Uma pequena introdução
O desenvolvimento da ciência e da tecnologia gerou muitas mudanças na forma com que nos relacionamos com as coisas. Podemos dizer que no geral a vida ficou mais cômoda do que era alguns anos atrás com a popularização de artefatos como controles remotos e copos Stanley.
Aliado a isso temos a crescente preocupação com saúde e uma maior noção dos malefícios que certos compostos podem trazer para a nossa saúde. Então, por exemplo, hoje sabemos que não é exatamente saudável ingerir grandes quantidades de cafeína diariamente, mesmo o café estando muito arraigado ao nosso estilo de vida, o que acaba gerando um problema: ser saudável ou tomar café?
A saída mais lógica, ao meu ver, seria parar de tomar café. Ou se pensarmos na questão do vício em cigarro, também vemos que o mais fácil de se fazer para evitar os danos causado pela nicotina seria obviamente parar de fumar.
No entanto, o ser humano ficou cada vez mais preguiçoso com a modernidade. Hoje, temos a possibilidade de facilmente retirar a cafeína do café sem perder as características da bebida. Ou tirar a nicotina do cigarro. Lembro que li há muito tempo um texto filosófico (ou será que foi um post do Facebook?) tratando sobre qual era o limite das coisas: será que um café sem cafeína ainda seria um café? Seria a cafeína parte integrante da experiência do café?
De qualquer forma é um pensamento interessante. Eu, por exemplo, não tomo café. E como filosofia claramente não é meu forte, vou mudar bruscamente de assunto para outra dúvida cruel que se relaciona com a discussão acima: alguém já se perguntou como se retira a cafeína do grão de café?
Eu já, e é sobre isso que vamos falar hoje no segundo texto da séries SUPER COISAS: Fluidos supercríticos. Lembrando que o primeiro texto foi o “Supercapacitores: nem super, nem capacitores, mas muito legais caso não queiramos morrer no colapso climático em 30 anos (e o quê Elon Musk tem a ver com isso)” e o próximo pode ser sobre SUPERfícies, SUPER bonder, SUPERstições, SUPERmercados ou qualquer outra coisa que me renda uma boa piada (ou coisas mais sérias e chatas como materiais SUPERcondutores).
Quem é ele?
Por mais que provavelmente tu nunca tenhas ouvido falar sobre esse rapaz Supercrítico ele é bem comum na química industrial e tem várias utilizações conhecidas, pelo menos desde o século XIX. Portanto vou me limitar a falar apenas da extração supercrítica para a minha introdução fazer algum mínimo de sentido pois é um processo muito simples, mas não menos engenhoso por isso.
A pergunta da qual partiremos é a seguinte: que raio é um Fluido supercrítico? Um fluido hipster, que desdenha dos filmes da franquia Velozes e Furiosos (talvez a maior franquia já feita para o cinema, um marco da arte contemporânea), que usa camisa xadrez e escuta uma playlist synth-goth soviético enquanto degusta uma IPA artesanal???
Acho que não (até porque, se o nosso fluido tivesse olhos ele iria gostar da saga sobre a família Toretto, afinal ele parece uma cara legal). Duas coisas que irão facilitar nosso entendimento de fluido supercrítico é justamente entender o que é um “fluido” e o que é o ponto crítico de uma substância.
Um pouco de química
Fluido para a física é um material que se deforma (ou escoa) continuamente quando uma força externa é aplicada sobre ele. Portanto, todos os gases e líquidos são fluidos, enquanto os sólidos não são. Uma discussão mais aprofundada pode ser encontrada aqui. O que precisamos saber agora é que um fluido pode ser tanto um gás como um líquido.
Já para entendermos o ponto crítico, precisamos nos lembrar da relação fundamental que rege o comportamento e estado das substâncias, expressa simplificadamente na fórmulinha que todos devem ter decorado para, pelo menos, passar no vestibular: PV = nRT, a lei dos gases ideais.
Essa lei demonstra concisamente a relação entre a pressão, o volume e a temperatura de uma substância. Vemos que existe uma relação diretamente proporcional entre a pressão e a temperatura. Isso é observado experimentalmente e pode ser explicado simplificadamente imaginando que o aumento da temperatura confere mais energia para as moléculas, que por sua vez se “movem” de maneira mais violenta, pressionando as paredes do recipiente em que estão contidas, aumentando assim a pressão do sistema.
Se pegarmos uma substância simples, como o dióxido de carbono CO2, e experimentalmente observarmos o par pressão e temperatura para um volume fixado (aumentando a pressão e medindo a temperatura de cada ponto, ou o contrário), podemos traçar um diagrama de Pressão vs. Temperatura.
Conforme formos fazendo os experimentos, iremos observar que o “estado” da substância irá mudar conforme o par Pressão – Temperatura, passando por sólido, líquido e gasoso. Esses três estados “clássicos” são facilmente observáveis, mas algo engraçado acontece em um determinado par. Para um certo valor de Pressão – Temperatura, no limiar entre líquido e gás, nós não conseguimos mais perceber a mudança de uma fase para a outra. Esse par é conhecido como ponto crítico.
Toda essa análise é exemplificada no diagrama de fase abaixo.
Como vocês podem ver no diagrama, a partir desse ponto crítico temos uma região onde a substância se encontra como fluido supercrítico. Temos então um fluido que possui propriedades particulares, entre as de um gás e as de um líquido.
Acontece que a energia cinética das moléculas fica tão alta que mesmo as aproximando muito, elas se desviam e não conseguem se ligar, o que normalmente causaria sua liquefação. No entanto, essa pressão gerada influencia as propriedades do gás, fazendo sua densidade diminuir, se aproximando das de um líquido.
Na prática o que se obtêm é um fluido com características tanto de líquido como de gás e o qual não apresenta menisco, que é a forma que observamos a separação entre líquido e gás. Isso também acarreta um fluido sem tensão superficial, o que vai facilitar na hora de realizar a extração de compostos de sólidos.
Agora pensem comigo… Um líquido consegue dissolver as coisas porque tem um grande poder de solubilização, mas não se difunde muito bem em sólidos, ou seja, não consegue atravessar a porosidade dos sólidos. Por outro lado o gás não dilui bem as coisas, mas tem grande capacidade de difusão em sólidos. Portanto, obter essas duas características num único fluido é de extremo interesse tecnológico. E mais ainda: há maneiras de regular o quanto gasoso ou “liquidoso” o nosso fluido será, conforme o necessário para a aplicação, apenas mexendo na relação pressão-temperatura do fluido
Escolhendo bem o candidato
Para manter o fluido em regime supercrítico precisamos mantê-lo acima do ponto crítico de temperatura e pressão, ao mesmo tempo. O gráfico que analisamos acima entretanto, muda para cada substância, assim como seu ponto crítico. Abaixo temos uma tabela com alguns pontos críticos de substâncias comuns.
Uma questão chama a atenção: são condições no geral bastante adversas. Por exemplo a água, que é o composto mais versátil da química, precisa ser mantida a uma temperatura de 375 °C e a uma pressão de 220 vezes a atmosférica, não viabilizando a sua utilização prática. Em alguns casos, como o do etano, as condições até podem ser mais razoáveis, mas a substância pode trazer dificuldades como alta inflamabilidade e risco de explosões.
Mas no meio de todos essas substâncias problemas, percebemos na tabela um gás como forte candidato, só que disfarçado: bióxido de carbono. Bi = 2; óxido = oxigênio; de carbono = tem carbono (jura???); 2 oxigênios e um carbono formam o nosso famoso amigo CO2, também conhecido como gás carbônico ou dióxido de carbono (os químicos adoram dar vários nomes para a mesma coisa).
Apesar de ter uma péssima reputação, já que foi escolhido como o parâmetro para medir os gases de efeito estufa esse gás é de fácil utilização industrial e tem poucos problemas associados, além de não ser muito reativo (é bom lembrar que o CO2 não é o único gás do efeito estufa, ele é apenas usado como base para medir os outros. Acho que o lobby dele não era muito eficiente).
A extração supercrítica
Por fim, vamos entender como funciona a extração supercrítica. Ela se baseia fortemente na extração sólido-líquido comum. Se tu nunca ouviu esse termo, tudo bem, a gente aprende lá pelo quinto semestre da faculdade. Mas na verdade tu já sabes como funciona uma extração desse tipo.
O exemplo mais fácil de entender a extração sólido-líquido é o do chá. Quando tomamos um chá, colocamos a água quente (líquido) em contato com as folhas do chá (sólido) para solubilizarmos os compostos do chá na água. A extração sólido-líquido industrial é feita de maneira muito semelhante, a maior diferença sendo na etapa extra de recuperar os compostos do chá separados da água.
A extração de cafeína dos grãos de café com um fluido supercrítico é feita partindo do mesmo principio: colocar o sólido em contato com o fluido para extrair compostos do sólido. Basicamente precisamos pressurizar o gás até o seu ponto crítico e injetá-lo numa câmara com os grãos inteiros do café. O fluido se difunde nos grãos e consegue extrair apenas a cafeína, já que o fluido supercrítico é muito mais seletivo que um solvente comum.
Se fizemos a operação com algum outro solvente teríamos alguns problemas. Se usássemos água por exemplo, como no caso do chá, teríamos que utilizá-la em uma temperatura elevada, para melhorar a solubilidade, o que acarretaria perda de compostos delicados do grão. Se usássemos outros solventes industriais poderíamos acabar com um produto contaminado com algo impróprio para consumo e potencialmente danoso para o meio ambiente. Já o gás pode ser recuperado integralmente, eliminando a geração de resíduos.
Obviamente esse processo tem um custo muito mais elevado de implementação, necessitando de recipientes que resistam a altas pressões e equipamentos para a pressurização do gás. Não querendo entrar nesse mérito, mas já que xingar a indústria de alimentos é um lazer pra mim — o que também poderá motivar muitos outros textos — isso faz com que seja mais viável o uso desse processo em grãos de menor qualidade.
Conclusão
E esse, apesar da minha dramatização ao longo desse texto, é apenas um dos diversos usos industriais que temos com esse fluido. Ficando na mesma área de extração de compostos, temos extração de camomila, nicotina, diversos óleos essenciais, entre outros usos como em cromatografia, geração de energia e produção de biodiesel. Eles também aparecem naturalmente em fontes hidrotermais perto de vulcões e na atmosferas de alguns corpos celestes como Vênus.
E apesar de tudo, ainda não sabemos se o café sem cafeína é de fato um café. Mas será que importa mesmo? Para terminar com outra filosofia: com a extração supercrítica é fácil retirar a cafeína do café, mas impossível colocá-la de volta. Usem essa informação como quiserem.
(quem seria o idiota que tentaria colocar a cafeína de volta no café??)
Referências e vídeos para ir mais além
Físico química Vol 1 e 2, Luiz Pilla – Esses foram os livros que eu e todo mundo que fez as matérias de físico química na UFRGS utilizamos. Acho que não tem disponível em nenhum lugar, mas é um excelente livro para ter uma introdução à matéria (entretanto não fala nada de fluido supercritico);
Fluidos Supercríticos: situação atual e futuro da extração supercrítica, Aldo Adolar Maul – é desse texto que saiu a tabela com os pontos críticos dos vários fluidos (aquela do bióxido de carbono) e também serviu de inspiração e base para esse texto, no longínquo ano de 2018.
Vídeos:
Explicação simples em três minutos de fluidos supercríticos
Doidão extraindo cafeína na garagem com CO2 supercrítico
O mesmo doidão construindo uma câmara para gerar o fluido supercrítico
Mais um vídeo do doidão extraindo coisas supercriticamente, agora com um novo setup