Pensei diversas vezes em como começar um texto sobre fome no Brasil, colocando principalmente a perspectiva da saúde pública. Poderia começar comentando sobre como é deprimente uma ida no mercado em pleno julho de 2022, ou até mesmo citar a minha última ida a Fortaleza, onde o número de pessoas pedindo dinheiro no trânsito aumentou consideravelmente. Poderia falar sobre o projeto de negligência que hoje está em curso no Brasil, poderia ser até mais enfático ao citar que, no momento em que escrevo esse texto, no território brasileiro, 6 a cada 10 famílias estão com insegurança alimentar.

Não existe forma leve e simples para começar, a realidade bate forte na nossa frente, o Brasil voltou ao mapa da fome. No texto de hoje vou abordar como a fome impacta a saúde pública, passando pelos Determinantes Sociais de Saúde e comentando o cenário atual.

Os Determinantes Sociais de Saúde 

Atualmente, se considerar “ter saúde” depende de vários fatores, por exemplo ter acesso a um parque onde você possa caminhar finais de tarde próximo à sua rua, isso tem tudo a ver com saúde.

Trazendo para um lado mais técnico, a nossa qualidade de vida, e em consequência, a nossa saúde, é influenciada por vários determinantes, sejam estes sociais, econômicos, étnicos/culturais, psicológicos ou comportamentais (1). De forma curta são chamados Determinantes Sociais de Saúde (DSS). 

De modo mais abrangente, os DSS podem ser definidos como “os fatores e mecanismos através dos quais as condições sociais afetam a saúde e que potencialmente podem ser alterados através de ações baseadas em informação” (2).

Embora a importância dos DSS hoje seja um consenso, foi algo construído historicamente. Por muito tempo se entendeu que apenas a saúde física era o sinônimo de uma boa saúde e hoje sabemos que vai muito além disso. 

(fonte: link)

Os DSS podem, sim, ser usados para avaliar um único indivíduo, porém essa avaliação deve ser realizada dentro da coletividade (link). Acredito que esse é um ponto sempre abordado em meus textos — saúde pública é e sempre será algo coletivo. 

Os determinantes sociais de saúde podem ser divididos em 5 grupos (3):

  • Físicos e biológicos: Sexo, idade e fatores genéticos;
  • Econômicos e sociais: estrato social, o emprego, a pobreza;
  • Ambientais: qualidade do ar e da água, ambiente social; 
  • Estilos de vida: a alimentação, atividade física, tabagismo, álcool e comportamento sexual; 
  • Acesso aos serviços: como educação, saúde, serviços sociais, transportes e lazer. 

Algo importante de destacar é que nesses 5 grupos não existe hierarquia, ou seja, todos têm total influência sobre o outro. Por exemplo: não adianta eu ter um ótimo estilo de vida, praticar atividade físicas e não fumar, se não consigo ter acesso a condições básicas como um trabalho que me pague um salário digno com o qual consiga, além da minha alimentação e daqueles que são dependentes a mim, ter tempo de descanso e lazer. 

Muito do debate sobre a diminuição da carga horária de trabalho vem justamente da saúde pública e dos DSS. Vamos pensar juntos, vocês conhecem alguém que, no Brasil de 2022, não esteja sobrecarregado de trabalho ou então esteja frustrado com o desemprego? Isso sem levar em consideração a precarização do trabalho, o sucateamento de políticas públicas assistenciais e a perda de poder econômico. Uma nota de R $100 em 2022 tem poder de compra de R $13,91 em 1994 (link).    

E aqui a gente chega no tema principal do texto: fome. Na segunda parte quero contextualizar o que está acontecendo no Brasil atualmente. 

 

O Cenário brasileiro atual na fome

(fonte: link)

De acordo com “2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil” o nosso país tem hoje, em 2022, mais de 33 milhões de pessoas que não tem o que comer, além de 58,7% dos brasileiros viverem algum grau de insegurança alimentar. Em outras palavras, a cada 10 famílias, 6 ou estão com medo de não conseguir se alimentar em um futuro próximo ou já não têm o que comer (link). 

Retrocedemos ao ano de 1990, isso muito devido aos desmontes das políticas públicas, a piora do cenário econômico e seguidos anos pandêmicos, algo que acabou agravando as desigualdades sociais.

De acordo com Renato Maluf, Coordenador da Rede PENSSAN,

As medidas tomadas pelo atual governo para contenção da fome hoje são isoladas e insuficientes, diante de um cenário de alta da inflação, sobretudo dos alimentos, do desemprego e da queda de renda da população, com maior intensidade nos segmentos mais vulnerabilizados.

A pesquisa ainda destaca alguns pontos: a fome tem região (Norte e Nordeste são os mais atingidos, principalmente o campo), a fome tem cor (pessoas pretas e pardas são as mais vulneráveis), a fome tem gênero (as casas chefiadas por mulheres foram mais abaladas principalmente lares com crianças), a fome tem grau de escolaridade (ela está presente nos lares em que se vive com menos de um salário-mínimo, de quem está desempregado e de quem possui baixo nível de formação). 

A fome se alastra no nosso país e, como se tudo isso não bastasse, as pessoas que estão em situação de insegurança alimentar sentem vergonha, tristeza ou constrangimento (link). Uma lógica cruel do sistema capitalista no qual vivemos, em que o indivíduo é o principal culpado por aquilo que lhe acontece, sem quase nunca levar em consideração questões de classe, gênero e raça.

 

(fonte: Elineudo Meira/Fotos Públicas)

Ainda destaco aqui que vivemos o que talvez seja a maior crise econômica e sanitária da nossa geração, sob um governo que prefere negar a gravidade dos impactos que ela causou. Tanto que as consequências disso ainda não foram totalmente mensuradas e provavelmente vão demorar décadas para recuperarmos desse retrocesso. Já as vidas perdidas, por total irresponsabilidade na gestão Federal, essas jamais serão recuperadas.  

Bolsonaro, em seu governo, desmontou sistematicamente políticas públicas que tiraram o Brasil do Mapa da Fome em 2014. Em entrevista ao Joio e o Trigo, Renato Sérgio Maluf, presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar entre 2007/2011, afirmou que “Quando você desmonta programas num contexto em que a realidade econômica está se agravando, o resultado a gente já sabia que ia vir ruim”. 

O Conselho citado no parágrafo anterior foi extinto em 01/01/2019, e logo em seguida (11/02/2019) ocorreu a demissão em massa dos funcionários da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar (link), dando lugar ao Ministério da Cidadania, que não apresentou nenhuma proposta de combate à fome (link). 

 Vale destacar que em 2019 acabaram os estoques públicos de alimentos (como arroz e feijão), mecanismo fundamental para o controle de preços (link).

Voltando às palavras de Renato Sérgio Maluf,

O Brasil sempre foi autossuficiente [em arroz] e o que aconteceu foi que o país está sem estoque, os preços internacionais aumentaram, e a produção, que já era decrescente, uma parte dela foi desviada para exportação, porque pagava melhor.

Para resumir essa segunda parte do texto é importante colocar que: a fome é um fenômeno político. Especificamente no Brasil, se dá pela negligência, pois sequer reconhecem que isso seja um problema que, para ser resolvido, depende de políticas públicas sérias e baseadas em evidências científicas.

Não é algo que será resolvido por soluções “mágicas”, como as já apresentadas pelo governo: comer a sobra dos ricos (link), comer mangas achadas na rua (link) ou que os donos de mercado abaixem o preço voluntariamente (link). Mesmo recentemente, no início de setembro o Presidente Jair Bolsonaro continua repetidas vezes a negar que a fome existe no Brasil link.

 

Os impactos da fome na saúde

Me recordo de ter visto um repórter esportivo explicando o motivo de jogadores jovens, ao sair do Brasil, terem que fazer um tratamento específico para a sua nutrição. Muitos desses atletas têm origem humilde e, na primeira infância, não tiveram acesso à alimentação correta. Isso fez com que o seu desenvolvimento fosse um pouco atrasado em relação a outros atletas de idade próxima no contexto europeu.  

Comecei essa parte do texto com esse pequeno relato, pois mostra como a fome, principalmente na primeira infância, pode refletir durante toda a vida da pessoa. Usando o caso do parágrafo anterior, imagina como um indivíduo, que esteve no contexto de fome quando criança, que não tem acesso a um tratamento nutricional de alto nível, que é oferecido para alguns atletas, conseguiria viver a sua vida e usufruir da sua saúde?

 

(fonte:Chokito/Divulgação)

A fome que atinge o Brasil hoje irá refletir em um futuro próximo na saúde pública. Trazendo novamente a primeira parte do texto com os DSS, é impossível alguém poder ter saúde se está em um contexto de fome ou insegurança alimentar. Com os preços dos alimentos sempre subindo, o salário tendo um poder de compra cada vez menor e não consegue suprir o básico. 

Um estudo recente da Universidade de Edimburgo (Escócia) concluiu que: a fome reduz a capacidade cognitiva. Segundo o estudo foi descoberto que quando camundongos passam por longos períodos de privação de comida há uma redução da produção de ATP, proteína fundamental na produção de energia em seres vivos usada principalmente nas sinapses. Ainda de acordo com a pesquisa, os roedores têm uma visão de mundo alterada, meio como se a bateria tivesse no modo baixa energia. 

Outro estudo, da UNICEF, relatou que a insegurança alimentar também aumenta o consumo de alimentos ultraprocessados. Alimentos clássicos na mesa brasileira, como arroz e feijão, vem sendo substituídos por comidas menos saudáveis com pouco conteúdo nutricional. A pesquisa relatou que os principais motivos de as famílias terem esse tipo de alimentação foi: dificuldade de acesso a alimentos saudáveis, custo mais barato, praticidade e sabor. 

É alertado há anos pela a OMS que o consumo desse tipo de alimento é um dos principais fatores de risco para o desenvolvimento de doenças cardíacas, diabetes e obesidade (link). Agora, em um contexto brasileiro como estou relatando no texto, é impossível mensurar os impactos futuros. Só sabemos que o desafio vai ser grande para a saúde pública. 

 

Foto: Annelize Tozetto

Agora sei como começar o texto. Quando criança, lá por 2001, minha mãe trabalhava na cantina de um projeto social que funcionava na esquina de minha casa. Eu devia ter uns 6 anos e sempre ia acompanhada com ela e participava das atividades por lá, tinha amigos, brincava e pintava. Uma coisa que constantemente me chamava a atenção era que, às vezes, principalmente às segundas, as crianças desmaiavam, sim simples assim desmaiavam e ia uma ambulância no local.

Só fui entender o motivo de isso acontecer anos depois, as crianças estavam com fome. Aquele projeto social era um dos poucos lugares onde havia acesso a comida durante toda a semana, por isso desmaiavam de fome na segunda-feira, por terem passado o final de semana inteiro sem ter o que comer.     

É simplesmente inaceitável que isso volte a acontecer no Brasil em pleno 2022. Já fomos exemplo do combate à fome em um passado recente (link) e talvez possamos fazer isso novamente. Pensando um pouco em como terminar de forma positiva, acredito que cedo ou tarde o governo de Bolsonaro vai acabar, espero que o mais cedo possível, e aí sim poderemos reconstruir e lidar com tudo o que passamos nos últimos anos. Por hoje é isso paz.

 

Fonte imagem de capa Elineudo Meira/Fotos Públicas

Referências:

  1. BUSS, P. M; FILHO, A. P. A Saúde e seus Determinantes Sociais. 2007. Disponível no link
  2. GEORGE, F. Sobre determinantes da saúde. set 2011. Disponível no link
  3. CARRAPATO. P. et. al. Determinantes da Saúde no Brasil: A procura de Equidade. 2017. Disponível no link

Indicações de textos e podcast:

Volta do Brasil ao Mapa da Fome é retrocesso inédito no mundo https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/01/volta-do-brasil-ao-mapa-da-fome-e-retrocesso-inedito-no-mundo-diz-economista.shtml

Do lixo ao prato: como o governo Bolsonaro entende o combate à fome https://outraspalavras.net/outrasaude/do-lixo-ao-prato-como-o-governo-bolsonaro-entende-o-combate-a-fome/

Política de impostos favorece ultraprocessados que o Ministério da Saúde manda evitar https://ojoioeotrigo.com.br/2022/08/politica-de-impostos-favorece-ultraprocessados-que-o-ministerio-da-saude-manda-evitar/

Eps do Podcast Joio e Trigo sobre fome no Brasil: