Eu, como professor, gosto de dar exemplos utilizando, quando se encaixam, alguns filmes. Em certa aula, resolvi falar sobre o filme GATTACA, do longínquo ano de 1997. Para minha surpresa, ninguém da sala de aula tinha sequer ouvido falar ou assistido ao filme. Claro que isso me deixou um pouco chocado. Você já assistiu ao filme?

Para quem assistiu, vale lembrar que o nome GATTACA é um acrônimo das 4 bases nitrogenadas: Citosina, Guanina, Timina e Adenina: (Guanina, Adenina, Timina, Timina, Adenina, Citosina, Adenina).

 

Bem, basicamente o plot do filme é sobre um futuro em que as pessoas são “escolhidas geneticamente” em um laboratório governamental. Logo, há opção de escolher os “melhores genes”, com a finalidade de evitar algum tipo de doença genética, por exemplo. Por outro lado, se a pessoa foi concebida de forma biológica (normal), ela é considerada inválida e “excluída” da sociedade.

Ou seja, se você foi produzido e escolhido em um laboratório, há uma grande chance de ter sucesso na vida, não sofrer preconceitos e não apresentar nenhuma doença hereditária ou “defeitos genéticos”, como a miopia. Agora, se você foi concebido de forma natural, há uma grande chance de ficar à mercê da sociedade e realizar serviços que nenhuma outra pessoa deseja realizar (essa descrição soa familiar?).

Com esse filme em mente, será que estamos chegando ao mesmo destino? Em que os governos controlam os nascimentos, os quais são escolhidos de forma criteriosa, e cada nascimento deve ser gerado da melhor forma possível e sem defeitos genéticos.

Estamos nos aproximando da distopia cinematográfica? Bom, temos como exemplo um caso que repercutiu muito ao final do ano de 2018.

Nesse episódio, um pesquisador chinês afirmou que “produziu em laboratório” duas crianças com um gene modificado para que conseguissem uma imunidade contra o vírus da imunodeficiência humana (HIV). Esse evento só foi possível pela descoberta de um mecanismo que facilita a alteração de um determinado gene, que é uma espécie de “maquinaria bacteriana” chamada de CRISPR-Cas9.

Assim, o pesquisador alterou o gene que tem como objetivo a produção um receptor específico para um tipo de quimiocina, chamado de CCR5. De tal forma que, ao alterar essa proteína a pessoa se torna imune ao HIV, pois o vírus não consegue mais infectar as células necessárias para sua replicação. Para mais informações sobre, indico o Spin de notícias nº 487, sobre a cura do HIV.

Além de causar toda essa repercussão, vários pontos foram levantados, como a questão bioética e leis referentes ao uso de humanos para pesquisas clínicas. Porém, além disso, não há uma certeza de que esse procedimento realmente funcionou e deixou as crianças imunes ao vírus. Nesse sentido, para realizar alterações diretamente do embrião, há muito o que se pesquisar e debater. E, muito provavelmente, isso nunca será permitido, pelo menos espero.

Entretanto, um futuro muito próximo é a utilização do CRISPR-Cas9 para alterar genes pontuais de pessoas que sofrem de patologias fatais, como a síndrome de Hutchinson-gilford, que tratei no Spin de Notícias número 496.

Basicamente, terapia gênica é a transferência de um material genético para um paciente, com a finalidade de tratar uma doença. Logo, dependendo do tipo da patologia, pode variar como o gene será introduzido, se o vetor administrado será “in vivo” ou “ex vivo”. No primeiro caso, in vivo, o vetor é injetado diretamente no organismo do paciente. No segundo caso, ex vivo, células são retiradas e alteradas, como células tronco hematopoiéticas.

Um dos primeiros casos de terapia gênica ocorreu ao final dos anos 1990, em que foi realizada uma transferência gênica para tratar a SCID ligada ao X (imunodeficiência combinada grave ligada ao X). Essa patologia é uma desordem recessiva que acarreta em uma mutação na codificação de um receptor de citocina. No estudo clínico esse tratamento mostrou-se algo muito promissor. Depois, foi observada uma correção das células T (uma das principais células de defesa do nosso organismo) e uma restauração parcial das células NK (Natural Killer) e linhagem de linfócitos B.

Por consequência, houve uma completa restituição do sistema imune, incluindo respostas a vacinas e combate a infecções. Entretanto, dos 20 pacientes, cinco, eventualmente, desenvolveram leucemia das células T como resultado da inserção de um vetor oncogênico.

Esse estudo ocorreu ainda no século passado e cada vez mais estamos avançando em formas de alterar o gene de uma pessoa.

Agora, vou relatar sobre um caso que pode alterar a forma como tratamos as síndromes genéticas. Por mais que não sejam usadas técnicas de CRISPR-Cas9 ou um vetor para “fixar” o gene no DNA da pessoa, esse experimento pode ser útil para observarmos até onde podemos chegar ao tratar um individuo ainda no útero.

Em um estudo publicado em abril de 2018, foi feito um relato de dois casos clínicos que resultaram em uma melhora clínica diante de uma síndrome fatal. Nessa situação, foram usadas para o trabalho duas pacientes grávidas e que tinham um histórico de filhos com um tipo de doença genética grave. A patologia em questão é a Displasia Ectodérmica Anidrótica ligada ao X (DEALX). Nesse caso, há uma alteração no gene da proteína chamada de ectodisplasina-A (EDA). Essa molécula está relacionada com a regulação e formação de estruturas ectodérmicas (que forma a pele, córnea, melanócitos, entre outros órgãos).

De forma simples, esses pacientes apresentam uma hipoidrose (diminuição da sudorese), podendo levar à hipertermia e ao óbito. Também, exibem uma menor quantidade de dentes (hipodontia), ausência de pelos (hipotricose) e unhas distróficas ou ausentes. Esses sinais e sintomas são irreversíveis com tratamentos atuais.

Pensando nisso, foram selecionadas duas mulheres grávidas para um tratamento experimental. Criou-se uma proteína recombinante, que apresenta uma porção de um anticorpo (IgG1) e uma porção da proteína que sofreu a mutação, a ectodisplasina-A, a qual se deu o nome de Fc-EDA.

Para exemplificar, vou utilizar apenas um dos casos, em que foi feia a pesquisa em uma mulher de 32 anos que já tinha um histórico na família de DEALX. Por esse motivo, grávida de gêmeos, havia uma preocupação do desenvolvimento da doença nos filhos. Além disso, seu filho mais velho já apresentava a doença, e por meio de um ultrassom, era possível observar algumas alterações patológicas iniciais nos fetos. Logo, os pais aceitaram participar do tratamento. Por conseguinte, foi feita a retirada de uma pequena quantidade do líquido amniótico (amniocentese) e, em seguida, o líquido foi reintroduzido, juntamente com uma primeira dose do Fc-EDA na cavidade amniótica de cada feto (gêmeos bivitelinos), na semana 26 da gestação. Após, na semana 31, foi injetada uma segunda dose do tratamento.

Posteriormente, a mãe entrou em trabalho de parto prematuramente. Foi constatado que a produção de suor produzido pelas duas crianças era similar ao de um recém-nascido saudável. Mais tarde, ao atingirem 22 meses de idade, nenhuma das duas crianças desenvolveu casos de hipertermia (que pode levar à morte), ou problemas respiratórios. Apesar de o caso relatado não ser, de forma direta, uma alteração genética, é um tratamento intraútero plausível.

Para finalizar, ao pensarmos em tratamentos realizados anteriormente ao nascimento, seja via uterina, ou ainda em uma placa petri, estamos cada vez mais rumo ao futuro distópico de GATTACA. Porém, no caso do filme, as organizações que realizam os experimentos são controladas pelo governo. Agora, cabe a nós, como humanidade, discutirmos as diversas visões em que um simples feto geneticamente modificado pode levantar, como já o fez.

 

 

Referências:

 

https://www.deviante.com.br/podcasts/spin/spin-de-noticias-496/ – hutchinson gilford

https://www.deviante.com.br/podcasts/spin/spin-de-noticias-487/ cura para o hiv

Coutelle, C. Na importante step on the long path to clinical application of in utero gene therapy. Gene therapy. 2018.

Schneider, H. Prenatal correction of X-linked hypohidrotic ectodermal dysplasia. The New England Journal of Medicine. 2018.

Anguela, X. & High, K.A. Entering the modern era of gene therapy. Annual Review of Medicine. 2019.