso simpático ao afrouxamento dos impostos e prometendo libertar Shays, que havia sido preso em fevereiro daquele mesmo ano.

Ainda que a revolta tivesse sido contida, o medo de que esse sentimento de insatisfação se convertesse em uma rebelião de proporções nacionais tomou conta dos setores mais conservadores da confederação.

Um dos representantes desses grupos foi um advogado da Virgínia: James Madison. Para Madison tais levantes eram a prova cabal de que as democracias diretas possuíam um mal que as tornavam nocivas a si mesmas. Segundo acreditava, a democracia fazia com que as vontades populares fossem capturadas e manipuladas por líderes demagogos, capazes de mobilizar a maioria do povo em prol de seus próprios interesses, fazendo os eleitores acreditarem em paixões passageiras ao invés de defender valores atemporais, construídos ao longo do tempo e resistentes ao teste da história.

Era, portanto, necessário encontrar um antídoto que cortasse o efeito desse veneno, e esse remédio respondia pelo nome de República. Para Madison, apenas uma República Federativa seria capaz de evitar que a democracia destruísse a jovem América. E essa república deveria representar a união de todos os estados em um único país de fato, com um Congresso formado pelos representantes de cada unidade da federação, deliberando por assuntos comuns; um poder executivo capaz de rivalizar com as lideranças locais e conter futuras rebeliões; e um judiciário que regulasse as forças estabelecidas entre os poderes, evitando que um deles se convertesse em tirano.

Foi com essas ideias em mente que, entre maio de 1787, três meses após a prisão de Daniel Shays, e setembro daquele mesmo ano, um Congresso Constituinte se reuniu na Filadélfia, formado por representantes de todos os estados para debater sobre a formulação de uma nova Constituição que colocasse em prática o tal modelo pensado por Madison, mas também de outros nomes, como James Wilson, Benjamin Franklin, Alexander Hamilton e John Jay.

Na Filadélfia, um dos temas que mais tomou tempo entre as discussões foi sobre como seria feita a escolha do presidente. E foi então que eles se depararam com dois problemas. Primeiro, como garantir que a eleição do chefe do executivo respeitasse a autonomia dos estados? Ou seja, como fazer com que ele não fosse eleito apenas pelo estado mais populoso? Se fosse assim, o presidente poderia dedicar sua atenção aos estados maiores sendo sequestrado pelos interesses daquela unidade. E, segundo, como fazer com que ele não fosse eleito com um discurso demagogo, capturando as paixões coletivas e abandonando suas convicções ao sabor de sua popularidade?

Congresso Constituinte 1787 (Filadélfia)

Congresso Constituinte 1787 (Filadélfia)

A solução para todas essas questões encontra respostas na formação do famoso Colégio Eleitoral. Afinal de contas, por meio dele foi possível solucionar a questão da desproporcionalidade populacional, uma vez que o número de delegados que cada estado teria direito (na formação do colégio eleitoral) seria proporcional ao tamanho de sua população. Desta forma, os estados maiores seguiriam tendo um peso maior na escolha do presidente.

Por outro lado, os estados menores não queriam perder a sua importância no processo eleitoral responsável pela escolha daquele que também seria o seu líder maior. A solução para isso foi a de garantir um número mínimo de delegados para todos os estados independentemente de seu tamanho. Como, na dinâmica do colégio eleitoral, o voto de um delegado pode ser mais decisivo do que o voto de milhões de pessoas, a garantia de que sempre teriam direito a um delegado fazia com que nenhum dos estados menores fosse deixado de lado ao longo da campanha e da futura administração.

Por fim, um último problema se impôs para que todos os estados aceitassem tal proposta. Naquele momento, a população do sul do país era composta por 40% de pessoas escravizadas que, como bem sabemos, eram apartadas de todos os direitos fundamentais responsáveis pelo reconhecimento de sua humanidade. No entanto, desconsiderar a existência dessas pessoas faria com que os estados localizados naquela faixa de terra tivessem um número menor de delegados em relação ao norte. Teriam, portanto, menos força na escolha do futuro presidente. A solução para isso foi a aprovação da infame lei dos 3/5 que determinou que, para fins de cálculos na composição do colégio eleitoral, as pessoas escravizadas deveriam ser consideradas em 3/5 de sua existência.

O Colégio Eleitoral, portanto, possibilitou que se encontrasse uma fórmula pela qual todos os estados estivessem de acordo para a escolha do mandatário da União. No entanto, a autonomia dos estados seguiria intacta e, por isso, assim como os impostos e as leis, todos eles deveriam criar suas próprias regras e fórmulas pelas quais escolheriam o presidente. Por isso, é possível dizer que a cada quatro anos, os EUA realizam não apenas uma, mas dezenas de eleições simultâneas e independentes em cada qual um estado escolhe o seu presidente. É por essa razão que o candidato que vence em um estado ganha o direito de capturar todos os votos do colégio eleitoral aos quais ele tem direito, afinal, ele foi o presidente escolhido pelos eleitores daquela unidade da federação.

Essa união possível foi sacramentada ainda na confecção da Carta Magna do país. Em outubro de 1788, acatando a sugestão do congressista James Wilson, a Constituição dos EUA recebeu as seguintes palavras que abririam seu preâmbulo “Nós o Povo dos Estados Unidos da América…”. Naquele momento, não sabiam que seria assim que a nova nação passaria a ser chamada até os dias de hoje. Desde então o dilema entre centralismo e descentralização bem como os limites do tamanho do governo em relação aos estados seguem sendo temas centrais nas discussões políticas daquele país. Esteve presente na discussão da Guerra Civil (1861 – 1865), do New Deal (1932 – 1940) e, mais recentemente, na questão do Coronavírus.

As eleições de 2020 podem ter sido pedagógicas em torno do funcionamento eleitoral norte-americano, mas do ponto de vista de um brasileiro, soa estranho pensar que não exista um sistema eleitoral unificado e que cada estado possui a sua própria forma de escolher o presidente da nação. Ainda que a crítica tenha seu fundamento, resta-nos lembrar que a garantia da autonomia foi fator fundamental para que os treze estados se tornassem, enfim, unidos.