Estamos em 2023, a pandemia deu uma boa amenizada, sendo a data que começo a escrever esse texto o primeiro dia em território brasileiro que não se registrou morte por COVID-19 desde 2020, uma loucura, eu sei. Antes de seguir e ver as perspectivas do futuro, temos que olhar para trás, um passado recente, pois afinal qual o resultado desses últimos 4 anos na saúde pública?

Esse é o primeiro texto que escrevo sobre SUS não estando sobre o governo de Jair Bolsonaro, os ares de uma normalidade estão logo no horizonte, mas temos muito com o que lidar e o que aconteceu não pode passar despercebido. No texto de hoje vou partir do relatório do grupo técnico de transição de saúde e refletir sobre o futuro da saúde pública, bora lá.

 

O desmonte

Independente da sua posição política, temos que concordar que os 4 anos do governo de Jair Bolsonaro são marcados pela desconstrução de políticas públicas já consolidadas por aqui. Só para citar como exemplo: as políticas de combate à fome, sobre as quais, já nos primeiros dias de governo, decretos foram assinados que encerravam áreas técnicas de extrema importância, e as políticas assistenciais como o bolsa família, das quais se troca o nome e se extinguem alguns dos pré-requisitos, como a vacinação. 

Com a saúde pública não foi diferente, já em seu primeiro ano o mantra “sucatear para privatizar” era algo bastante comentado entre os defensores do SUS. Sendo uma continuidade das políticas adotadas durante o governo de Michel Temer, tendo como principal símbolo a manutenção do Teto de Gastos.

Descrição imagem 1 mapa do Brasil e do SUS unidos em tons de azul, fonte link.

De resultado temos: Redução da taxa de cobertura vacinal, queda acentuada em consultas, cirurgias e procedimentos diagnósticos realizados pelo SUS, sucateamento da atenção básica, diminuição no acompanhamento de doenças crônicas, retorno de registro de internação infantil por desnutrição, aumento das mortes maternas. Isso são apenas alguns exemplos sem citar o que aconteceu na pandemia. 

De acordo com o relatório de transição:

O grave quadro sanitário brasileiro é decorrente de um conjunto de retrocessos institucionais, orçamentários e normativos que promoveram o desmonte de políticas do Ministério da Saúde (MS) e que afetaram o funcionamento de diversas áreas do SUS.

Perda do papel do MS como principal articulador das políticas de saúde pública é algo marcante e que precisa ser recuperado o quanto antes. O Brasil é um país de proporções continentais, tendo cada região suas próprias individualidades. Por isso é de extrema importância um MS forte, que se baseie em princípios técnicos. 

Durante toda a gestão de Bolsonaro houve a mudança constante de ministros sendo eles: um ligado à saúde privada, um que, de acordo com as próprias palavras, “não sabia nem o que era o SUS” e por último um que abraçou o discurso negacionista. 

Imagina um time de futebol no qual, em 4 anos, os técnicos que por ali passam falam abertamente “não saber nem o que era esse esporte”, não conversar com os jogadores desse time e não concordar com as regras já estabelecidas no futebol. Ao colocar nessa analogia fica claro como a postura adotada pelo governo anterior não daria certo.

É importante pontuar que não é um problema que políticas públicas com o decorrer do tempo sejam extintas, porém, para que isso ocorra, é necessário uma investigação dos dados e uma nova política para os que dependem dessa assistência. Porém, o que aconteceu durante a gestão de Bolsonaro é que elas eram extintas muitas vezes sem um debate, sem algo que as substituísse ou, mesmo tendo novos programas do governo, esses não serem o suficiente, por exemplo o “médicos pelo Brasil” que até o final da gestão não conseguiu suprir a demanda deixada pelos Mais médicos. 

De acordo com relatório de transição, o desmonte atingiu 148 itens em 25 áreas estratégicas, dentre elas Gestão em Saúde, Programa nacional de vacinação (PNI), respostas a emergências sanitárias, Atenção Básica, Políticas de Saúde Mental, Saúde Indígena, Saúde da população Negra, Educação em saúde, Gestão participativa e Controle Social.

Como resultado temos uma piora no funcionamento do SUS, o que leva diretamente a uma piora nos índices de saúde e atinge principalmente os mais vulnerabilizados.

A desconexão da realidade

No governo de Jair Bolsonaro, para além de ser marcado pelo retrocesso, existe uma desconexão da realidade que podemos observar o que foi a pandemia — tínhamos um presidente que se orgulhava de não ter “supostamente” se vacinado, estimulando um discurso antivacina. A desconexão da realidade também paira sobre questões sociais que refletem totalmente na saúde pública. 

O racismo estrutural foi desconsiderado como um fator social de saúde, mesmo existindo uma ampla literatura que aborda o tema. Sob a gestão de Bolsonaro houve uma desarticulação das políticas nacionais de saúde da população negra. Segundo o relatório, o enfraquecimento dessas políticas públicas cria uma barreira no acesso à saúde. 

Ao analisar os dados já disponíveis se observa que a população negra é a que mais se teve morte por COVID-19 (55% das mortes registradas), o maior diagnóstico e mortes por tuberculose (68,1% diagnóstico e 65% das mortes)  e as mortes maternas são 2,5x maior entre mulheres negras quando comparados com brancas. 

(imagem 2 escrito saúde indígena, com as cores do Brasil de fundo, fonte link.)

Vindo para a saúde indígena, é impossível não lembrar das imagens recentes do povo yanomami. Isso conversa diretamente com o tema que tô abordando no texto, ou seja, o resultado da desestruturação de políticas assistenciais para os povos originários. Mais uma desconexão da realidade. 

O relatório de transição confirma diretamente isso, o sucateamento da Vigilância alimentar e nutricional indígena, com a irregularidade e suspensão de medidas que visavam o combate à insegurança alimentar e o saneamento básico. Com isso, uma criança indígena tem 14x mais chances de morrer por diarreia.

A COVID-19 dos povos indígenas foi marcada pela falta de políticas públicas específicas para essa população mais o não fornecimento de EPIs e vacinas. 

Na saúde pública o SUS perdeu também o que o torna talvez a mais democrática instituição brasileira, a participação popular. Talvez você não saiba, mas um dos pilares fundamentais do SUS é a participação social, eu, você, todos os habitantes desse país podem (e devem) opinar sobre a saúde pública.

(imagem 3 escrito em tons escuros participação popular, ao lado, um desenho de pessoas com diferentes origens, fonte link)

Durante a gestão de Bolsonaro foram reduzidos os mecanismos de escuta da sociedade, de acordo com o relatório, houve:

Não reconhecimento da relevância da participação social e do Conselho Nacional de Saúde, com restrição e inviabilização dos debates democráticos, reduzindo os mecanismos de escuta da sociedade e tornando inefetiva a participação comunitária no processo de formulação de políticas públicas.

Impedir e inviabilizar os povos originários, a população negra e a participação democrática no debate da saúde pública são apenas alguns exemplos. A coisa vai muito além disso.

Chega a ser previsível como a última gestão deslocou o debate da realidade na saúde, tirando pilares já bem estabelecidos. Ao não ouvir a população e ao não atender aqueles que estão em situação de vulnerabilidade apaga-se a individualidade do SUS, o que o faz gigante e plural. 

Estou deixando muita coisa do que é abordado no relatório de transição de fora desse texto, fica a indicação da leitura que vai estar aqui nas referências.

Para encerrar vamos avançar no debate de um SUS que está em uma constante construção.  

 

A reconstrução

O SUS foi idealizado no ano de 1986 na 8ª Conferência Nacional de Saúde, no final da ditadura militar. Antes dessa grande conferência houve as etapas municipais, pois é nos municípios que o SUS atua, cada cidadão teve o direito de trazer seus anseios, opiniões e propostas para uma melhor saúde pública. Com isso, a participação popular se estabelece como um dos pilares fundamentais do SUS até hoje. 

(imagem 4 fotografia em preto e branco do dia da 8ª conferencia Nacional de Saúde, fonte link)

No ano de 1990, o SUS deixou de estar previsto apenas na nossa constituição, e foi regulamentado pela Lei 8080/90, que garante a saúde como um direito fundamental do ser humano cabendo ao Estado fornecer isso.

Pulamos para o ano de 2023, especificamente no dia 8 de Janeiro. Terroristas invadem o congresso e atacam a democracia, atacam a Constituição, criam a ilusão de que ela é um mal a ser combatido. De forma direta, o dia 8 de Janeiro de 2023 também foi um ataque à saúde pública, pois ela só é garantida por meio da democracia. 

Novamente o SUS foi idealizado em meados dos anos 80, uma época muito diferente, ou nem tanto, da que vivemos hoje. As questões da saúde pública naquela época eram diferentes, ou nem tanto, das de hoje. O que não muda é a importância da defesa do SUS.

Em 2023 estamos em um mundo pós pandêmico, onde as vacinas e a ciência mostraram a sua força, porém ainda assim tem-se uma parte considerável da população que nega a sua importância e que ganha dinheiro com esse discurso, e aí qual o papel da saúde pública  nesse ponto?

Em 2023 estamos em um mundo onde os efeitos do capitalismo tardio estão expostos, acho que um bom exemplo é os profissionais de saúde serem um dos mais acometidos com a síndrome de burnout, ou seja aqueles que cuidam da saúde dos outros não estão tendo tempo para cuidar da sua própria, e aí qual o papel da saúde pública nesse ponto? 

Em 2023 estão surgindo novas tecnologias que podem extinguir alguns milhares de empregos, essas coisas de chat GPT e outras ferramentas nesse sentido, vão colocar em xeque as relações que temos com o trabalho, e aí qual o papel da saúde pública nesse ponto?

Em 2023 os efeitos das mudanças climáticas estão sendo sentidos, catástrofes vem acontecendo, o Brasil se recoloca internacionalmente no debate ambiental, sendo uma peça de extrema importância, e aí qual o papel da saúde pública nesse ponto?  

São muitas questões e prometo trazê-las por aqui em textos futuros, mas sabe um ponto em comum: o SUS, se bem gerido, tem estrutura para lidar com todas elas.

Estamos saindo de tempos sombrios, em que ativamente o discurso político nos impediu de evoluir como comunidade, com a destruição de pautas já bem estabelecidas. O SUS está em constante evolução, pois ele é construído por uma pluralidade de pessoas. 

 

Referências

 

Relatório do grupo técnico da saúde:

http://conselho.saude.gov.br/images/noticias/2023/GT-Saude_Relatario_Final_1.pdf

O Desmonte – Meu texto aqui no Deviante sobre a fome e saúde pública no Brasil link – Artigo sobre a perda dos pré requisitos do bolsa família link – Texto aqui no Deviante sobre o Sucatear para privatizar link – Teto de Gastos na saúde pública link – “Não sabia nem o que era o SUS” link.   

A desconexão da realidade – Bolsonaro se vacinou quando pregava o discurso antvax link – racismo estrutural como fator de saúde, link – Saúde da população indigena no gov bolsonaro, link

A reconstrução –  Lei 8080/90 link – síndrome de burnout acomete a maioria dos profissionais de saúde link.