Em minha última contribuição aqui no Portal Deviante, expus uma visão geral sobre as correlações entre o videogame Persona 5 e o conceito de política. Conforme anunciado no início daquele texto, o objetivo da reflexão era, na realidade, explorar as dimensões políticas, não do jogo em si, mas sim de sua trilha sonora. Nesse texto, portanto, daremos sequência a essa linha de raciocínio, dessa vez nos atendo puramente a alguns dos principais elementos musicais de Persona 5.
Antes de mais nada, é válido notar que música sempre foi uma parte significativa da cultura ao redor da série Persona, que conta com um vasto repertório de canções escritas em diversos gêneros como rock, metal, R’n’B e acid jazz.
Alguns fatos ajudam a dar substância a esse argumento: tanto Persona 5 quanto seus dois antecessores imediatos ganharam spin-offs relativamente bem-sucedidos na forma de jogos de dança, e eventos ao vivo contando com canções oriundas dos jogos se tornaram recorrentes no Japão, ocasionalmente atraindo milhares de fãs. Além do mais, no caso específico de Persona 5, sua trilha sonora foi incluída em serviços de streaming de música em Janeiro de 2021, atualmente acumulando dezenas de milhares de streams apenas no Spotify.
Então… Considerando seu tamanho e importância para o jogo e sua comunidade de fãs, levanto a questão: que dimensões políticas podem ser encontradas nessa trilha sonora? Para começar a respondê-la, farei nesse texto uma breve análise de duas canções diferentes encontradas em Persona 5.
Wake Up, Get Up, Get Out There
A primeira canção que eu gostaria de analisar é, de fato, a primeira música a que o jogador de Persona 5 tende a ser exposto: Wake Up, Get Up, Get Out There é o tema musical dos créditos de abertura da versão básica do jogo, e mesmo um olhar superficial sobre sua letra torna evidente o quanto essa canção busca abarcar o tema central da narrativa sobre luta contra injustiças:
O refrão da canção tem o seguinte texto:
Wake up, get up, get out there
Raise your voice against liars
Feed your anger like fire
Why does nobody want change?Just imagine you’re out there
Swatting lies in the making
Can’t move fast without breaking
If you hold on life won’t change
Em tradução livre:
Acorde, levante, vá para fora
Erga sua voz contra mentirosos
Alimente sua raiva como fogo
Por que ninguém quer mudança?Apenas imagine que você está lá fora
Esmagando mentiras no nascedouro
É impossível mover-se rápido sem quebrar
Se você esperar, a vida não vai mudar
Há dois elementos nessa letra que despertaram mais a minha atenção. Primeiro, é o fato de que ela sugere a necessidade de ação radical para que mudanças reais possam ocorrer – especialmente no verso ‘can’t move fast without breaking’ (‘é impossível mover-se rápido sem quebrar’ – note-se que aqui não há especificação do que será quebrado, simplesmente sugerindo que algum dano necessariamente será causado pela ação proposta, o que imediatamente me remete a uma alusão à violência revolucionária).
Um segundo ponto interessante a respeito dessa letra se encontra no último verso, ‘if you hold on life won’t change’ (‘se você esperar, a vida não vai mudar’). Não apenas esse verso se apresenta como uma clara proposta de quebra de um estado de inação (portanto corroborando todo o restante da letra), como ele também ajuda a estabelecer um diálogo direto com uma outra canção presente na trilha sonora do jogo.
Life Will Change
Diferente da primeira canção apresentada, Life Will Change está muito intimamente relacionada à ação e aos aspectos mais fantásticos do jogo: essa canção normalmente é tocada quando os protagonistas de Persona 5 (e por conseguinte o jogador) estão prestes a ficar cara-a-cara com os principais vilões da história. Ouça o refrão de Life Will Change abaixo, e veja se você consegue identificar semelhanças com Wake Up, Get Up, Get Out There:
https://www.youtube.com/watch?v=EeqtE3-clv0&t=1134s
Claramente, ambas as canções compartilham um mesmo refrão – ao menos no que diz respeito a aspectos puramente musicais. E um breve olhar sobre a letra de Life Will Change também revela uma série de semelhanças do ponto de vista lírico:
So you know that we’re out there
Swatting lies in the making
Can’t move fast without breaking
Can’t hold on or life won’t changeAnd our voices ring out, yeah
Took the mask off to feel free
Fought it out in the debris
Now we know that life will change
Em tradução livre:
Então você sabe que estamos lá fora
Esmagando mentiras no nascedouro
Não podemos nos mover rápido sem quebrar
Não podemos esperar, ou a vida não vai mudarE nossas vozes ressoam
Tiramos a máscara para nos sentirmos livres
Batalhamos nos escombros
Agora nós sabemos que a vida vai mudar
Novamente, algumas questões saltam aos olhos a respeito dessa canção. A primeira, e mais gritante, é o quanto ela se relaciona diretamente com a letra de Wake Up, Get Up, Get Out There, abertamente repetindo palavras e expressões, porém sutilmente adicionando novas camadas interpretativas a elas.
Enquanto o refrão da primeira canção soa como uma voz de comando que tenta imprimir urgência ao ouvinte (evidenciado pelo domínio do imperativo no próprio título da canção: acorde, levante, vá para fora), Life Will Change engenhosamente coloca as mesmas ideias na primeira pessoa do plural: we/nós. Isso faz com que a letra da canção deixe de ser uma voz de comando para assumir um aspecto descritivo das ações dos protagonistas, ao mesmo tempo em que deixa claro ao jogador que os personagens que ele controla são um time, um grupo de pessoas que foram submetidas às mesmas condições.
Em suma, se a primeira canção diz ‘aja’, a segunda diz ‘nós estamos agindo’. Ou seja, ao mesmo tempo em que recicla as ideias de Wake Up, Get Up, Get Out There, Life Will Change, adiciona materialidade e coletividade a elas. Corroborando essa leitura, a mesma ideia que aparece em uma forma condicional ao final do refrão da primeira canção é aqui reiterada como uma afirmação quase profética (e novamente reforçando o aspecto plural/coletivo do eu-lírico): ‘agora nós sabemos que a vida vai mudar’.
‘Um hino contra a classe dominante’
Considerando o teor e as correlações entre essas duas canções, então, comecei a refletir sobre o potencial que o conteúdo delas teria para transbordar para o mundo real: até que ponto os ouvintes/fãs/jogadores de Persona 5 considerariam essas letras como meros detalhes em uma experiência lúdica, e o quanto eles se apropriariam delas como adequadas às suas realidades extra-jogo?
Minha hipótese era de que uma canção como Life Will Change, com sua letra em primeira pessoa, teria um alto potencial de fazer o próprio ouvinte sentir-se dono daquelas palavras, incluindo-se como parte do coletivo que as profere, e extrapolando seu significado para além da narrativa. Infelizmente, encontrei poucas evidências da ocorrência desse processo no mundo real. As poucas que encontrei, no entanto, provaram-se bastante interessantes.
Por exemplo, em uma postagem sobre ‘As 10 Melhores Canções de Persona’ feita no blog The Red Epic, o autor abertamente define Life Will Change como uma ‘canção de protesto’. Em suas palavras, ‘a letra é anti-governo, e encoraja uma revolução para derrubar o regime atual’.
Essa interpretação, bastante direta, ganha uma dimensão ainda mais interessante na sequência do texto: ‘além disso, a mensagem retratada na canção é relevante para o contexto do jogo no momento [em que a música é tocada]’. Portanto, torna-se bastante curioso como na escolha de palavras do autor, o conteúdo de protesto da canção parece sobressair-se até mesmo à sua relevância para a própria narrativa do jogo.
Dando ainda mais materialidade a esse processo, encontrei menções à trilha sonora de Persona 5 em uma postagem no fórum Reset Era, em junho de 2020.
Caso o contexto não se torne imediatamente óbvio ao leitor, o tópico original, intitulado ‘Essas máquinas matam fascistas, melhores canções para a insurgência contra a polícia’, requisitava sugestões de músicas que pudessem ser utilizadas como fontes de motivação durante os protestos do Black Lives Matter, nos Estados Unidos.
Em meio a uma série de sugestões dos usuários – que incluíram A Internacional Socialista, canções de diversas bandas punk e a banda Rage Against The Machine – o próprio autor do tópico respondeu, adicionando à lista nada mais do que Wake Up, Get Up, Get Out There e Life Will Change. E o mais interessante foram as palavras utilizadas para justificar a escolha: ‘a trilha sonora de Persona 5 pode muito bem ser um hino contra a classe dominante’.
A convergência entre as interpretações dos autores de ambas as postagens parece deixar claro que há, sim, margem para que o ouvinte dessa trilha sonora extrapole seu significado narrativo, encontrando justificativas – e até mesmo utilidades – para elas em situações no mundo real.
Essa percepção, no entanto, levanta mais questões do que responde. O quanto essas interpretações de ouvintes podem de fato validar o potencial político dessas canções? O quanto elas podem ser interpretadas como ‘canções de protesto’ em si, sem que se considere o contexto em que elas são normalmente apresentadas ao ouvinte? E afinal, o que de fato as definiria em um contexto mais amplo como potenciais canções de protesto?
Essas questões serão discutidas em maior profundidade na terceira e última parte dessa série, em que abordaremos as interseções entre música popular e política sob uma perspectiva mais teórica.
Esse texto é baseado em uma pesquisa desenvolvida no meu mestrado, na Universidade de Glasgow.