Usando a #DesafioRedatoresDeviante, uma ouvinte do Scicast perguntou “Por que as vogais tem sons diferentes dependendo do idioma?”. E aqui estou eu, pegando essa ideia e dissecando ela um pouquinho mais. As vogais não mudam de sons só de uma língua para outra. Elas (e as consoantes também) mudam mesmo dentro da mesma língua! A gente só está muito acostumada para perceber.

Depois de alfabetizados e depois de muitos anos de escrita, associamos automaticamente as letras com os sons, mas não é tão simples assim com todas as letras e todos os sons. Vejam essa poesia:

Senhoras senhora passeiam a cem por hora sensonhar senhar senhamor que lhes aqueça as senhoras que não vivem… porque correm senhora para amar.

Deu para entender? Não? Agora leia em voz alta.

Fez sentido? A poesia é um gênero que brinca muito com essa questão dos sons e grafias das palavras. A poesia, escrita “da forma como deveria ser”, seria: Senhoras sem hora passeiam a cem por hora, sem sonhar, sem ar, sem amor que lhes aqueça as cem horas que não vivem… porque correm, sem hora para amar.

Digam em voz alta: ‘senhoras’, ‘sem horas’ e ‘cem horas’. Três grafias distintas com o mesmo som. Isso é lindo!!! Hehehehe! Mas é também o que torna escrever difícil.

Quando a gente fala, os sons ficam todos juntinhos, há poucas pausas. Ninguém fala separando as palavras, ou falando exatamente como se escreve. Não se esqueçam: aprendemos a falar antes de aprendermos a escrever. A fala veio antes da escrita. Isso significa que tanto as letras, quanto as regras gramaticais vieram depois dos sons já existirem.

Em português, somos alfabetizados com 5 vogais, certo? A, E, I, O, U. Só que essas 5 vogais produzem mais do que cinco sons! Daí inventamos os acentos. Temos a, á, ã, e, é, ê, i, í, o, ó, ô, õ, u, ú. Só que mesmo assim, a gente não consegue representar graficamente todos os sons. Leiam a palavra ARANHA em voz alta. Temos 3 As, sem acento, mas temos (pelo menos) dois sons de A. Ninguém fala áránhá! Analisando essas vogais, percebemos que sempre que temos /m/ ou /n/ o som das vogais fica anasalado porque o ar sai pelo nariz.

Algumas pessoas usam o argumento de que parcelas da população não falam certo porque não falam como se escreve. Mas NINGUÉM fala como se escreve. Esse argumento só reforça preconceitos, regionais e sociais. Vamos fazer um teste? Nível fácil. Tente falar como se escreve este clássico: pastel. Você falou “pastéu” ou “pasteL”? Agora nível difícil. Tente falar como se escreve a palavra ninguém. Vamos primeiro pensar no som do M. Só com isso, você teria que falar ninguéM. Além disso, temos o U que é mudo, mas está ali para que o G seja pronunciado como em Gato e não como em Geléia. Se falássemos como se escreve, teríamos que dizer niNgUéM. Nenhum nativo de língua portuguesa vai falar assim.

Além de tudo isso, ainda temos os sotaques! Imagina só. O povo do Rio teria que escrever “Góxtu djíssu”, enquanto o de Natal escreveria “Góstu díssu” e os mineiros “Gós djís”! E aí ninguém ia se entender.

Muitas dessas mudanças a Fonética, Fonologia e Sociolinguística conseguem explicar. Por exemplo:

  • todos os /o/ no final da palavra que não são a sílaba mais forte tem som de /u/
  • /m/ vem antes de /p/ e /b/ porque esses sons são os únicos que compartilham a característica de encostarmos os dois lábios um no outro. Então, fisicamente, é mais fácil produzirmos o /p/ e o /b/ se sairmos do /m/ do que do /n/
  • /r/ tem pelo menos 5 variações regionais no Brasil

Com relação às diferentes pronuncias em outras línguas, além dos mesmos aspectos de variação que mencionei dentro do português brasileiro, temos influências das outras línguas que as formaram. (O próprio português do Brasil tem pronúncias diferentes do português de Portugal pelas influências indígena e africana que tivemos)

Tentando resumir a resposta da #desafioredatoresdeviante, os sons das vogais mudam de uma língua para outra, mas também mudam na mesma língua. Agora o porquê disso é bem mais complexo e talvez ainda não tenhamos uma resposta muito direta e objetiva.

Saussure é considerado por muitos o pai da Linguística. Para ele (e mais um bocado de gente) a escolha das palavras para representar os objetos é aleatória. Então a resposta mais fácil e objetiva que eu poderia dar seria: não existe um porquê. No entanto, estudos mais recentes mostram que existe uma coisa chamada simbolismo sonoro. O que é isso? As línguas (várias delas) parecem associar certos sons com certas coisas. A Mahayana Godoy (sigam ela no Twitter @mahagodoy) viu, por exemplo, que associamos /i/ a objetos pequenos e /a/ a objetos grandes (para mais detalhes, leiam o texto maravilhoso dela aqui). Portanto, talvez tenhamos outros motivos para as vogais mudarem de uma língua para outra. Pode estar relacionado à cultura. Mas isso foge muito da minha área e não vou me arriscar numa resposta.

 

 

Curiosidade extra:

Outro aspecto gramatical que está relacionado com os sons é a crase. Normalmente, associamos a palavra crase àquele acento /`/. Só que a crase, na verdade, é um fenômeno fonológico. É a junção de dois sons iguais. Como eu disse acima, juntamos sons o tempo todo e transformamos de + a em da, para + o em pro, em + a em na (alguns mais gramaticais que outros, verdade). Quando juntamos a + o, temos ao, como em Foi ao supermercado. A crase em português acontece quando juntamos a + a. Se substituirmos mercado por mercearia, em vez de o teríamos que usar a e ficaria Fui aa mercearia. Como não temos essa grafia na nossa língua, usamos o acento grave /`/.

 

Godoy, Mahayana. 2018. Sócrates, Pokemon e o simbolismo sonoro. Disponível aqui. Acesso em 10/07/2020