Na parte 1 desse texto, discorri sobre as principais características desse movimento político-cultural da década de 20, que tanto tem a nos ensinar até hoje. O Renascimento do Harlem contou com a participação de escritores, músicos e diversos intelectuais e artistas espalhados pelo globo, para além do famoso Cotton Club, principal clube de jazz de Harlem, Nova Iorque.

Vimos que o jazz abriu uma janela possibilitando uma reflexão de toda a sociedade sobre a arte e a intelectualidade negra, seu peso e importância, e o quanto todos, brancos e negros, poderiam (e ainda podem!) se beneficiar dela. Enquanto o jazz como estilo musical cheio de qualidade poética e inovação entrava para a história da Música, escritores notáveis, atuantes no mesmo período, entravam para a história da Literatura.

Não se pode falar de Renascimento do Harlem sem falar de Alain Locke. Em 1925 ele escreveu a obra que foi considerada a bíblia do movimento, “The new negro: an interpretation” (O novo negro: uma interpretação). O próprio nome desse livro já diz muito. Como descendente de escravos, Locke veio para afirmar-se como um intelectual negro, consciente das dores do seu povo e, por isso mesmo, mais alerta ainda em relação à importância de se reconhecer a intelectualidade e a capacidade de sua comunidade, abrindo espaço assim para o novo negro: o negro que se liberta do estereótipo que lhe foi imposto de trabalhador braçal, para abraçar todas suas as possibilidades e potencialidades.

Essa obra foi tão icônica que também deu nome ao movimento. O Renascimento do Harlem também pode ser chamado de New Black Movement, ou seja, Movimento do Novo Negro. Um livro escrito por um autor negro e publicado por editores negros, algo notável e simbólico, já que antes de Locke a literatura negra era, infelizmente, invisível.

Alain Locke não é só reconhecido pela sua produção literária, mas também pela sua trajetória de vida e atuação como professor. Ele se formou em Inglês e Filosofia em Harvard, e alcançou o marco histórico ao ser o primeiro negro a ganhar a Rhodes Scholarship de Oxford. Sofreu preconceito mas continuou na sua trajetória e se tornou professor na Universidade de Howard, onde, mesmo com alguns percalços, completou sua jornada até a aposentadoria.

Vários outros autores do mesmo período merecem destaque, entre eles as escritoras mulheres: Nella Larsen, Zora Neale Hurston e Helene Johnson, grandes nomes, cheios de talento, que foram as precursoras das gigantes Toni Morrison e Alice Walker (entre outras), que vieram posteriormente, para reafirmar com ainda mais força a genialidade, a notória presença de autoras negras na Literatura.

Uma das poetas marcantes advindas desse período é Helene Johnson. Minha parte favorita da sua biografia é que ela escrevia um poema por dia e o fez até o dia da sua morte, aos oitenta e oito anos. Ela escreveu contos e poesias premiados, entre eles Bottled e Sonnet to a Negro in Harlem. Deixo para vocês alguns versinhos deste último:

“You are disdainful and magnificent—
Your perfect body and your pompous gait,
(…)
I love your laughter arrogant and bold.
You are too splendid for this city street”

Minha tradução:

Você é afrontoso e magnífico

Com seu corpo perfeito e seu jeito de andar pomposo

Eu amo sua risada afetada e atrevida

Você é esplêndido demais para essa cidade.

É incrível como Johnson consegue colocar em palavras, de forma tão acurada, esse sentimento de empoderamento e confiança que felizmente arrebatava muitas pessoas negras na época. É um conscientizar-se em relação a própria beleza e capacidade, que podemos encontrar em inúmeros poemas e canções advindos do movimento.

Uma grande amiga de Helene Johnson, nome que não podia faltar nesse texto, é a Zora Neale Hurston. Ela se dedicou à vida acadêmica, especialmente na Universidade Columbia, onde pesquisou sobre o folclore caribenho e afro-americano e como a identidade dessa população se forma. Hoje podemos usufruir da produção literária de brilhantes autores caribenhos, muitos dos quais residem atualmente nos Estados Unidos, graças aos caminhos que foram abertos inicialmente por pensadores da época do Renascimento do Harlem. Deixo aqui uma nota de recomendação ao trabalho da Jamaica Kincaid, em especial, escritora negra e caribenha, que com o seu conto “Girl” me conquistou e me tem como super fã.

Hurston foi além da academia e foi bastante produtiva em vida. Escreveu mais de cinquenta contos e peças, além de três romances muito bem avaliados pela crítica. Ela descreve a vida e a luta da mulher negra na sociedade norte-americana racista e segregacionista. Sua escrita é reveladora e acusatória, e inspirou profundamente outras autoras que hoje são consideradas canônicas, como Alice Walker. Walker inclusive escreveu o aclamado artigo “In search of Zora Neale Hurston” (“À procura de Zora Neale Hurston”), um importante registro da grandiosidade e importância de Hurston.

Não será possível falar sobre todos os autores aqui, mas não posso deixar de mencionar Nella Larsen. Ela foi enfermeira, bibliotecária, e ainda arranjou um tempinho para ser uma escritora bastante reconhecida, mesmo tendo poucas produções publicadas. Sua escrita inquisidora traz à tona profundas reflexões sobre questões de identidade sexual e racial. Um marco na Literatura, sem dúvida.

De acordo com a professora Louisa Layne da Universidade de Oslo, “What is high and low culture is related to who is high and low culture“, ou seja, “o que é alta e baixa cultura está relacionado a quem é alta e baixa cultura”. O racismo estrutural que permeia nossa sociedade já há tanto tempo fez com que a academia, as artes e a Literatura por muito tempo tivessem fechado os olhos para talentos negros. Djamilla Ribeiro, em Pequeno Manual Antirracista, afirma que “Os sinais de apagamento da produção negra são evidentes. É raro que as bibliografias dos cursos indiquem mulheres ou pessoas negras; mais raro ainda é que indiquem a produção de mulheres negras, cuja presença no debate universitário e intelectual é extremamente apagada”. Ocorre aqui o que ela denomina epistemicídio dentro da academia.

A fim de ser mais uma voz lutando contra esse epistemicídio, deixo aqui outros dois nomes importantes: Jean Toomer e Langston Hughes, ambos bastante influentes no movimento. Toomer se recusava a ser associado ao Renascimento do Harlem, enquanto Hughes o abraçava e inaugurava um novo estilo chamado “jazz poetry”, com seus poemas altamente musicalizados e belos.

Concluo esse texto com o poema “I too” de Langston Hughes, e sua conseguinte tradução, “Eu também”, de minha própria autoria. Esse poema é empoderador, bastante significativo e impactante, e revela em si a revolução que o Renascimento do Harlem iniciou. Praticamente cem anos depois desse movimento, o que eu desejo é que possamos viver numa sociedade mais justa e mais plural, consciente da sua história e do seu potencial de futuro. Uma sociedade antirracista, alerta e em constante aprendizado.

I, Too

 

I, too, sing America.

I am the darker brother.

They send me to eat in the kitchen

When company comes,

But I laugh,

And eat well,

And grow strong.

Tomorrow,

I’ll be at the table

When company comes.

Nobody’ll dare

Say to me,

Eat in the kitchen,”

Then.

Besides,

They’ll see how beautiful I am

And be ashamed—

I, too, am America.

Tradução:

Eu também

Eu também, canto a América.

Eu sou o irmão mais escuro.

Eles me mandam comer na cozinha

Quando a visita chega,

Mas eu dou risada,

E como bem,

E cresço forte.

Amanhã,

Eu estarei na mesa

Quando a visita chegar,

Ninguém ousará

Me dizer,

“Coma na cozinha,”

Então.

Além disso,

Eles vão ver como sou bonito

E se envergonharão –

Eu também, sou a América.

* para investigar mais sobre o tema, deixo aqui a minha fala na mesa-redonda Literatura e Lugar da XXIII Semana de Letras da Universidade Federal de Rondonópolis. Dou início aos 51 minutos e 50 segundos.

** na imagem, a deusa Zora Neale Hurston


Bruna Stievano é professora do curso de Letras-Inglês da UFR e se divide entre algumas paixões: cantar, cozinhar e estudar Literatura, História e áreas afins.