Alerta: Esse texto contém um conteúdo sensível e adulto e pode não ser apropriado para todas as audiências. O filme do qual o texto trata tem classificação indicativa de 18 anos.
O filme “Pobres Criaturas” (2023) com direção de Yorgos Lanthimos foi vencedor de vários prêmios Oscar. Confesso que nunca tinha ouvido falar, mas depois de tanta repercussão o filme despertou certo interesse. O que eu não sabia é o quanto ele me encantaria por sua trama cativante e que dentro dele eu encontraria tantos temas relacionados ao processo do desenvolvimento psicossocial humano.
Pobres Criaturas é uma mistura fascinante de ficção científica, fantasia e comédia. A trama começa quando um cirurgião renomado, Godwin Baxter, toma uma decisão ousada: reviver o corpo de uma jovem chamada Victoria, vítima de suicídio. Victoria estava grávida, então ele decide realizar um procedimento bizarro: transplantar o cérebro do feto para o corpo dela. De acordo com Godwin, não seria justo reviver a mulher que decidiu tirar a própria vida, mas que ele ainda assim queria dar uma segunda chance àquela vida que ela estava para gerar.
Godwin, que sempre apreciou e seguiu à risca o método científico, não queria que ela saísse do ambiente controlado do laboratório, com medo das variáveis confundidoras atrapalharem a validade do seu experimento. Portanto, as primeiras fases de seu desenvolvimento são dentro de uma casa laboratório de seu pai. Parte do seu experimento também envolveu o afeto que Godwin estabeleceu com Bella Baxter, o que ajudou no seu rápido progresso.
A princípio, durante o estágio sensório-motor de Jean Piaget, Bella Baxter possui uma fala extremamente limitada e movimentos rígidos, típicos de uma criança aprendendo a andar e falar. Entretanto, ao longo de sua jornada, Bella atinge outros marcos, como o período pré-operatório. Nessa fase, a comunicação já está melhor desenvolvida, e a criança inicia seu questionamento ao redor do mundo em que vive. No filme, é possível perceber esse marco quando Bella inicia sua viagem à Europa com Duncan Wedderburn, um homem que influencia Bella a se aventurar na vida antes de ter sua mão entregue à Max McCandles, seu futuro marido. Ao lado de Duncan, Bella deseja satisfazer seus desejos e experimentar novos sentimentos, como demonstrada por sua grande vontade e liberdade perante ao sexo.
Durante sua travessia de navio, podemos ver sua visão de mundo se expandindo conforme ela é apresentada à filosofia, ao patriarcado, ao capitalismo e às normas sociais e de gênero. Ela vai de uma mulher ingênua e encantada pelo mundo ao seu redor para uma pessoa que entende o mundo da forma que ele realmente é. Bella, mesmo assim, não se deixa abalar, e seu jeito otimista ainda procura melhorar o mundo. Por exemplo, quando ela se depara com a pobreza extrema de uma determinada comunidade, ela resolve pegar todo o dinheiro de seu amante para ajudá-los. Uma fala muito marcante de Bella é “se eu entendo sobre o mundo, então posso melhorá-lo”.
O filme também pode ser lido como um empoderamento feminino. Bella é uma personagem livre, pansexual, não-monogâmica, e que não entende certos tabus relacionados ao sexo. Um bom exemplo disso é quando Bella está em uma mesa de jantar com seus novos amigos e expõe seu apreço à parte fálica de Duncan.
Mesmo tendo gostado muito de seus momentos aventureiros com Duncan, ela aprende a pôr um fim nessa relação, por entender que nele há traços fortes de controle, possessividade e ciúmes. Outro exemplo de empoderamento é visto quando Bella passa um tempo trabalhando em uma casa noturna, e questiona a dona o porquê de serem os homens quem tem que escolher com quem vão passar a noite, e afirma que isso deveria ser uma escolha da mulher.
Pobres Criaturas é encantador. É como se pudéssemos ver toda uma construção de identidade de uma pessoa sob uma ótica experimental e de um jeito acelerado. Somos um ser social, e nossa construção é moldada a partir do ambiente em que vivemos, e o filme deixa isso explícito. Por ter passado tanto tempo dentro de um laboratório, Bella não entende porque as pessoas se conformam tanto às relações abusivas, porque existem tantos manuais sobre odo que é certo e errado, ou porque nós não podemos só sermos mais autênticos com quem nós realmente somos e com o que nós realmente gostamos. É super instigante ver a espontaneidade de Bella quando ela demonstra seu jeito único de dançar, falar e reagir aos acontecimentos. Porém, nada disso interfere na sensibilidade da personagem e na preocupação que ela possui com o outro.
Bella Baxter é uma personagem incrível que tenho certeza que vai servir de inspiração para muitas pessoas. Ela nos faz questionar regras pré-estabelecidas, e nos faz acreditar que se alguém as determinou no passado, elas estão sim passíveis de mudança. Ela nos faz sentir aliviadas de que não estamos sozinhas nessa, e que podemos sim ser livres e escolher nosso próprio caminho. Esse filme, apesar de cenas extraordinariamente exageradas, traz um ponto importantíssimo para debate: quem é você antes de o mundo dizer quem você deveria ser?