A mobilidade a pé como solução pós-pandemia
Desde o ano passado, especialmente em decorrência da pandemia de covid-19, muitas notícias sobre a mobilidade foram veiculadas – desde a preocupação com a lotação dos transportes públicos até qual seria a melhor maneira de nos deslocarmos pelas cidades.
O que se notou foi uma ampliação da busca por opções individuais de deslocamento – o que, pelo lado positivo, impulsionou a adesão ao uso de bicicletas (com um aumento de 118% nas vendas desses equipamentos entre os meses de junho e julho passados), mas também abriu espaço para alternativas mais poluentes, como a ampliação no uso de motos e automóveis particulares.
Nesse contexto, o incentivo à mobilidade a pé poderia entrar nesse processo – além de acessível a grande parte da população e ser uma maneira de combater o sedentarismo – deslocamentos de até três quilômetros, poderiam acontecer em um intervalo consideravelmente curto de até quarenta minutos, a depender das condições físicas de cada um e do trajeto, o que, muitas vezes é menos do que o tempo disponibilizado em um transporte público.
Os obstáculos sem dúvida são a qualidade da infraestrutura para deslocamentos a pé e o espraiamento de nossas cidades, que certamente é um dos motivos pelos quais nem todo mundo hoje conseguiria chegar ao trabalho apenas por uma breve caminhada, certo?
Pensando um pouco nisso, para além da pandemia, e até mesmo antes dela, pesquisadores e planejadores urbanos vem formulando conceitos e teorias para tornar nossas cidades cada vez mais acessíveis ao caminhar. Vamos começar citando o exemplo da cidade de 15 minutos!
A cidade de 15 minutos
“A cidade de 15 minutos” é um conceito que traz uma perspectiva um pouco diferente da cidade, considerando a distância não apenas em metros ou quilômetros, mas partindo da distância percorrida, em caminhada, durante 15 minutos. Pensando cada um em seu bairro e cidade, quanto tempo você leva, caminhando, até a padaria, o mercado, o trabalho, ou seu filho até a escola, o parque, ao médico?
Embora essa noção de distância pelo tempo seja abordada há alguns anos, o pesquisador Carlos Moreno, professor na Universidade de Sorbonne, na França, propõe uma visão do planejamento urbano “hiper-ligada” à escala do ser humano – um ser humano que se conecte às suas necessidades diárias – de trabalho, alimentação, saúde, educação, cultura, lazer e morar – nessa distância de caminhada de 15 minutos. Nessa visão, cada bairro ou vizinhança deveria oferecer todos esses serviços básicos e não mais apenas grandes centros urbanos.
Importante enfatizar que, a proposta de Moreno não é, em momento algum, mudar os espaços urbanos para meios 100% rurais, mas manter as importantes características econômica das cidades, tornando também essas localidades mais flexíveis, ágeis, saudáveis E acessíveis a todos os cidadãos. Suas propostas partem de novos modelos econômicos e propostas urbanísticas que incentivem uma realocação desses serviços, enfatizando que um uso ativo de cada metro quadrado da cidade IMPORTA.
Embora soe como uma utopia, algumas cidades já iniciaram ações nesse sentido.
Paris lançou seu projeto de “ville de quart d’heure”, ou a “cidade de um quarto de hora”, em 2020. Além de trabalhar com a ideia de tornar cada bairro da cidade mais diversos e ativos economicamente (com lojas, cafés, centros médicos, escolas e locais de trabalho), o projeto também considera a participação de agentes policiais desarmados que irão atuar desde o plantio de árvores até à aplicação de multas por comportamentos indevidos, como jogar lixo em vias públicas.
Outra importante proposta do plano é retirar cerca de 60.000 vagas de estacionamento para veículos dentro da cidade, promovendo a circulação não apenas de pedestres, mas também ampliando a rede cicloviária.
Cidades e pedestres – a caminhabilidade no Brasil e no mundo
Mas, considerando que a cidade de 15 minutos ainda não é uma realidade na grande maioria dos lugares, como podemos compreender melhor as circunstâncias nas quais os pedestres caminham?
Foi pensando nisso que pesquisadores e planejadores urbanos estabeleceram o conceito de caminhabilidade (a partir do termo walkability do inglês). A caminhabilidade pode então ser definida a partir das condições e características do ambiente urbano que favorecem a sua utilização para deslocamentos a pé.
Para quantificar e qualificar a caminhabilidade foram estabelecidas diversas metodologias para índices de caminhabilidade. Como um exemplo, o Instituto de Políticas de Transporte & Desenvolvimento (o ITDP) desenvolveu um índice próprio de caminhabilidade com foco na escala do bairro que permite, além de avaliar o estado atual da vizinhança, auxiliar no monitoramento do impacto de projetos para qualificação dessa localidade.
Composto por 21 indicadores, o índice de caminhabilidade foi organizado em seis categorias:
A PRIMEIRA CATEGORIA, que considera as condições físicas do passeio, engloba os indicadores de TIPOLOGIA DE CALÇADA (se a via é um calçadão ou é compartilhada com ciclistas, por exemplo), MATERIAL DO PISO, LARGURA DA CALÇADA E CONDIÇÃO DO PISO (se há buracos ou declividade acentuada).
Na categoria MOBILIDADE, que considera a disponibilidade e acessibilidade a meios de transporte de média e alta capacidade (como BRTs ou veículos leves sobre trilhos), entram os indicadores de DIMENSÃO DA QUADRA, DA DISTÂNCIA ATÉ esses outros meios de TRANSPORTE E a existência de CICLOVIAS.
A terceira categoria, de ATRAÇÃO, considera como cada tipo de uso ou serviço irá impactar na atração de pedestres para aquela localidade. Entram aqui os indicadores de FACHADAS FISICAMENTE PERMEÁVEIS (um indicador construído a partir da contagem de entradas e acessos de pedestre em toda a extensão de face de quadra, seja para acessar lojas ou para adentrar parques, por exemplo), AS FACHADAS VISUALMENTE PERMEÁVEIS (que considera a extensão de visibilidade ao interior dos edifícios no pavimento térreo, como no caso de janelas ou portas), A EXISTÊNCIA USO MISTO (se há uso residencial e de serviços simultaneamente, por exemplo) E SE HÁ USO PÚBLICO DIURNO E NOTURNO.
Já a CATEGORIA SEGURANÇA PÚBLICA, considera as influências do desenho urbano na sensação de segurança dos pedestres. Entram aqui os indicadores de ILUMINAÇÃO, FLUXO DE PEDESTRES E INCIDÊNCIA DE CRIMES.
A quinta categoria, de SEGURANÇA VIÁRIA, avalia a segurança dos pedestres em relação aos outros modais de transporte. Entram aqui os indicadores de TRAVESSIAS (se ocorrem em nível ou por passarelas, por exemplo), DA VELOCIDADE PERMITIDA AOS OUTROS VEÍCULOS E AS INFORMAÇÕES SOBRE ATROPELAMENTOS.
Por fim, a categoria AMBIENTE trabalha com indicadores que consideram aspectos ambientais. Entram como indicadores A EXISTÊNCIA DE SOMBRA OU ABRIGO, A QUALIDADE DO AR, O NÍVEL DE POLUIÇÃO SONORA E A EXISTÊNCIA DE COLETA DE LIXO.
Para mensuração do índice, foi considerada como unidade básica um segmento de calçada, o que, de acordo com o ITDP, seria definido como a parte da rua localizada entre cruzamentos adjacentes da rede de pedestres em apenas um lado da calçada.
Para cada um dos indicadores devem ser estipuladas pontuações entre 0 e 3, sendo que para cada categoria, a pontuação será a média aritmética dos indicadores que a compõem. Pontuações entre 0 e 0,9 qualificam uma caminhabilidade insuficiente; entre 1 e 1,9, aceitável; entre 2 e 2,9 boa; e 3, ótima.
Os dados utilizados para computação das pontuações do Índice baseiam-se em:
DADOS SECUNDÁRIOS coletados a partir de documentação preexistente, como mapas – especialmente para definição das dimensões de quadras
DADOS SECUNDÁRIOS QUANTITATIVOS coletados em conjunto com agências públicas, como a velocidade permitidas para veículos motorizados
DADOS PRIMÁRIOS coletados via pesquisa de campo – como as condições físicas das calçadas
Vários estudos de campo já foram realizados a partir dessa metodologia e o site do ITDP disponibiliza, inclusive, fichas para facilitar sua aplicação. A metodologia se mostrou adequada para análises em pequena escala, o que facilitaria, por exemplo, a elaboração de propostas ou até o direcionamento de subsídios públicos para determinados locais.
O Instituto também reafirma a necessidade de periodicidade de avaliação, o que seria crucial para acompanhamento qualitativo da implementação de projetos ou até mesmo de novas dinâmicas que possam surgir ao longo dos anos.
Entretanto o ITDP também reforça que, embora seja uma ferramenta bastante abrangente, o índice ainda apresenta um nível de subjetividade elevado – uma vez que também depende consideravelmente de uma observação pessoal no momento da coleta de dados primários. Outro ponto é que as categorias não passam, ainda, por uma distinção de pesos, o que possivelmente poderá ocorrer nas próximas revisões metodológicas.
Ao final de 2020, em complemento à metodologia para o Índice de Caminhabilidade, o ITDP também lançou uma plataforma chamada Pedestrians First – em português, Pedestres Primeiro – na qual disponibiliza outras ferramentas, mapeamentos e índices para uma cidade caminhável.
Para citar um exemplo, através da plataforma é possível navegar por mapas que indicam a proporção de população que vive próxima equipamentos de saúde e escolas – considerando uma distância de até 1 quilômetro. Nessa categoria, as cidades melhor colocadas foram Paris, na França; Lima, no Peru; Londres, no Reino Unido; Santiago, no Chile e Bogotá, na Colômbia.
—
Referências e indicações:
A mobilidade a pé como solução pós-pandemia
Uma utopia para pedestres: a “cidades de 15 minutos”
Índice de Caminhabilidade Versão 2.0 – Ferramenta
Pedestrians First – tools for a walkable city
Study reveals world’s most walkable cities
Heloisa Escudeiro é arquiteta e urbanista, mestranda em planejamento urbano e regional, entusiasta a professora, apaixonada por artes manuais e humana de gatos e plantas (e, às vezes, tudo junto e misturado).