Interseções entre música e política não são exatamente um assunto novo. Quase todos conseguimos lembrar facilmente de participações de artistas pop em campanhas eleitorais ou de canções que se tornaram símbolos de movimentos sociais específicos. Interseções entre videogames e política talvez estejam em um estágio de maior sutileza, mas ainda assim pode-se argumentar que existem e se tornam cada vez mais proeminentes.
Particularmente, não consigo lembrar de nenhum videogame que tenha sido utilizado em campanhas eleitorais, mas a presença em títulos ultra populares de debates sobre gênero e sexualidade ou sobre a ética da guerra ajudam a comprovar este ponto.
Com este horizonte em mente, então, comecei a questionar qual poderia ser o grau do teor político presente em uma trilha sonora de videogame. E para explorar essa questão, conduzi um estudo de caso sobre um jogo que não esconde nem um pouco sua retórica política: o J-RPG Persona 5.
Ao longo dessa primeira parte, não tocaremos tanto na questão musical, mas delinearemos as relações de Persona 5, o jogo, com a noção de política. Vamos então começar com um pouco de contexto aos não-iniciados.
Persona 5 é um videogame lançado em 2017 pela desenvolvedora japonesa Atlus. Como o próprio nome indica, ele faz parte da série Persona, que, no entanto, funciona mais como uma antologia do que como uma série propriamente dita: cada título conta uma estória autocontida, que naturalmente compartilha elementos narrativos e lúdicos com os demais, mas sem constituir com eles qualquer relação de sequência.
No caso de Persona 5, a estória se inicia quando o protagonista – um jovem de 17 anos – tenta ajudar uma mulher que está prestes a ser abusada por um homem na rua. O agressor acaba se revelando um político poderoso, que vira o jogo e acaba incriminando o próprio protagonista. Isso leva a dois desdobramentos principais.
O primeiro é que o protagonista é condenado a passar por um período probatório, em que deve mostrar à sociedade japonesa que é um cidadão decente e trabalhador. O mais interessante é que isso se reflete ludicamente: o jogador deve controlar o protagonista conforme ele vive seu dia-a-dia, em aspectos que vão de ir à escola a participar de encontros amorosos, o que confere ao jogo um aspecto de simulador social não muito distante de The Sims, por exemplo.
O segundo desdobramento, no entanto, é um pouco mais descolado da realidade do jogador: o protagonista é contatado por uma entidade misteriosa que lhe confere poderes para invadir a mente de outras pessoas e a missão de usá-los para tentar corrigir injustiças na sociedade. Esse elemento fantástico é o que justifica os momentos de maior ação do jogo. Neles, o jogador controla o protagonista conforme se une a outras vítimas de injustiças para tentar combater e jogar luz sobre os atos de seus malfeitores.
Assim, valendo-se de suas duas facetas complementares – a realista e a fantástica – o jogo acaba por apresentar um forte componente de crítica sobre a sociedade japonesa.
Um dos vilões da história, por exemplo, é um professor de educação física que sabidamente abusa de seus alunos e alunas, mas é acobertado pelo restante do corpo docente, pois, supostamente, ele ajudaria a trazer prestígio para a escola. Um outro vilão, que surge mais próximo ao desfecho, é o CEO de uma famosa rede de fastfood, que pratica abusos e causa terríveis danos à saúde de seus empregados. E o que ambos têm em comum, além do histórico de abuso e opressão sob diferentes vieses, é que são baseados em casos e fenômenos reais na história recente do Japão.
A existência do jogo como uma reflexão sobre questões sociais reais, então, torna-se clara. Não só por seus elementos internos, mas também pelas opiniões de seu criador: entrevistado pouco após o lançamento do jogo. Katsura Hashino, o principal desenvolvedor de Persona 5, afirmou ter tido a intenção de construir um jogo introspectivo, e que falasse sobre o Japão contemporâneo e suas principais questões.
Assim, fica claro que Persona 5 busca ativamente debater a ideia de uma sociedade que se torna progressivamente mais apática à corrupção e injustiça, e consequentemente mais hostil àqueles que buscam propor mudanças.
Esses temas estão presentes de forma tão óbvia no jogo que ele motivou muitas análises – tanto acadêmicas quanto informais – relacionando-o a conceitos como anarquia, rebelião e até mesmo tratando trechos de sua estória principal como paralelos para a ascensão de Donald Trump e o Brexit. E aí reside a minha única possível crítica ao pensamento de Katsura Hashino: o objetivo pode até ter sido criar um jogo que falasse especificamente sobre o Japão, mas, ao fazê-lo, a equipe de Persona 5 acaba tocando em questões políticas que são muito mais globais do que talvez tenha sido inicialmente previsto.
Aqui, vale uma breve reflexão sobre o que entendemos por política. O pesquisador James Garratt traça uma diferenciação entre uma definição ampla e uma definição estreita da política. A primeira seria capaz de englobar toda discussão que se relacione, em maior ou menor grau, à vida pública de dada população. A segunda se ateria apenas aos seus aspectos institucionais, eleitorais, estatais.
Portanto, da mesma forma que fica claro que os debates propostos por Persona 5 não se alinham tão bem com essa definição estreita (muito embora haja, sim, momentos do jogo que comentam diretamente sobre eleições e cargos institucionais), a sua adequação à definição mais ampla é perfeita.
Assim, os aspectos políticos na narrativa de Persona 5 parecem ser absolutamente dados. Olhando sob essa perspectiva, então, o que pode ser dito sobre sua trilha sonora? Esse será o foco principal da segunda parte dessa reflexão.
Esse texto é baseado em uma pesquisa desenvolvida no meu mestrado, na Universidade de Glasgow.