Aprendendo com a natureza: materiais que unem tecnologia, arquitetura e arte[i]
Muitas vezes, quando lemos sobre alguns projetos arquitetônicos é comum encontrar referências às formas de plantas ou animais para o resultado da forma da arquitetura – pode ser uma referência nas asas de um pássaro, nos olhos de uma pessoa, no tronco de uma árvore, dentre várias outras coisas.
Entretanto, o que a matéria do Archdaily “Aprendendo com a natureza” nos traz é uma maneira diferente para olhar essa inspiração na natureza. Essa ideia, que recebeu o nome de arquitetura biomimética busca não apenas replicar as formas da natureza, mas também partir do funcionamento de elementos naturais para aplicá-los na arquitetura, enxergando os potenciais dessas estratégias naturais na resolução de problemáticas do design e na criação de recursos mais sustentáveis na construção civil.
A publicação inicia falando sobre a planta lótus e como a propriedade auto-limpante e ultra-hidrofóbica de suas folhas (ou seja, nem sujeira, nem água penetram em suas folhas) pode ser um recurso também em materiais da construção civil. No caso da lótus, isso é possível pois sua folha possui uma série de minúsculas dobras que reduzem a superfície de contato, repelindo as partículas que tentarem aderir a ela, mas no caso da construção civil, essa propriedade poderia impactar significativamente materiais como tintas, tecidos ou até telhas que passariam a exigir menos manutenção – pensando especialmente em edifícios muito altos ou até mesmo no caso de painéis fotovoltaicos (aqueles que captam energia solar para transformação em energia elétrica), que poderiam, sem resíduos de poluição, por exemplo, captar mais energia!
Outro exemplo citado pela matéria é uma pesquisa desenvolvida pelo Escritório de Pesquisa Naval dos Estados Unidos. Nesse caso, o objetivo era buscar estratégias para redução do uso de tintas anti-incrustantes utilizadas em docas para a proteção da madeira, pois o uso desses materiais causava uma proliferação não desejada de algas. A solução para esse caso veio da análise da pele de tubarões, a partir da qual se notou que a pele desses animais possui um arranjo que remete muito ao padrão de um diamante. O que se observou foi que essa geometria mais complexa tornava esse tipo de superfície menos interessante e menos confortável para a fixação de microrganismos!
Com base nessa informação, foi desenvolvida uma tecnologia chamada Sharklet (sendo que aqui o prefixo “shark” remete à palavra inglesa para tubarão), com um padrão artificial, e que, de tão pequeno, não pode ser visto a olho nu nem sentido pelo tato. Ao fim, por conta desse padrão naaada confortável, esse novo material aplicado a uma superfície a protege contra bactérias e outros microrganismos! Os estudos realizados até o momento indicam que as superfícies com a aplicação da tecnologia Sharklet preveniriam até mesmo a propagação de bactérias causadoras de doenças graves, algumas inclusive causadoras de graves infecções hospitalares.
A matéria ainda cita outros exemplos de técnicas que partiram de demandas da construção civil, mas passaram por uma pesquisa de biologia extensa! Quem ouviu os episódios sobre construção civil no Scicast (episódios #365 e #368) já sabe que uma das coisas mais chatinhas na manutenção de uma edificação é a presença de água. Resumindo muito, quando falamos que a água é uma pedra no nosso sapato, nos referimos ao fato de que se houver um mínimo buraquinho em uma estrutura e uma gotinha de água estiver ali de bobeira, ela vai entrar por esse buraquinho e, possivelmente, causar algum estrago por ali…
Partindo desse raciocínio, foi desenvolvido um concreto autorregenerativo à base de bactérias, que (impressionantemente) se regenera quando aparecem trincas e rachaduras na estrutura. Nesse caso, junto à mistura tradicional da massa de concreto, são adicionados esporos bacterianos protegidos por uma cápsula permeável à água. Em condições normais – ou seja, sem entrada de água – esses esporos nada farão de prejudicial à estrutura. Agora, uma vez em contato com água, esses esporos serão ativados e produzirão calcita, um tipo de biocimento, que vai preenchendo a rachadura quando as bactérias estiverem se movimentando. Embora o custo ainda seja elevado para aplicação da solução em massa, os protótipos realizados em estruturas submersas (como túneis) apresentaram resultados bastante satisfatórios, o que nos deixa aí com uma esperança para um futuro não muito distante.
Indo ainda mais além, a matéria também traz uma pesquisa que parte de uma simbiose ainda maior entre arquitetura e biologia. Nessa situação, o principal questionamento seria se os materiais da construção civil não poderiam identificar variações de cargas estruturais ao ponto de, eventualmente, crescerem, se adaptarem sozinhas? Embarcando nesse pensamento, o grupo Mediate Matter Group, liderado pela professora Neri Oxman, do MIT, busca trabalhar com uma tecnologia de fabricação digital interativa com a biologia. Em seus trabalhos até pavilhões construídos por bichos da seda saíram do papel!
Através desses exemplos fica mais fácil enxergar que os materiais biomiméticos são produzidos pelo ser humano – ou seja, são sintéticos – imitando aqueles naturais. Não precisamos nem dizer que nessa situação, até mais do que arquitetos ou engenheiros, também estão envolvidos biólogos, nanotecnólogos, químicos e muuuitos outros profissionais – uma atividade multidisciplinar bastante complexa e com uma possibilidade de resultados impressionante!
Cientistas criam primeiro atlas global dos microrganismos urbanos[ii]
Continuando com a noção de multidisciplinaridade, mas mudando um pouco a escala para o espaço urbano, a segunda matéria, também do Archdaily, traz a o primeiro Atlas Global de Microrganismos Urbanos, uma iniciativa do Consórcio Internacional Metagenomics & Metadesign of Subways & Urban Biomes (MetaSUB), que conta inclusive com pesquisadores da Fiocruz e da Universidade de São Paulo.
O MetaSUB atua com o mapeamento de microbiomas em várias cidades do mundo e, ao longo dos últimos três anos, coletou dados principalmente dos sistemas de transporte público de 60 cidades, com uma vasta coleta de amostras nesses locais. Tudo isso pois a pesquisa parte da ideia de que, a partir da análise de todo esse material, é possível compreender as características únicas de cada um dos lugares, e, eventualmente, saber por onde cada pessoa passou. Como diz o coordenador da pesquisa, o professor Christopher Mason, “Se você me der seu sapato, poderia dizer com 90% de precisão a cidade no mundo de onde você veio.”.
A pesquisa parte da premissa de que as especificidades geográficas e climáticas de cada cidade impactam diretamente em quais microrganismos podem ser encontrados em cada local. Pensando justamente na circulação desses microrganismos, os equipamentos de transporte público foram escolhidos para fazer essa análise, uma vez que concentram diariamente um maior número de pessoas, que podem trazer até ali uma fauna microscópica extremamente rica e diversa.
Mas é claro que o objetivo da pesquisa não é simplesmente “stalkear” ninguém, né… O objetivo é bem maior do que isso! A ideia é que, a partir da identificação dos microrganismos urbanos de cada local, considerando tanto vírus quanto bactérias, se possa trabalhar com diagnósticos e previsões de risco epidemiológico em determinadas localizações. Seria, portanto, uma pesquisa com bastante potencial para as áreas de planejamento urbano, biologia, medicina e até mesmo para a ciência forense e o desenvolvimento de novos medicamentos.
As primeiras pesquisas trouxeram o sequenciamento do DNA dos microrganismos encontrados e agora os cientistas esperam também sequenciar o RNA, pensando, inclusive, na identificação do SARS-CoV-2, causador da Covid-19.
Através do site do Consórcio é possível encontrar muitos dos resultados já encontrados. Nos mapas interativos conseguimos ver diversas informações para cada uma das amostras, como local da coleta; o tipo de localização (por exemplo: parque, estação de transporte público, hospital, solo); o objeto onde foi realizada a coletada (por exemplo: assento, corrimão, chão, mesa); o material da superfície desse objeto (por exemplo: pedra, madeira, metal, plástico, concreto, borracha); as condições do local aonde estava a amostra (por exemplo: em um térreo coberto ou não); e o dia e hora da coleta. Aqui no Brasil foram realizadas coletas nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Ribeirão Preto.
Referências:
[i] (A) Aprendendo com a natureza: materiais que unem tecnologia, arquitetura e arte – Disponível em: https://www.archdaily.com.br/br/962155/materiais-da-interseccao-entre-natureza-tecnologia-arte-e-arquitetura
(B) Construção Civil (SciCast #365) – Disponível em: https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast-365/
(C) Construção Civil (SciCast #368) – Disponível em: https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast-368/
[ii] (A) Cientistas criam primeiro atlas global dos microrganismos urbanos – Disponível em: https://www.archdaily.com.br/br/963006/cientistas-criam-primeiro-atlas-global-dos-microrganismos-urbanos
(B) Metagenomics & Metadesign of Subways & Urban Biomes – Disponível em: http://metasub.org/
Heloisa Escudeiro. Sou arquiteta e urbanista, mestranda em planejamento urbano e regional, entusiasta a professora, apaixonada por artes manuais e humana de gatos e plantas (e, às vezes, tudo junto e misturado).