Tá tudo tão caótico nesse 2024 que às vezes tudo o que a gente precisa é de um respiro. Esse respiro pode vir de diferentes formas e para cada um, uma coisa diferente vai funcionar para acalmar o coração e a mente nos piores momentos.
Nesse texto eu vou falar de uma observação pessoal sobre como a nossa música brasileira encontrou um respiro e um colinho no meio do fim do mundo.
Não lidamos com nossos traumas!
Minha sensação é que a gente, como povo do Brasil, resolve muito mal as coisas que acontecem com a gente. Explico, o brasileiro leva o “deixa disso, não é pra tanto”, quando alguém quer puxar uma briga, ao extremo demais. Esse espírito meio apaziguador que a gente tem instalado no nosso drive faz com a gente não elabore os traumas que vivemos.
Foi assim com a escravidão no Brasil. Nós não resolvemos como sociedade. Não punimos culpados, não achamos um jeito de propor uma reparação, não falamos disso exaustivamente até que todo mundo tenha entendido o que aconteceu, a barbárie, o horror que o Brasil normalizou por mais de 300 anos.
Resultado, a gente ainda vive muitas consequências do que foi a escravidão. O racismo estrutural tá aí, enraizado na nossa cultura e nas nossas relações. As pessoas descendentes dos africanos diaspóricos tão exaustas e sofrendo ainda os horrores do que não lidamos socialmente como era devido.
A mesma coisa foi com a ditadura militar, a gente viveu 21 anos de horror e depois da redemocratização o papo do: “deixa disso não foi bem assim, tivemos coisas boas” tá mais em alta do que nunca. A gente não passou a limpo a ditadura até hoje. Todos os esforços da Comissão da Verdade foram pouco. Ainda não responsabilizamos e punimos os culpados e muito menos lidamos com tudo o que houve com o Brasil entre 1964 e 1985. Deixo como sugestão o filme “Ainda Estou Aqui” que tem um olhar sensível e delicado sobre os efeitos perversos dos desaparecimentos praticados pelo estado. Está no cinema, vá assistir.
5 anos depois da Pandemia
Bom, sabendo disso, não é muito difícil pensar o que fizemos com a pandemia de Covid-19 que vivemos recentemente, né? Ainda não lidamos com ela.
Tenho a sensação de que esse vai ser um desses marcos que daqui, 10, 20, 50 anos a gente ainda vai estar tentando entender completamente todos seus efeitos.
Esse é um texto sobre impressões pessoais e o que eu vejo é que todo mundo tá ainda meio quebrado depois de tudo o que aconteceu. Os lutos diversos que tivemos que viver, as pessoas que perdemos, as coisas que deixamos para trás, os planos e projetos abandonados, tá tudo ainda flutuando em um lugar estranho nas nossas vidas.
Os dias de hoje, depois de quase 5 anos do começo da pandemia (sim! tudo isso), são influenciados por tudo o que passamos, mas a gente não entendeu ainda direito o que aconteceu. Para mim a imagem dessa situação toda é de um lutador que sofreu um golpe muito forte durante uma luta, um golpe que deixou ele fisicamente quebrado. O triste é que no meio da luta não deu tempo de consertar o que quebrou, nem de chorar, e nem de se dar conta do tamanho do machucado. O que deu pra fazer foi levantar, continuar a luta como se nada tivesse acontecido e fingir que nem doeu.
Mas a conta chega, pode demorar um pouco, mas chega.
Onde é o nosso lugar seguro?
Eu penso sempre sobre onde a gente se abriga no meio do temporal? Para onde a gente volta quando fica difícil demais de lidar com a vida? No colo de quem a gente chora?
Como eu acredito que a arte, e em especial a música, é refúgio importante, foi lá que eu fui me abrigar enquanto tava tomando porrada no ringue e não tava nem vendo da onde estavam vindo os socos.
Agora, passados quase 5 anos da pandemia, sinto que muitos artistas da música do Brasil fizeram a mesma coisa. Todo mundo meio que foi mergulhar em alguma coisa que pudesse proteger a gente do caos. Nessas horas de desespero a gente vai pro seguro, pro conhecido e que nos traz conforto.
O que saiu disso tudo é que desde 2021, quando a gente começou a vacinar e a vida foi tentando de um jeito meio desengonçado, voltar ao normal tem sido uma tentativa de recuperação da gente através da nossa música, para quem sabe achar o lugar seguro que a gente tava precisando para se abrigar.
Clássicos da Tropicália
Esses dias o Grammy Latino premiou o disco do Xande de Pilares como Melhor Disco de Samba/Pagode. O disco se chama Xande Canta Caetano, lançado em agosto de 2023, e homenageia a obra de Caetano Veloso.
O disco tem músicas muito conhecidas da obra do Caetano, como Tigresa e Alegria Alegria, e outras menos badaladas, se é que dá para dizer isso da obra do Caetano, como O Amor.
O próprio Xande admitiu em entrevista que não era um profundo conhecedor das músicas e fez um mergulho na obra para esse disco. Sorte nossa!
Falando de clássicos da tropicália a Filipe Catto fez um mergulho na obra da Gal Costa, e que vou repetir aqui, não literalmente, uma análise que li para esse disco. Não tem mágica, é repertório bom, bons arranjos e interpretação potente. Concordo em tudo. Belezas São Coisas Acesas por Dentro foi lançado em setembro de 2023.
Esse disco tem clássicos absolutos da Gal, como Vapor Barato, Vaca Profana e outras músicas que são menos conhecidas, do repertório mais recente, como Jabitacá (linda!). O trabalho é tão bom que eu, fã absoluta da Gal, ouso falar que prefiro algumas músicas na versão da Filipe. Fora a veia do rock que a Gal tinha e que foi lindamente homenageada.
Gonzaguinha e Belchior
Indo para outro lado mais MPB, outro disco que foi uma grata surpresa foi o Afeto e Luta da Bruna Caram, de abril de 2023. Ela fez uma homenagem linda para o Gonzaguinha mostrando músicas que evidenciaram os dois lados que, segundo ela, foram fundamentais na obra dele. Canções de Afeto e canções de Luta. A minha única crítica a esse disco é que ele só tem 10 faixas.
Outra cantora que fez um trabalho incrível com a obra de um dos nossos grandes foi a Ana Cañas, cantando as músicas do Belchior. O disco Ana Cañas Canta Belchior, lançado em outubro de 2021, é uma coisa linda. Impressiona demais como as canções do Belchior escritas nos anos 70 são mais atuais do que nunca. Gênio é assim, né? Ela cantou as canções de um jeito todo dela.
Tinha que ter Samba!
No samba eu vou citar essa obra prima que foi o Ivone Rara — 100 anos da Dona do Samba, lançado em agosto de 2022. O disco comemora o centenário da primeira dama do samba e foi lindamente pensado e cantado pelo incrível João Cavalcanti. Uma mulher que compôs Sonho Meu, só para dizer uma das incríveis dela, e que teve que muitas vezes entregar suas músicas para compositores homens porque ela não poderia, como mulher, assinar, merece todas as reverências a sua grandeza e por desbravar caminhos para todas mulheres que vieram depois. João reverenciou Dona Ivone com a maior delicadeza e beleza.
Para não dizer que não falei do rock…
E por fim um disco de rock que foi uma delícia ter escutado agora em 2024. que é o Ana Carolina Canta Cássia. O disco é um EP com 5 músicas, e ela escolheu apenas All Star, O Segundo Sol, Relicário, Gatas Extraordinárias e Malandragem. Tem como não ser delícia ouvir isso? Não tem.
Que delícia foi ouvir tudo isso e me dar conta mais uma vez que a música brasileira é incrível.
O velho e o novo aqui são perfeitamente geniais, com sua importância, poder, beleza e potência.
Tá….mas e agora?
Quando me dei conta desse movimento, e o vi nos artistas que gosto e acompanho, eu percebi logo que, no desespero, a gente volta pra onde é seguro, confortável e quentinho. Devem ter outros tantos artistas que fizeram movimentos parecidos e foram atrás de suas referências.
Eu gosto muito de ouvir as referências dos artistas que eu gosto porque, de alguma forma, consigo me conectar ainda mais com a arte que me toca e captura.
E fora o jeito incrível de descobrir outras músicas, se conectar de um outro jeito com o passado e a história da música? Acho esse poder das releituras incrível.
Voltando ao que me levou a escrever esse texto. Quando a gente perde tudo, fica sem chão, sem saber para onde ir e como fazer para seguir em frente, a gente procura a gente mesmo. Mergulha para dentro para buscar nossa identidade e o que faz a gente ser quem é.
Insisto e vou repetir que o que a gente tem de melhor no Brasil é nossa música. Desconheço arte que consegue mostrar de forma tão incrível a riqueza da nossa cultura, todas as particularidades da nossa história, nossas dores e alegrias, nossas misérias e riquezas.
O que fazer com tudo isso?
Talvez de um jeito muito inocente tô olhando para esse movimento de retomar o que a gente tem de bom como início de movimento maior, de recuperação mesmo. Talvez esse seja um pontapé para olhar para o que a gente tem de bom, nossa riqueza e potencialidades e tentar, se ancorando no passado, olhar para o futuro de um outro jeito, mais otimista.
Quem sabe as pessoas que vão ser tocadas por essas obras não sejam tomadas por esse sentimento de olhar para dentro e de se reconhecer. Indo mais longe ainda, quem sabe isso não ajude a elaborar os traumas, olhar e entender o que aconteceu com a gente, como sociedade, para enfim lidar com tudo o que vivemos.
Idealista demais? Talvez eu seja mesmo.
Não preciso dizer que recomendo todos os discos e espero muito que as pessoas que não conhecem as obras dos artistas que eu citei aqui, conheçam e se sintam acalentadas tanto quanto eu, quando precisei de colo.
Me conta de algum artista que você conhece e que revisitou a obra das referências? Vou adorar saber.
Até uma próxima.
Referências
Foto de Capa – Foto de uma casa em meio a natureza. Em frente à casa, pequena de paredes brancas e telhado vermelho, tem um lago. Em volta, um gramado e várias árvores. Fonte Pexels.
Discos Citados e Ultra, mega recomendados:
Xande Canta Caetano – Ouça Aqui;
Belezas São Coisas Acesas por Dentro – Ouça Aqui;
Afeto e Luta. Bruna Caram canta Gonzaguinha – Ouça Aqui;
Ana Cañas Canta Belchior – Ouça Aqui;
Ivone Rara – 100 anos da Dama do Samba – Ouça Aqui;
Ana Canta Cássia – Vol 1 – Ouça Aqui;