No ano de 2022, tivemos a oportunidade de acompanhar notícias sobre o piso salarial da enfermagem. Essa era uma época de muita expectativa e apreensão a todos os profissionais da área. Infelizmente o desfecho não foi tão favorável aos diversos segmentos, como podemos acompanhar [1]. Atualmente, outra classe profissional parece estar indo para o mesmo caminho.

Refiro-me à classe dos profissionais em Vigilância Sanitária. Muitas questões atravessam e contrariam a possibilidade de um piso salarial decente na categoria. No texto de hoje, iremos entender um pouco mais sobre essa situação. 

A Vigilância Sanitária é a instância do Sistema Único de Saúde (SUS) responsável pelo controle de riscos, prevenção e promoção da saúde [2]. Ela se realiza no sistema de maneira regionalizada e hierarquizada para mitigar potenciais sinistros oriundos de práticas, processos, técnicas e tecnologias que possam oferecer perigos à saúde coletiva. É a única instância do SUS com poder de polícia para garantir o controle sanitário da produção e comercialização de bens.

Por envolver um complexo número de fatores, o trabalho contínuo da vigilância sanitária envolve uma ampla gama de recursos e agentes, interseccionados com outras entidades públicas. Veterinários, nutricionistas, farmacêuticos e biomédicos são apenas alguns representantes mais comuns do quadro de saúde desse órgão. E como polícia administrativa, não é tão incomum que outras entidades policiais requisitem ações conjuntas: Polícia Científica, Civil, Militar, entidades de Meio Ambiente e Agropecuária, Bombeiros e até mesmo Polícia Federal. Todas podem precisar de apoio do órgão em algum momento.

A vigilância em si compreende estabelecimentos que comercializam, fracionam, vendem, fabricam ou armazenam produtos de interesse à saúde, como: alimentos, dispositivos e tecnologias médicas, cosméticos, saneantes, bancos de sangue, células, tecido e órgãos, medicamentos, produtos de higiene pessoal e agroinsumos. Ambientes como hotéis, motéis, pousadas, locais de ensino, unidades de saúde, laboratórios, casas de repouso, comunidades terapêuticas, hospitais, clínicas e consultórios também precisam passar pela inspeção sanitária. Pode-se perceber a complexidade deste tipo de atividade. Poucas entidades públicas precisam lidar com tão grande ampla gama de atores.

Conseguimos observar que a Vigilância Sanitária possui um aspecto muito importante para nosso ordenamento e cultura em saúde no Brasil. Porém, todo esse aspecto muitas vezes é nublado por algumas inconsistências na maneira como a governança trata a entidade: até hoje não existe um piso salarial definido para a vigilância sanitária em âmbito federal.

 

 

Imagem um. Notícia do governo do Paraná afirma que a Vigilância Sanitária já inspecionou mais de 17 mil estabelecimentos no estado [3]. O órgão está presente direta e indiretamente na promoção da qualidade e melhoria profissional em diversas empresas. Na figura, podemos observar dois técnicos de jaleco e touca de cabelo prestes a entrar dentro de uma câmara frigorífica.

As entidades municipais de vigilância sanitária, sobretudo em cidades mais afastadas e de interior, precisam lidar diariamente com a defasagem salarial. O principal problema que atravessa e desmotiva os profissionais é a ausência de um piso salarial, já existente em outras atividades de Vigilância em Saúde — escopo maior que engloba a Vigilância Sanitária. 

Os agentes comunitários de saúde e de combate às endemias já possuem regulamentação e piso salarial em âmbito federal desde 2006 (lei 11.350/06 [4]), fixado em dois salários mínimos. Todos os agentes de todas as cidades recebem pelo menos esta quantidade. Os municípios que não conseguem pagar este valor recebem verba da União só para manter o quadro de funcionários com esse salário base. Esse é o objetivo do projeto de lei 1126/2021 para os agentes de vigilância sanitária e de saúde indígena.

O PL é de autoria de Wilson Santiago (PTB-PB) e prevê equiparar, a fim de remuneração, os agentes de vigilância sanitária e de saúde indígena com o salário base dos agentes comunitários de saúde. O equivalente a dois salários mínimos pode ser pouco para muitos municípios, mas já é representativo para todos os agentes, principalmente em cidades do interior, fronteiriças ou de pequenos municípios. A sustentabilidade da atividade nesses locais pode depender desse fomento.

Segundo o deputado, a lei de 11.350/06 foi muito restritiva e injusta ao não reconhecer os agentes de vigilância sanitária no âmbito da saúde da família, afinal os mesmos são responsáveis por desempenhar as competências da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), cuja importância vem sendo cada vez mais sentida nos últimos tempos.

Em nosso século, é esperado que mais agravos decorrentes de crises sanitárias aconteçam, sobretudo da natureza mutagênica dos vírus, da disseminação de superbactérias, de catástrofes climáticas, da disseminação de produtos e tratamentos com base em micro e nanotecnologia, alimentos e medicamentos nanoencapsulados, da manufatura 3D de produtos alimentícios, inteligência artificial em procedimentos cirúrgicos, dark kitchens, da incorporação medicinal da fagoterapia, imunoterapia e, inclusive, da utilização de gases tóxicos em tratamentos terapêuticos, como a controversa ozonioterapia.

Já pensou no quanto o profissional precisará se reinventar neste século? Sem o piso salarial, é provável que o quadro técnico precise buscar outras oportunidades de trabalho, seja com horas extras em outros serviços ou até mesmo saindo da instituição. Lembrando que os técnicos citados podem ganhar muito mais na iniciativa privada, fazendo com que o órgão perca suas competências para lidar com os novos riscos.

Com todos esses fenômenos, é esperado que a vigilância sanitária possua cada vez mais repertório de atuação constitucional e poder de polícia ampliado em suas atividades, atuando em muitas frentes no combate para evitar a disseminação de agravos. Em algumas dessas frentes de batalha, inclusive, é comum que a vigilância sanitária e demais agentes de saúde tenham atividades conjuntas.

 

 

Imagem dois. Vigilância Sanitária orienta sobre cuidados com alimentos em festejos juninos [5]. As entidades sanitárias — que fazem parte do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) — são as autoridades de Estado com competência privativa para lidar e prevenir riscos de segurança de alimentos e de serviços de saúde. Na figura, observamos uma técnica em fiscalização prestes a pôr a mão em bebidas dentro de um frigobar verde e de plástico. As bebidas estão sobre uma camada de gelo.

O caso da pandemia de covid-19 reforça ainda mais o valor desse órgão de saúde em períodos conturbados. O mesmo desempenhou atividades em bares, restaurantes, clínicas e consultórios durante períodos substanciais da quarentena, diminuindo assim a taxa de ataque do vírus contra a população.

Esperando prováveis epidemias, fraudes e condições insalubres, o desastre climático-ambiental do Rio Grande do Sul (disponível aqui) também é um fenômeno de interesse sanitário. Provavelmente assim também será com a monkeypox, que recentemente virou emergência de saúde mundial. A vigilância sanitária novamente estará na linha de frente dessas situações.

Para aprovação do PL, o projeto ainda precisa passar pela Comissão de Finanças e Tributação (CFT) e também pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) dentro do Congresso. Depois precisa ser aprovado pelo Senado. O mesmo está estacionado na CFT desde dezembro de 2023, marcando o maior intervalo sem pareceres desde o início do projeto.

Quando perguntado sobre o andamento do processo, o relator atual, deputado Hugo Motta (REPUBLICANOS-PB), não emitiu nenhuma resposta. Não há ainda nenhum prazo para ser votado naquela comissão. O silêncio do político é estarrecedor à comunidade da vigilância.

Enquanto esperam, os agentes precisarão lidar com um ambiente em plena mudança. O piso é um valor minoritário, mas simbólico e substancial aos municípios deficitários. É apenas uma parcela em comparação com toda a atualização que será requerida do profissional com todas essas alterações em nosso mundo.

Porém, como mostrou o caso da enfermagem, a saúde — física ou mental — dos profissionais de saúde não é prioridade de nossa governança. Formamos uma cultura em que os eventos ocorrem antes de tomarmos as precauções cabíveis, ainda mais quando se trata de uma classe trabalhadora. Ao que parece, no país em que vivemos, a preferência por dar margem ao acaso é maior do que dar um piso salarial.

Referências
[1]: WELMA, Jéssica. Enfermeiros do Ceará fazem protesto contra suspensão do piso da enfermagem. Portal Diário do Nordeste, 04 jan. 2023. Disponível aqui.
[2]: COSTA, Ediná Alves. Vigilância Sanitária: temas para debate. EDUFBA, 2009.
[3]: SAÚDE. População protegida: Vigilância Sanitária já inspecionou 17 mil estabelecimentos em 2024. Portal Governo do Estado do Paraná, 05 ago. 2024. Disponível aqui.
[4]: SOUZA, Murilo. Projeto equipara agentes de vigilância sanitária a comunitários de saúde e de combate a endemias. Portal Câmara dos deputados, 03 ago. 2021. Disponível aqui.
[5]: SERGIPE, Governo do Estado. Vigilância Sanitária orienta sobre cuidados com alimentos e bebidas durante os festejos juninos. Portal Governo do Estado de Sergipe, 15 jun. 2024. Disponível aqui.