Geralmente, quando se pensa em luto, o que vem à mente é o falecimento de alguém. E, de fato, esta é uma de suas definições: dor causada pela morte ou perda de alguém. Mas, como você deve ter reparado, existe um “ou” ali. Isso acontece pois o processo de luto não se dá somente quando existe uma perda relacionada a morte, mas sim em diversas situações que permeiam a jornada do ser humano, sejam elas relacionadas a pessoas (a perda de um ente querido, a mudança de um amigo, o término de um relacionamento) , animais, emprego, etc. O luto acontece quando existe uma perda real ou simbólica de um vínculo significativo com um objeto físico ou psíquico. O ponto final em um ciclo de grande importância para o indivíduo.
Estamos passando por uma grande crise humanitária: a pandemia do COVID-19. Desta forma, o luto, mais do que nunca, tornou-se um assunto extremamente atual. Neste sentido, é necessário quebrar o tabu construído em torno de um processo tão necessário e imprescindível para a elaboração da perda de um vínculo e preservação da saúde mental. Mas, para falar sobre o luto, primeiro precisamos falar de outra coisa: a teoria do apego de Bowlby.
JOHN BOWLBY E A TEORIA DO APEGO
John Bowlby foi um notável psicanalista, psicólogo e psiquiatra britânico, conhecido principalmente pelos seus estudos voltados para o desenvolvimento infantil. O apego, que é o tema central de sua teoria, consiste em um forte vínculo emocional formado entre indivíduos, que persiste a despeito do tempo e de demais circunstâncias. Este vínculo se inicia nas primeiras semanas de vida, quando o bebê dá seu primeiro sorriso social, e pode ser percebido em pequenos gestos como levantar dos braços pedindo colo ao seu cuidador, sorrir quando o enxerga, e chorar quando perde seu cuidador de vista. Essas pequenas atitudes, entre outras, servem para garantir a atenção dele e, como consequência, para proteger o bebê.
Mas o apego não acontece somente na espécie humana, ele também pode observado, por exemplo, em aves, quando os filhotes emitem gritos e o cuidador interpreta como um sinal, consequentemente voltando sua atenção para eles. O fato de gansos, patos e pintinhos seguirem um ser humano após saírem do ovo também é um exemplo da ação do apego. Nas primeiras 18 horas de vida, espécies como essas estabelecem o vínculo com sua mãe e seguem ela para onde ela for. Caso se liguem a outro objeto de apego, como um humano por exemplo, tendem a não voltar para a mãe. Para teóricos da psicologia, como Freud, por exemplo, o apego pela mãe ocorria porque ela era a principal fonte de alimento. Entretanto, estudos apontam que esse apego também ocorre devido a uma busca por conforto e segurança. Pode-se notar também nos bebês humanos uma reação chamada “ansiedade de separação”, que ocorre quando eles começam a aprender a engatinhar, entre seis e oito meses de idade e, por não enxergar seu objeto de apego (cuidador) ou quando são separados deste, se sentem angustiados, com medo e assustados. Entretanto, quando não existe uma situação estressante, a presença do cuidador os incentiva a explorar o ambiente. E quando estressados, eles buscam uma maior proximidade com o cuidador.
O apego infantil é dividido em três tipos: o apego seguro, o evitativo e o ansioso-ambivalente. O que isso significa? Bem, o apego seguro está em cerca de 65% das crianças. É o apego descrito acima: quando o cuidador está presente, a criança se sente segura, bem e feliz. Quando ela não enxerga o cuidador, experimenta a sensação de ansiedade de separação. Quando o cuidador volta a aparecer, ela se sente bem novamente, e procura uma maior proximidade, em seguida voltando a brincar. Já no segundo tipo, o evitativo, (aprox. 20%-25%), essa sensação de ansiedade de separação não costuma acontecer e, quando ocorre, a criança pode ser consolada por outra pessoa desconhecida. Se a figura de apego voltar a aparecer, a criança tende a esnobá-la e, se procura proximidade, é de forma contida e hesitante. Já no último tipo (aprox. 10%-15%), a criança se sente ansiosa tanto quando o cuidador está presente quanto quando ele sai. Quando a figura de apego se ausenta, ela passa por uma ansiedade de separação quase que inconsolável e, quando volta, a criança, ao mesmo tempo que deseja o contato, o evita – sendo isto representado pela procura do colo só para rejeitá-lo depois, tentando se desvencilhar do cuidador.
O padrão de apego no indivíduo adulto condiz com o edificado durante o desenvolvimento infantil. Isso significa que a qualidade do padrão desenvolvido na infância corresponde a qualidade dos mecanismos de elaboração e enfrentamento de possíveis e reais perdas e também da não disponibilidade da base segura (a figura de apego). Neste sentido, a teoria do apego estabelece bases teóricas importantíssimas para a elaboração do luto, e nos norteia na busca de um entendimento dos sintomas e sentimentos relacionados à elaboração do luto.
TEORIAS DO LUTO
Como explicitado anteriormente, o luto não acontece somente na perda de uma pessoa. Ele se dá em diversas situações em que um vínculo significativo é cortado simbólica ou verdadeiramente. É um processo que, se desenrolado de forma tranquila e sem grandes complicações, corresponde a uma reação normal e esperada perante uma perda. Entretanto, quando mal elaborado, pode ter consequências negativas. Para falarmos sobre essas consequências, antes de tudo, precisamos conceituar as teorias referentes ao luto.
Num primeiro momento, devemos categorizar as teorias em três tipos: teorias de estágio, teorias de fase e teorias de tarefa. Nas teorias de estágio, temos como exemplo a teoria de Elisabeth Kubler-Ross. Elisabeth Kubler-Ross foi uma psiquiatra suíço-americana que, após ter sua adolescência marcada pela Segunda Guerra Mundial, quando se dedicou a tratar feridos na Polônia e na Rússia, decidiu se entregar aos estudos voltados para o luto. Em 1969, publicou seu livro “Sobre a morte e o morrer”, primeiro de uma série de obras que a consagraria como uma grande especialista no assunto. Sua teoria se baseia na ideia de que existem 5 fases do luto: a negação, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação. Entretanto, ao contrário do que muitos pensam, a teoria de Kubler-Ross, por mais que possa ser aplicada ao luto pelo outro, se apoia na aceitação da própria morte, e se baseou em pacientes terminais. Ademais, a ideia de que existem estágios pressupõe que seja uma jornada linear, o que não é verdade: é possível ir e voltar pelos estágios, pular alguns, alterar a ordem e até mesmo ter recaídas após o suposto estágio final.
Na segunda categoria, teorias de fase, temos Parkes (psiquiatra britânico autor de inúmeros livros no assunto), Bowlby (já citado) e Sanders (psicóloga, autora de livros voltados para a elaboração do luto). Parkes traz quatro fases: torpor, que segue a perda; saudade, quando o indivíduo tenta negar o acontecido e anseia pelo retorno; desorganização e desespero, quando o indivíduo encontra dificuldades na produtividade e na exerção de sua função no ambiente onde está inserido; e por fim, reorganização, que é autoexplicativa. Bowlby reforça essa ideia, com fases muito similares às de Parkes, já que tem um alinhamento semelhante. Ambas funcionam da mesma forma que as teorias de estágio, em que as fases se sobrepõem, se confundem e alteram sua ordem. Por sua vez, Sanders aponta 5 fases: choque, consciência da perda, conservação – retirada, elaboração e reparação.
William Worden, uma das autoridades mundiais no tratamento do luto, comenta que, em sua opinião, essa categoria passa ideia de que o enlutado tem o dever de ultrapassar essas fases e, assim, ele estabeleceu sua teoria no conceito de tarefas, pensando nos estudos de Freud sobre o luto. Sua justificativa é de que, desta forma, existe um consenso de que o enlutado deve ter um esforço consciente para transpassar o processo de luto, assim desenvolvendo uma sensação de poder e esperança. A primeira tarefa é aceitar a realidade da perda. A segunda, processar a dor. A terceira, ajustar-se ao mundo sem o objeto de apego. E, por fim, a quarta se trata de encontrar uma forma de estabelecer uma conexão duradoura com o objeto de apego em meio ao início de uma nova vida.
Na segunda parte do texto, você vai aprender sobre as consequências negativas que a má elaboração do luto pode nos trazer, e também como lidar com o luto mantendo o distanciamento social, mas sem prejudicar sua saúde mental.
REFERÊNCIAS E SUGESTÕES DE LEITURA
A FIOCRUZ elaborou um livro, com todas as cartilhas voltadas para saúde mental e atenção psicossocial na pandemia COVID-19. Grande parte do texto, incluindo a ideia, veio dessas cartilhas e do curso ministrado por eles. Link para download
O Aconselhamento do Luto e Terapia do Luto, do Worden, foi uma base imprescindível para a elaboração deste texto. Recomendo a leitura para o entendimento do funcionamento do luto, principalmente para quem tem interesse em trabalhar na área.
Talvez Você Deva Conversar com Alguém, de Lori Gottlieb, também foi primordial no surgimento da ideia, já que trata essa questão do luto de forma leve e divertida. Um grande livro.
Os livros da Elisabeth Kubler-Ross também são uma grande base para a obtenção de conhecimento sobre o assunto.
WandaVision, disponível na plataforma de streaming Disney+, é interessante para traçar paralelos com as teorias tratadas no texto e as reações dos personagens diante do luto, além de ser uma série muito boa.
Nesse texto também foram utilizados os seguintes artigos:
DALBEM, Juliana Xavier; DELL’AGLIO, Débora Dalbosco. Teoria do apego: bases conceituais e desenvolvimento dos modelos internos de funcionamento. Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro, v. 57, n. 1, p. 12-24, jun. 2005. Disponível aqui.
NASCIMENTO, Cecilia Cassiano et al . Apego e perda ambígüa: apontamentos para uma discussão. Rev. Mal-Estar Subj., Fortaleza, v. 6, n. 2, p. 426-449, set. 2006. Disponível aqui.
CREPALDI, Maria Aparecida et al . Terminalidade, morte e luto na pandemia de COVID-19: demandas psicológicas emergentes e implicações práticas. Estud. psicol. (Campinas), Campinas, v. 37, e200090, 2020. Disponível aqui.
Dhiulyane Farias Gomes Fuentes, mais conhecida como Dhiulyane Gomes, ou só Dhiu. 20 anos, Graduanda em Psicologia. Apaixonada por música e livros, militante nas horas vagas, aspirante a cientista e pesquisadora. Fã da Débora Noal, Beyoncé, e Emicida. Sonha em viajar pelo mundo, pintando tudo de AmarElo, tirando a dor do peito do outro, e provando que o Preto é Rei. Ah, sim, eu sou a filha da professora Daiane, e neta da professora Maria do Carmo!