Em Gattaca, a engenharia genética avançou a tal ponto que pais podem esculpir geneticamente seus filhos. Isso não se limita a traços físicos, mas a tendências comportamentais também. Você pode ter um filho com nível alto de inteligência, que tenda a ir para área de Exatas, que seja talvez engenheiro, ou físico teórico, basta querer e uma empresa de engenharia genética realiza seu sonho.
Esse cenário é ficção científica. Mesmo que tecnologicamente estivéssemos nesse nível — coisa que está longe — os entraves éticos provavelmente impediriam que algo assim se tornasse oficial. Mas existe um elemento de Gattaca que está presente sutilmente na realidade, independente da tecnologia. Qualquer triagem que faça alguns indivíduos passarem e outros não acaba selecionando pessoas com características diferentes. Quando essas características têm a ver com seus traços de personalidade ou com seu nível de inteligência, isso significa que está sendo feita uma triagem genética. Isso porque uma parte considerável da variação de inteligência (até 80%) e personalidade (até 40%) entre as pessoas tem a ver com diferenças genéticas entre elas.
Isso foi mais ou menos o que defendi na seção de comentários de um texto no Deviante, sobre alunos processando Harvard e exigindo a quebra de sigilo sobre os critérios que a universidade usa para selecionar seus alunos. O objetivo deste texto é fornecer um pouco mais de detalhe e de evidências para minha alegação central, a de que os processos seletivos dessas universidades famosas na verdade não estão apenas selecionando alunos concurseiros treinados para ir bem nas provas, no melhor estilo Another brick in the wall, para passar nesse tipo de prova, mas alunos com níveis altos de inteligência e com características específicas de personalidade associadas a inteligência alta e a alto desempenho acadêmico.
Concurseiros super treinados ou pessoas com alto QI?
Para ingressar em Harvard, os alunos fazem uma série de testes e entrevistas. Um desses testes é o SAT, que compreende questões de uma variedade de temas, de questões de raciocínio matemático até raciocínio verbal e compreensão de texto. Quanto maior a nota, mais chances de passar. Algumas pessoas podem argumentar que esse tipo de critério favorece uma indústria que adestra os estudantes nas escolas, que fazem com que se tornem profissionais em dizer o que esses testes exigem como resposta. É inevitável pensar numa linha de montagem de estudantes, todos padronizados.
Mas o SAT não é um teste tão artificial assim. Na verdade, parece que a pontuação no SAT está altamente correlacionada com o desempenho cognitivo dos alunos, chegando a correlações de 0,5 até 0,8 (uma correlação perfeita seria 1). A correlação entre ACT (outro teste de acesso às universidades americanas) e Matrizes de Raven (um teste de QI) é 0,61. Em outras palavras, se alguém quisesse saber seu próprio QI, daria praticamente no mesmo fazer um teste de QI propriamente dito, ou responder ao SAT ou ao ACT. Isso significa que quem é admitido em Harvard vai bem no SAT, e consequentemente tem níveis altos de inteligência.
Quanto mais inteligente, maior o sucesso acadêmico — se não for preguiçoso
Outro indício que reforça essa associação entre inteligência e SAT/ACT é o quanto a inteligência prediz o sucesso acadêmico. Um estudo realizado no Brasil, com mais de 600 crianças, mostrou evidências de que a inteligência era um fator mais forte na influência do sucesso acadêmico do que fatores sociodemográficos, como nível salarial e nível educacional dos pais. Mas alguns estudos encontraram associação entre nível educacional familiar e nível de inteligência dos filhos. Isso pode ser explicado pelo fato de que indivíduos com níveis maiores de inteligência tendem a adquirir também maior nível educacional. Como inteligência é altamente herdável, pode-se dizer que a inteligência dos pais e de seus filhos explica em grande parte a alta educação, não o contrário, ou seja, as pessoas se tornando mais inteligentes porque adquiriram um nível educacional mais elevado — muito embora seja uma verdade empírica amplamente demonstrada que a melhor forma de tornar as pessoas mais inteligentes seja oferecer longos anos de aprimoramento educacional a elas. Mas, independente desses detalhes, várias pesquisas, incluindo recentes metanálises, mostram que quanto maior a inteligência, maior o sucesso acadêmico.
É claro que esse sucesso não se resume à inteligência. Fatores não cognitivos, isto é, não ligados à inteligência, também podem interferir. Um desses fatores é a personalidade. Isso porque uma pessoa pode ser inteligente, mas ser preguiçosa. Nesse caso, ela não vai ter disciplina suficiente para sentar detidamente por horas, durante anos, para adquirir conhecimento necessário sobre sua área de estudo. Essa disciplina é explicada pelo nível de conscienciosidade, um dos cinco fatores da personalidade (que explico detalhadamente em outro texto). Um elemento associado à conscienciosidade é o gosto e perseverança na perseguição de metas com recompensas de longo prazo. Essa característica parece também estar bastante associada ao desempenho acadêmico, na medida em que a educação parece ser o melhor exemplo de tarefa que envolve recompensas futuras.
Inteligência e conscienciosidade são traços herdáveis, e isso significa que testes que selecionam pessoas com maior desempenho cognitivo (inteligência) e com maior capacidade de se concentrar e cumprir metas (conscienciosidade) estão fazendo uma seleção de genes também. Existe um fator da personalidade que não necessariamente confere vantagem em termos de sucesso acadêmico, mas que está altamente associado à inteligência. Esse fator é a abertura à experiência, que está associada ao prazer de lidar com informações ou experiências novas, curiosidade intelectual, gosto estético e etc. Por exemplo, artistas e cientistas costumam ter níveis altos de abertura. Curiosamente, pessoas mais abertas a novas experiências tendem a ser mais inteligentes, a ter níveis mais altos de educação, mas essas pessoas tendem a ser menos conscienciosas. Isso significa que os alunos que passam para Harvard podem ter uma combinação improvável de características: eles são inteligentes, abertos a experiências novas e conscienciosos.
Conclusão
Com esse texto, tentei elaborar um pouco mais meus comentários no texto da Isabella, sobre Harvard e sobre a indústria de cursos ensinando a passar em provas. Levando em conta a literatura atual sobre desempenho e inteligência, fica claro que o bom desempenho acadêmico depende de vários fatores, mas o fator mais forte deles parece ser a inteligência.
É bem possível que, por exemplo, cursos especializados em ensinar alunos a passarem em concursos estejam acrescentando variáveis que diminuam a importância do papel da inteligência ao passar numa prova. Por exemplo, quem já estudou para concurso público sabe que o primeiro mandamento do concurseiro é comprar uma apostila na banca, com milhões de exercícios, e começar a fazer e refazer aquilo até o conhecimento ser assimilado via osmose. É como no vestibular, os alunos aprendem até mesmo o tipo de resposta que cada banca quer ler.
Mas a minha tese é que isso não diminui o papel do desempenho cognitivo. Provavelmente, quanto mais baixo o desempenho cognitivo de uma pessoa, menos ela vai conseguir reter conhecimento.
E, claro, desempenho cognitivo não é só o que importa para se dar bem academicamente. No início do texto fiz alusão ao sci-fi Gattaca para chamar a atenção para o papel dos genes no comportamento, e para as consequências sociais disso. Mas meu objetivo principal foi provocar um contraste. Não precisamos de uma sociedade distópica com alta tecnologia de manipulação genética para que a manipulação genética seja uma realidade. Uma sociedade assim só teria meios diretos de manipular genes. Mas nós já manipulamos genes de maneira indireta toda vez que criamos uma peneira que seleciona pessoas de acordo com inteligência e personalidade, por mais que a genética não explique nada disso integralmente.