Aprendemos a temer Iahweh, entendemos que o amor se rompe e não catequiza, enquanto que o medo é um terror perdurável, e se não tiver aprendido nada, sugiro a leitura de nosso texto anterior, em que apresentamos os usos religiosos, políticos e militares do medo, no entanto, é necessário falar sobre nosso dia-a-dia e como o controle pelo medo é conduzido.
Em uma tentativa de ensinar aos pequenos indígenas os perigos de sair à noite pela mata, Daniel Mundukuru, indígena da etnia Munducuru, multigraduado e escritor, afirma (2010) que tribos indígenas criavam histórias míticas nas quais entes mágicos das florestas arrancavam os olhos daqueles que desafiavam a noite. Tais histórias, permeadas pelo medo, tinham a dupla função de preservar a sobrevivência da tribo e educar os mais jovens.
Contudo é um equívoco pensar que somente no passado a humanidade recorreu a personagens míticos para transmitir ensinamentos por meio do medo. Hoje em dia ainda é comum ouvir adultos recomendarem que as crianças se comportem adequadamente, caso contrário, poderão ser visitadas pelo ‘bicho-papão’ ou pelo ‘boi da cara preta’. Os perigos dos mares também são, ainda, representados na figura da Iara e outras sereias. Ou ainda em forma de cantigas para ninar, em que os cuidadores alertam para que as crianças durmam rapidamente, afinal, a ‘Cuca vem pegar’.
Além dos personagens míticos, existem os reais personagens do medo. Crianças não devem brincar sozinhas na rua, não por conta dos reais perigos que isso possa representar, mas pelo temor que os personagens do imaginário popular como o ‘homem do saco’ passe e as leve. E nas escolas, dentro das salas de aula, o silêncio é barganhado com ameaças de suspensão ou de possíveis visitas à diretoria. Já em ambientes públicos, a criança não nunca pode fazer algo proibido, não pelos seus reais motivos, mas porque sempre ouve que o ‘moço está olhando’.
Esse uso do medo como punição ou ameaça é o que Sidman (2001) descreveu como coerção, o “uso da punição e da ameaça de punição para conseguir que os outros ajam como nós gostaríamos e à nossa pratica de recompensar pessoas deixando-as escapar de nossas punições e ameaças”.
O artifício usado pelos primeiros agrupamentos humanos pode ter começado, talvez, de forma ingênua, para orientar os mais jovens sobre os perigos existentes. Mas, uma vez inculcado no imaginário das pessoas, o que antes exercia uma função de preservação passou a cumprir uma função pedagógica de controle. A função pedagógica incorporou o controle como uma de suas partes; o controle, antes meio para a ação pedagógica, tornou-se fim desta ação.
As relações do cotidiano mostravam empiricamente que o medo funcionava, e funcionava muito bem. E tal como os agrupamentos sociais foram paulatinamente se transformando em estado e a propriedade coletiva se transformando em propriedade privada, também o conhecimento que era comum a todos se tornou propriedade da nascente classe dominante. Consequentemente, também sua produção e transmissão.
O que fora conhecimento de todos, compartilhado para defesa coletiva do grupo, transformou-se em conhecimento restrito utilizado para controle e dominação a serviço dos interesses de poucos.
Cultura do Medo
Assaltantes fazem arrastão em restaurante em Pinheiros.
Tentativa de execução – Empresário baleado no Itaim-Bibi.
Tiroteio em shopping deixa três baleados.
Sequestro acaba após 22 km de perseguição. (BERGAMASCO, 2012)
Os trechos acima são títulos de reportagens de jornais que foram apresentados na matéria “Somos todos reféns”, da edição especial “Os retratos do medo” da Revista Veja São Paulo. Nessa reportagem recheada de números e estatísticas, o que predomina é a mensagem de que ninguém está seguro, principalmente os moradores de grandes cidades como São Paulo.
Levantamento exclusivo mostra que 71% dos entrevistados se sentem amedrontados por viver numa cidade onde ocorrem seis assaltos por dia a residências, um roubo ou furto de carro a cada seis minutos e o dobro de homicídios de Nova York (BERGAMASCO, 2012).
A constante veiculação de informações possivelmente amedrontadoras é uma forma de manter a população distraída e assustada, tornando-a potencialmente mais distante da possibilidade de reflexões mais aprofundadas sobre as causas dos problemas sociais que enfrentamos.
“O maior problema da cultura do medo é que as pessoas ficam com níveis mais altos de ansiedade, que atrapalham seu sono, seu raciocínio ou mesmo seu envolvimento na comunidade”. (GLASSNER, 2003)
O sociólogo estadunidense Barry Glassner defende em seu livro, Cultura do Medo (2003), que a população dos Estados Unidos da América teme cada vez mais o que deveria temer cada vez menos. Ao longo dos capítulos apresenta dados que demonstram as repetidas agressões a que são submetidos por meio de uma superveiculação de notícias alarmantes, como no caso da redução de 20% do números de homicídios cometidos entre os anos de 1990 e 1998, mas com um aumento de 600% de histórias sobre assassinatos nos noticiários das redes de televisão – Bad boys, bad boys / whatcha gonna do, whatcha gonna do / when they come for you -, fazendo com que o homicídio, a 11ª causa mortis do país, recebesse aproximadamente a mesma quantidade de cobertura que recebeu a doença cardíaca, a primeira na lista de causa mortis.
Fato similar ocorre com a cobertura sobre fatores de risco associados a doenças graves e óbitos, na qual o consumo de drogas, considerado como o menor fator de risco, tem tido praticamente tanta atenção quanto a falta de exercícios físicos e adequada dieta alimentar, o segundo principal fator de risco.
Em relação à sua pergunta inicial o autor responde:
A resposta sucinta a por que os americanos cultivam tantos medos ilegítimos é a seguinte: muito poder e dinheiro estão à espera daqueles que penetram em nossas inseguranças emocionais e nos fornecem substitutos simbólicos. (GLASSNER, 2003, p. 40)
É, por exemplo, nas guerras que muito poder e dinheiro estão em jogo e nesses momentos decisões políticas arbitrárias podem ser amplamente apoiadas por uma população amedrontada. Nessa situação, o povo pode concordar com ações que em primeiro plano parecem resolver a situação, mas que, se fossem analisadas com rigor e amplamente discutidas, seriam ações que jamais teriam apoio popular. Assim afirma Goldstein, o inimigo do sistema e do Grande Irmão, no romance 1984:
A consciência de estar em guerra e, portanto, em perigo faz parecer natural a entrega de todo o poder a uma pequena casta: é uma inevitável condição de sobrevivência (ORWELL, 1980, p.180).
A “Guerra contra o Terror”, liderada pelos Estados Unidos logo após os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono, no 11 de setembro de 2001, é claro exemplo dessa “consciência de estar em guerra” e da excessiva veiculação de notícias alarmantes.
A população dos Estados Unidos da América dificilmente aceitaria enviar massivamente seus filhos para um conflito armado após a Guerra do Vietnã; no entanto, concordou com a investida contra o Afeganistão em outubro de 2001 e ao Iraque em 2003 e que nunca mais cessaram, desde então.
Os ataques ocorridos no dia 11 de setembro de 2001 e a ameaça de novos ataques, como a ameaça de contaminação biológica do Antraz ou armas de destruição em massa de Saddam Hussein, criaram um medo generalizado na população estadunidense, que correu aos mercados para comprar provisões e equipamentos de sobrevivência, preparando-se para a possibilidade de novos ataques.
Nas palavras de um congressista estadunidense, o psiquiatra Jim McDermott – ao se referir a um painel de ameaça terrorista usado pelo governo dos EUA entre 2002 e 2011 – é possível conseguir que uma população faça qualquer coisa quando amedrontada.
O medo funciona sim. Você pode fazer com que o povo faça qualquer coisa quando estão com medo, e você os faz temer criando uma aura de infinita ameaça. O governo tem brincado conosco, eles sobem o alerta para o nível laranja e depois para o nível vermelho e, em seguida descem para o laranja novamente. […] O povo americano vem sendo tratado assim, é realmente engenhoso e desagradável o que tem sido feito. Na minha opinião isso irá continuar enquanto essa administração estiver no comando… De tempos em tempos estimularão todos a sentirem medo, ‘no caso de terem se esquecido’. Não chegará nunca verde ou azul, não chegará nunca. (McDermott, 2004)
Anos se passaram, o medo das armas iraquianas de destruição em massa, que não existiam, diminuiu; os inimigos Osama Bin Laden, responsabilizado pelos ataques de 11 de setembro, e Saddam Hussein foram mortos, novos conflitos na região emergiram e novas ameaças urgentes apareceram. Mais uma vez ressoa Goldstein afirmando sobre a importância da população ter a “consciência de estar em guerra”.
Nesse período, os Estados Unidos com sua força política e bélica promoveram no mundo inteiro uma atualização da Pax Romana, impondo que países de todo o mundo se posicionassem a favor da “Guerra contra o Terror”, caso contrário seriam declarados inimigos do desenvolvimento da paz mundial e, então, caçados como terroristas, em mais um claro uso do medo que só a maior potência econômica e bélica do planeta poderia causar.
Referências
BERGAMASCO, Daniel. Somos todos reféns. Veja São Paulo. Edição de 29/02/2012. São Paulo. Editora Abril, 2012.
GLASSNER, Barry. Cultura do Medo. (L. Knapp, trad.). São Paulo: Francis, 2003.
McDERMOTT, Jim. Depoimento, transcrito e traduzido pelo autor, concedido no filme Fahrenheit 9/11, 2004.
MUNDUKURU, Daniel. A Caveira-Rolante, a Mulher-Lesma e outras histórias indígenas de assustar. São Paulo: Global, 2010.
ORWELL, George. 1984 – 13ª Ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1980.
SIDMAN, Murray. Coerção e suas implicações. Campinas: Editora Livro Pleno, 2001.
Henrique Castro. O famigerado Kpeta é nerd e gosta de contar piadas, causos e trocadilhos, é psicólogo e professor, mas hoje trabalha em escritório. Contudo queria ter sido piloto de avião ou rockstar ou filósofo, mas agora acha que quer ser cineasta.