O processo de desenvolvimento na infância é delicado em inúmeros sentidos, então é de se esperar que a exposição a contextos racistas nesta fase da vida tenha efeitos duradouros. Pensando nisso, hoje vamos falar sobre quais são esses efeitos e o que podemos fazer para combatê-los
Apesar de o Brasil ser um país multicultural e sua população ser composta majoritariamente por pessoas negras, estas também são a população de maioria abaixo da linha da pobreza. Essa desigualdade socioeconômica se mantém através de mecanismos alimentados pelo racismo estrutural.
Após mais de 300 anos de escravização, a assinatura de uma lei — a lei Áurea — pôs fim ao regime, mas não garantiu aos escravizados os direitos básicos necessários para uma vida digna. Sem terra, indenização ou reparo por todo o tempo despendido em trabalho forçado, muitos acabaram por permanecer nas fazendas, enquanto outros se acomodavam nas periferias.
Entender a origem destes fenômenos é essencial pra que possamos combatê-los. Mas este sistema também impede esse movimento de busca de conhecimento quando ele reforça o branqueamento de figuras históricas negras, e leva às escolas uma história negra que inicia no período de escravização.
Essa mesma estrutura racista se encarrega de minar a mente de jovens negros, e é sobre os efeitos dessas pequenas e grandes agressões que vamos falar hoje. Mas primeiro, precisamos contextualizar: que agressões são essas?
O racismo nosso de cada dia
Muitas pessoas, quando pensam em racismo, têm em mente situações em que pessoas negras são ofendidas diretamente por sua cor, em que as palavras “negro”, “preto” e derivados são usadas claramente em tom pejorativo, ou em que essas pessoas são impedidas de entrar em determinados lugares, mas o racismo muitas vezes é mais sutil do que isso.
A ausência de pessoas negras em cargos de liderança, a naturalização de corpos europeus como padrão de beleza, o apontamento de características negras (cabelos crespos, lábios e nariz grossos) como não atraentes e em contraparte a sexualização e objetificação de corpos negros, o silenciamento de pessoas negras (quando falamos não somos ouvidos, mas quando alguém branco diz exatamente o que falamos é aplaudido) são algumas das faces que o racismo assume na nossa sociedade.
E como isso afeta as mentes das crianças negras?
As crianças negras passam constantemente por situações de racismo, o que faz com que o cérebro se mantenha constantemente em alerta, provocando o chamado “estresse tóxico”. De acordo com uma matéria da BBC sobre o tema, baseada em estudos de Harvard, “Na prática, áreas do cérebro dedicadas à resposta ao medo, à ansiedade e a reações impulsivas podem produzir um excesso de conexões neurais, ao mesmo tempo em que áreas cerebrais dedicadas à racionalização, ao planejamento e ao controle de comportamento vão produzir menos conexões neurais.”
Isso pode gerar efeitos a longo prazo no comportamento e saúde física das crianças, pois a exposição ao racismo e discriminação cotidiana gera um estresse exacerbado crônico, trazendo um desgaste ao cérebro. Além disso, crianças negras expostas ao racismo cotidiano têm mais chances de desenvolver doenças crônicas ao longo da vida.
Isso sem falar no racismo indireto, pois o estresse gerado pelas adversidades do dia a dia peculiar a pessoas racializadas também acomete os pais e responsáveis, voltando como um boomerang para os menores.
Mas como quebrar o ciclo do racismo e permitir que estes jovens cresçam saudáveis?
O primeiro passo é falar sobre o problema, estudá-lo, compreendê-lo, para que se possa perceber quando ele se apresentar em suas diversas faces e nuances. Após isso, é possível inserir na educação e na vida dessa criança elementos da cultura que envolve a negritude. Trazer a esta criança o orgulho de ser quem é, mostrar para ela de onde ela veio e que ela pode ser tanto quanto qualquer um é fundamental para construir a autoestima que dela foi retirada.
Também é essencial que essa criança seja cercada de pessoas que são semelhantes a ela. Por isso a representatividade é uma questão tão importante. Saber que indivíduos iguais a você podem estar em determinadas posições faz você se enxergar nessas posições também. Mas esse é um debate que precisa ser muito mais aprofundado e cabe a um texto exclusivo.
Infelizmente, estas são apenas soluções individuais. No entanto, são o primeiro passo para que as sementes plantadas nestas pequenas mentes possam crescer e florescer, permitindo que essas experiências sejam catalisadoras de um novo amanhã.
A criança negra que fala ‘não, mãe, meu cabelo não é feio’ desloca aquele ciclo naquela família, de todas as mulheres alisarem o cabelo. […] Um olhar afetivo nessa história quebra o ciclo.
Cristiane Ribeiro, psicóloga e autora de um estudo sobre como a população negra lida com o sofrimento físico e mental
Para finalizar, insiro aqui um trecho da música Amoras, que originou o livro de mesmo nome, de autoria do rapper Emicida, que fala sobre uma menina que entende sua identidade enquanto negra após uma conversa com seu pai debaixo de uma amoreira.
Entre amoras e a pequenina eu digo:
As pretinhas são o melhor que há
Doces, as minhas favoritas brilham no pomar
E eu noto logo se alegrar os olhos da menina
Luther King vendo cairia em pranto
Zumbi diria que nada foi em vão
E até Malcolm X contaria a alguém
Que a doçura das frutinhas sabor acalanto
Fez a criança sozinha alcançar a conclusão
Papai que bom, porque eu sou pretinha também
Referências
4 efeitos do racismo no cérebro e no corpo de crianças, segundo Harvard, pela BBC – Link aqui
Racismo, Educação Infantil e Desenvolvimento na Primeira Infância, pelo Núcleo Ciência pela Infância – Link aqui
Racismo estrutural: O que significa e como combatê-lo?, pelo site Alma Preta – Link aqui
Amoras, por Leandro Roque de Oliveira (Emicida) – Link aqui