Enquanto o mundo (ou boa parte dele) estava de quarentena tentando evitar o contágio da COVID-19, experimentamos uma ampliação dos serviços oferecidos de maneira online: maior facilidade para compras e pagamentos, consultas com profissionais de saúde e até o cadastro para benefícios sociais. A sensação é que dava para fazer TUDO online e o mundo agora se tornara oficialmente virtual, mas e quem não tem habilidade com tecnologia, como fica?

Não é novidade para ninguém o quanto a área de serviços online vem se expandindo e facilitando a vida de muita gente. O que geralmente não percebemos é que essa facilidade está atrelada a uma familiaridade e habilidade prévias ao contato com esses novos sites e aplicativos. Por exemplo: usar o Facebook era mais intuitivo para aqueles que migraram do Orkut, assim como usar smartphones pode ser uma experiência mais simples para quem já usava a internet.

Até mesmo a Kelly Key fazia aulas de informática.

Até aí tudo bem, para fazer uso dos mais variados tipos de facilidades na vida é necessário algum tipo de conhecimento prévio, que geralmente temos contato na escola. Quem lembra das aulas de informática entre o fim da década de 90 e começo dos anos 2000 sabe bem do que estou falando… Pensando assim, então as tecnologias web seriam bastante acessíveis, pois você aprende a usá-las durante o ensino básico, certo?

Digamos que essa não é uma generalização muito inteligente a se fazer e talvez a questão envolva um outro assunto que vimos na época da escola: o envelhecimento populacional. Com o aumento da expectativa de vida, aliado a um sistema de seguridade social (saúde, assistência e previdência), temos um número cada vez maior de idosos na nossa sociedade, com um conjunto de experiências prévias bastante diferente das nossas.

E quando digo isso não falo do estereótipo da vovó e do vovô que permeia o imaginário social: velhinhos com dificuldades de locomoção, que costuram ou fazem crochê, jogam dominó na praça e socializam no bingo da paróquia quando não estão cuidando dos netos. O perfil da terceira idade tem mudado, desde pessoas que continuam trabalhando (por necessidade ou opção), até as que voltam aos estudos, descobrem novos hobbies, viajam e ampliam seu repertório social para além das quatro paredes de casa.

Se pararmos para pensar direitinho veremos que essa é a primeira geração a envelhecer em meio a um mundo digital. Dados apontam que cerca de 70% das pessoas acessam a internet todos os dias (e esse número pode ser ainda maior quando se pergunta sobre o acesso ao Whatsapp, não considerado como acesso à internet por muitos).

Com uma quantidade tão grande de usuários, será que estamos conseguindo tornar o ambiente virtual intuitivo para quem só teve o primeiro contato com a web após os 60? Se você convive com idosos é provável que já tenha sido solicitado para tirar alguma dúvida de como ligar um dispositivo, instalar um aplicativo ou até mesmo para identificar se algo era real ou uma tentativa de golpe.

Eu sempre acho que esse senhor está prestes a me perguntar se o que ele viu é fake.

 

Por maior que seja sua boa vontade e melhor seja a sua intenção, sabemos que esse quadro revela uma perda de autonomia. Um bom exemplo disso saiu há um tempo na BBC, com uma reportagem narrando as dificuldades do Sr. Pereira para assistir aos jogos de futebol do seu time usando ferramentas de streaming. Ele só conseguia ver quando era em canais de TV ou, em caso de serviços on demand, quando havia alguém para lhe ajudar. Ou seja, seu momento de lazer estava condicionado a presença de alguém hábil com tecnologia. Se essa pessoa não estivesse lá, ele não poderia ter esse tipo de divertimento.

Não sei para você, mas para mim isso soa como uma violação de direito! Se lhe pareceu exagero, então vamos ao Estatuto do idoso, que em dois artigos afirma o direito ao lazer:

Art. 3oÉ obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

Art. 20. O idoso tem direito a educação, cultura, esporte, lazer, diversões, espetáculos, produtos e serviços que respeitem sua peculiar condição de idade.

O destaque é proposital, afinal de contas o Estatuto deixa implícito que a pessoa idosa apresenta vivências diversas, além de poder ter alguma condição que dificulte o acesso a determinados meios de lazer.

Outro ponto importante de se lembrar é que a terceira idade é uma etapa após a vida adulta, o que significa dizer que idosos são adultos e precisam possuir autonomia na medida do que sua condição física e psíquica permita.

Por mais que tenhamos avançado em relação a acessibilidade de idosos a espaços públicos instalando rampas e barras de apoio, estimulado a mobilidade com a Carteira do idoso e gratuidade no transporte, incentivado a convivência comunitária através de grupos realizados pelo Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), ainda estamos devendo esse mesmo esforço quando se trata de inclusão digital.

É uma coisa meio “pra inglês ver”, porque dizemos que incluímos, mostramos uma série de espaços adaptados, mas ao mesmo tempo informatizamos todo o sistema de agendamento e atendimento do INSS [que não é fácil de usar, diga-se de passagem], exibimos jogos em ferramentas de streaming, entregamos resultados de exames via aplicativos e uma série de outras facilidades que podem se tornar desafios quase intransponíveis para quem não tem habilidade com o mundo virtual.

E assim começa a se desenhar na nossa frente um processo generalizado de perda de autonomia, se não física, mas de lazer, comunicação e até mesmo acesso a direitos, em uma espécie de incentivo à tutela dessas pessoas ao mesmo tempo em que lhes dizemos para serem autônomas, cultivarem sonhos, bons hábitos e não encararem a velhice como o encerramento da vida, mas como uma etapa desta.

Estamos tornando a vida mais acessível sim, mas para os idosos de amanhã, não os de hoje. E esse texto é fruto da minha indignação após realizar uma reunião do SCFV que debatia como é ser idoso atualmente. Essas ansiedades e revoltas não são apenas minhas, mas deles também e espero que se tornem suas.

 

REFERÊNCIAS:

 

FERNANDES, M. T. de O.; SOARES, S. M. O desenvolvimento de políticas públicas de atenção ao idoso no Brasil. Revista da Escola de Enfermagem da USP [online]. 2012, v. 46, n. 6, Disponível aqui.

FERREIRA, M. A. S.; ALVES, V. P. Representação social do idoso do Distrito Federal e sua inserção social no mundo contemporâneo a partir da Internet. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia [online]. 2011, v. 14, n. 4  Disponível aqui.

FERREIRA, A. F.; SILVA, V. B. da. Acessibilidade e usabilidade da informação na terceira idade: A recuperação, organização e uso da informação na internet para usuários acima dos 60 anos. Múltiplos Olhares em Ciência da Informação[S. l.], v. 3, n. 2, 2014. Disponível aqui.

Lei nº 10.741 – Estatuto do idoso. Disponível aqui.

MIRANDA, L. M. de; FARIAS, S. F. As contribuições da internet para o idoso: uma revisão de literatura. Interface – Comunicação, Saúde, Educação [online]. 2009, v. 13, n. 29. Disponível aqui.

Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos para pessoas idosas – Orientações técnicas. Disponível aqui. 

Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais. Disponível aqui.