Disclaimer: Este não é um texto como os outros. Hoje, seus conhecimentos, sua memória e seu cérebro serão colocados à prova. Estejam preparados.
Teste 1 – Marque a alternativa correta nas questões abaixo:
Quais das seguintes espécies estão em extinção?
- Homo neanderthal
- Homo sapiens
- Homo economicus
Que área do conhecimento é agraciado com o Prêmio Nobel de Economia?
- Economia
- Matemática
- Psicologia
E se eu te disser que as duas questões estão intimamente ligadas?
O homo economicus é uma criatura inventada pela economia, mais precisamente pela teoria das expectativas racionais – primeiramente apresentada num paper de John Muth em 1961 – que diz que todos os agentes (traduzindo: eu, você, e todos nós que vivemos em uma economia) utilizam-se de todas as informações atualmente disponíveis e tomam as melhores decisões possíveis baseadas nesse input informacional. Isso pressupõe que: todos temos acesso igualitário ao conjunto de informações do mercado e que sabemos, podemos e fazemos os cálculos necessários e corretos para a melhor tomada de decisões. A ideia não é que não cometemos erros, mas que, na média, os erros se anulam e somam zero, o que significaria – na prática – que não erramos. Essa teoria serviu de base para uma enormidade de trabalhos no campo das ciências econômicas que eliminavam o erro humano como variável e exaltavam a capacidade individual de tomar boas decisões que, no final das contas, deixavam o mercado como um todo racionalmente “correto”.
Isso aproximava a economia de outras ciências exatas. Toda essa racionalidade e precisão foi tão relevante para as ciências econômicas que serviu de base para trabalhos que viriam a ser coroados com o Nobel de Economia como, Merton e Scholes (vejam uma curiosidade sobre eles no final do texto) que foram agraciados por seu modelo matemático – racional – para precificação de derivativos; Robert Lucas Jr., que recebeu o prêmio pela teoria das escolhas racionais; Markowitz, pela seleção (racional) do portfólio ideal, e mais tantos outros. A economia flertou tanto com as exatas que um matemático – John Forbes Nash Jr, mais conhecido como o matemático esquizofrênico de “Uma Mente Brilhante” – ganhou o Nobel de Economia em 1994 por sua teoria dos jogos (para saber mais o assunto, ouça o Scicast #97)
Mesmo com todo o trabalho que o Iluminismo teve para trazer o ser humano para o holofote da história, exaltando sua racionalidade e capacidade, vamos combinar que a ideia de que somos magnânimos tomadores de decisão não se aplica sempre aos seres humanos, e muito menos a todos os seres humanos. O estudo dessas falhas decisórias foi o primeiro passo para a extinção do homo economicus, e o personagem principal dessa narrativa é um psicólogo, e não um economista.
Hora da História
Era uma vez um jovem psicólogo chamado Daniel Kahneman, que trabalhava no departamento de psicologia das Forças Armadas de Israel analisando os cadetes recém-chegados e tentando prever seus futuros resultados. Após essa experiência, Kahneman foi estudar em Berkeley na Califórnia e recebeu seu PhD em psicologia e, já como professor universitário, conheceu Amos Tversky, com quem teve uma longa parceria profissional. Segundo relatos do próprio Daniel, ele e Tversky passavam dias conversando em suas salas ou caminhando pelo campus pensando sobre suas teorias e as testando em si mesmos.
Parecia só mais um acadêmico em uma de suas parcerias para escrever papers até que, em 2002, Daniel Kahneman ouviu seu nome ser chamado por ninguém mais, ninguém menos, que o porta-voz do comitê do Nobel de economia por “introduzir conceitos da psicologia humana na economia”, especialmente sobre a tomada de decisão e incerteza (Tversky não foi contemplado com o prêmio porque havia morrido 6 anos antes). O mais curioso é que Kahneman diz que nunca teve nenhuma aula de economia na vida, que sua teoria não era (originalmente) sobre nada de finanças e que tudo que ele e Tversky aprenderam sobre o assunto veio de suas colaborações com Richard Thaler e Jack Knetsch.
Uma das principais – e talvez a principal – pesquisa de Daniel Kahneman e Amos Tversky nos seus muitos anos de parceira foi a teoria da perspectiva, originalmente publicada em 1979, mas que foi desenvolvida por toda a vida acadêmica dos dois. Esta teoria diz que as pessoas não tomam decisões baseadas em cálculos matemáticos, não são sempre racionais quanto à utilidade de uma decisão e que muitas vezes a mente humana é comandada por heurísticas (atalhos da mente que aceleram o processo decisório), que nem sempre são corretas. Eles também apresentam a ideia de que nossos cérebros processam de forma diferente ganhos e perdas em quantidades iguais, levando a escolhas não consistentes com a racionalidade pura, desafiando frontalmente as decisões racionais que baseiam a teoria econômica clássica. E, de quebra, Kahneman se tornou referência e fundador emérito das finanças comportamentais.
Você pode estar achando isso tudo balela, então vamos ao próximo teste:
Qual das opções abaixo você escolheria?
- 80% de chance de ganhar R$3000; ou
- 100% de chance de ganhar R$2100.
Agora imagine outra situação, completamente isolada da primeira:
- 80% de chance de perder R$3000; ou
- 100% de perder R$ 2100?
Matematicamente as duas apostas “A” têm o mesmo valor (80% de 3000 = 2400), assim como as opções B (100% de 2100 = 2100). Se fossemos todos perfeitamente lógicos, teríamos escolhido a opção A na primeira, que nos oferece maior ganho esperado, e a opção B na segunda, com menor perda. Não sei o que você respondeu, mas a maioria esmagadora faz a escolha B na primeira e A na segunda, o que não é nada consistente com a teoria racional. Estes resultados levaram Kahneman e Tversky à conclusão de que os humanos não são naturalmente avessos ao risco (como muitos acreditam), mas preferem incorrer na chance de maior perda se houver qualquer chance de evitá-la (comprovado pela esmagadora preferência pela escolha A no segundo caso). Mas quando uma das opções oferece ganhos certos, muitos preferem garantir quantidades menores do que correr o risco de sair de mão abadando, pois a dor de deixar de ganhar é bem acentuada. Este exemplo serve de comprovação empírica para a teoria da perspectiva de Kahneman e Tversky, em que as decisões humanas não são consistentes ao longo do tempo pois dependem da situação na qual o agente está inserido.
Vamos testar novamente seus conhecimentos:
- Você acha que mais pessoas morrem por assassinato ou câncer no estômago?
- Você acha que há mais palavras que começam com L ou que tenham L como terceira letra?
Disponibilidade
As respostas corretas são que mais pessoas morrem por câncer do que por assassinato, e que há mais palavras com L na terceira letra do que na primeira. Na verdade, suas respostas não têm nada a ver com seus conhecimentos gerais, mas sim com um truque que seu cérebro pregou em você. Lembra que eu falei de heurísticas – os atalhos que seu cérebro usa para chegar a uma resposta? Aqui sua heurística (ou viés) de disponibilidade foi ativado, pois, ao ler as perguntas, suas sinapses de memória foram ativadas e, provavelmente, você lembrou de mais casos de assassinato e palavras que começam com a letra L, assim, sua mente deduziu que essas eram as respostas corretas. Estes são clássicos exemplos de que quanto mais disponível na sua mente for um fato ou número, este é tomado como verdade na hora da tomada de decisão, distorcendo resultados dito racionais. Esta disponibilidade acontece devido à nossa exposição a notícias e influências externas, mas, acima de tudo, por nossa mente conseguir coletar alguns dados com mais facilidade do que outros, e o sistema automático do cérebro (que Kahneman chama de Sistema 1) acaba ganhando do raciocínio lógico (Sistema 2).
Outro exemplo cotidiano que reforça esta ideia é que há mais pessoas com medo de andar de avião do que de carro, apesar do segundo matar infinitamente mais que o primeiro. Como a mídia faz coberturas mais amplas, detalhadas – e às vezes até espalhafatosas – de tragédias aéreas, essa imagem fica “amplificada” em nossa memória, muito mais do que carros amassados nas estradas. Isso influencia na frequência e facilidade com que determinados fatos, números ou ações vêm à nossa mente.
Vamos dar prosseguimento aos nossos testes:
Imagine que você faz parte de um comitê de crise que está avaliando quatro opções de tratamento para uma doença que atualmente atinge 600 mil pessoas. As seguintes informações são apresentadas a todos os participantes:
O tratamento A prevê a sobrevivência de 200 mil pacientes.
O tratamento B prevê 33% de chance de salvar a todos, e 66% de não salvar ninguém.
O tratamento C prevê a morte de 400 mil pacientes.
O tratamento D prevê 33% de chance que ninguém vai morrer, e 66% de que todos os 600 mil morrerão.
Qual você escolheria?
Enquadramento (Framing)
A verdade é que todos os tratamentos têm exatamente a mesma probabilidade matemática de salvar a mesma quantidade de pacientes, mas a forma como as opções foram descritas afeta a percepção do tomador de decisão. Matar 200 ou salvar 400 equivale a exatamente o mesmo resultado, mas a palavra “salvar” deixa esta opção mais agradável aos olhos do leitor. Outra pesquisa que demonstra o feito de enquadramento foi feita com universitários que deveriam se matricular em cursos. Quando havia um desconto para registros antecipados, menos alunos foram à secretaria fazer sua matrícula com antecedência. Quando foi imposta uma multa por atraso, mais pessoas fizeram os trâmites dentro do prazo. Se você pensar, não conseguir um desconto ou pagar uma multa reflete exatamente o mesmo “gasto”, mas quando o cérebro ativa a ideia de “multa” ou “pagamento extra”, mais inclinados ficamos a fazer tudo certo.
Esses casos demonstram que a forma como uma questão é enquadrada faz enorme diferença na decisão e percepção humana. Se fossemos todos perfeitamente racionais, deveríamos sempre buscar o menor custo, não importa a forma como a situação for colocada. Vamos combinar que isso não é verdade.
Perguntinha básica (e esta não é um teste, juro!): Quando você vai ao cinema, você compra a pipoca pequena, média, grande ou a super-combo-master-blaster das galáxias?
Ancoragem
Você já se perguntou por que a pipoca gigante custa poucos reais a mais que a pequena, mesmo tendo o dobro/triplo da quantidade? O dono do cinema conhece a ancoragem, a noção de que avaliamos valores e quantidades comparativa, e não isoladamente. A pipoca gigante parece um excelente negócio se pensar que um pouco mais de dinheiro comprará um montão a mais de pipoca. Você tem a percepção de estar fazendo um belo negócio, quando na verdade o dono do cinema colocou preços tão próximos para te induzir a comprar a mais cara, e – sinto te dizer – ele te convenceu a dar mais do seu dinheiro para ele.
Outra forma bem comum de ancoragem é quando vemos produtos sendo vendidos em pacotes com múltiplas unidades. Pesquisas mostram um aumento nas vendas da promoção “4 por $2” comparativamente a “$0,50/ a unidade”. Ou quando o mercado coloca uma placa impondo um limite de unidades por pessoa, os consumidores têm a percepção de que aquela é uma baita promoção (afinal, se não fosse, por que haveria limite?), e acabam comprando mais. Outra ancoragem comum na hora de consumir é que, ao ouvir a palavra “promoção” ou “desconto”, nosso cérebro automaticamente se liga à ideia de um bom negócio, mesmo sem fazermos a conta racional e lenta de descobrir se aquele preço é realmente justo ou se estamos dispostos a pagá-lo. Um produto com preço de R$500 mas com desconto de 50% tem mais chance de ser comprado do que o mesmo objeto com preço final de R$250,00.
Esta heurística demonstra como ficamos ligados – ancorados – em informações iniciais incutidas em nós, ao invés de confiar em nossa capacidade de raciocínio. Isso é bastante coerente com a ideia desenvolvida por Kahneman em seu livro “Rápido e Devagar: duas formas de pensar” de que nosso cérebro funciona em duas frentes: aquela Sistema 1 que toma decisões rápidas, baseadas no que o cérebro acredita instintivamente e muitas vezes também nessas heurísticas; e o Sistema 2, que toma decisões pensadas e calculadas. Como Sistema 2 é mais lento e pesado, muitas vezes ele sequer é acionado, pois o Sistema 1 resolve o problema rapidamente para evitar desgaste energético. O problema é que, para ser rápido, ele utiliza esses atalhos (vieses, heurísticas) que acabam nos pregando peças. (Para uma introdução rápida a essas ideias e ao livro, veja esse vídeo. Mas depois vá ler o livro, vale a pena!)
A “nova” economia comportamental
Mas o trabalho de Kahneman, Tversky e tantos outros pioneiros foi só o primeiro passo desta nova área de estudos econômicos. Em 2017, as finanças comportamentais voltaram aos holofotes mundiais depois que Richard Thaler recebeu o Nobel de Economia por suas contribuições nessa área. Seu livro Nudge (um “empurrãozinho” em português) já era best-seller antes mesmo de seu autor ser agraciado com o prêmio. Ele descreve como um empurrãozinho pode levar as pessoas a decisões melhores, e já foi aplicado diversas vezes a políticas públicas. Um caso muito próximo a nós foi experimentado pela prefeitura do Rio de Janeiro quem na tentativa de aumentar o número de contribuintes que pagavam o IPTU, passou a ligar para as pessoas com uma mensagem dizendo que bons pagadores eram bons cidadãos. Naquele ano, mais carnês de IPTU foram pagos.
Em muitos lugares do mundo, as empresas oferecem a seus funcionários sistemas de pensão (o que aqui seria equivalente a previdências privadas) em que parte do salário fica retida na conta e a empresa aplica mais um valor para colaborar com a acumulação de fundos. Apesar de todas as facilidades, a adesão de funcionários era baixa e frustrava os economistas que não entendiam como as pessoas deixavam passar uma oportunidade simples e lucrativa de se preparar para o futuro. Em determinado momento, alguém teve a ideia de inscrever todos os funcionários no programa de pensão e enviar um e-mail dizendo que aqueles que não quisessem participar fossem ao RH assinar um termo de saída. Esta simples mudança aumentou incrivelmente o número de funcionários inscritos no sistema. Se pensarmos logicamente, em ambos os casos a participação é facultativa, mas o aumento do número de poupadores com a inscrição automática mostra que há uma “preguiça intrínseca” à natureza humana, e que tendemos a ficar na posição que escolhem por nós para economizar o trabalho de pesar as consequências das mudanças.
Kahneman e seus colegas desenvolveram diversas teorias de finanças comportamentais que, na maioria das vezes, não tiveram cunho prático a favor de quem sofria o viés. As empresas que sabiam destas falhas dos nossos cérebros as usavam para convencer o cliente a gastar mais. Os mercados financeiros muitas vezes usavam para explicar ou tentar prever movimentos, mas o trabalho de Thaler foi pioneiro ao usar as heurísticas e sistemas cerebrais não-perfeitamente-racionais a favor dos agentes. É como usar seus defeitos ao seu favor. Richard Thaler também desenvolveu ideias como a “contabilidade mental”, explicando que, apesar de todo o dinheiro ser igual, não é bem assim que ele está dividido em nossas mentes.
A magia das finanças comportamentais é como ela desafia o paradigma de que economia é uma ciência exata, de que o homo economicus (ou Econ como alguns gostam de chamar) não é uma entidade mítica perfeita, ela tá mais para um unicórnio que aparece em relatos esporádicos muitas vezes duvidosos, mas que ninguém realmente pode afirmar que viu de verdade. As finanças comportamentais empoderam o tomador de decisão na extensão em que abre nossos olhos para erros “automáticos” e nos deixam alertas para que tomemos ações para evitá-los ou usá-los a nosso favor. A aplicação prática desta vertente econômica está em perceber que nossa mente nos leva a conclusões equivocadas e, antes que elas tomem conta de nós (e de nossas contas bancárias, investimentos e cartões de crédito), nós tomemos o leme da irracionalidade racional que são nossas mentes.
Curiosidade irônica: Merton e Scholes foram conselheiros de um fundo que usava suas teorias racionais de precificação de derivativos juntamente com alavancagem para obter retornos altos (média de 21% ao ano). O fundo foi criado no começo dos anos 1990 e operava mercados internacionais. Merton e Scholes dividiram o Nobel de Economia em 1997, e o fundo quebrou com as crises asiática e russa em 1998. Os responsáveis argumentaram que as fórmulas funcionavam perfeitamente, mas que a crise atrapalhou (oi?). A racionalidade definitivamente estava em baixa.