No texto anterior, vimos como a margarina surgiu como uma alternativa mais econômica para substituir a manteiga e como os produtores do derivado de leite travaram uma guerra contra a margarina, apoiando-se no seu caráter industrializado e artificial. Vimos também como os períodos de recessão ajudaram na popularização da margarina apesar dos lobbies e propagandas negativas. Vimos também como eram as primeiras composições da margarina. Agora vamos entender do que a margarina atual é composta.
A margarina também é um derivado do leite?
Quem tem restrição à alimentação de leite e derivado, seja por saúde ou por opção, pode ser induzido a optar pela margarina ao invés da manteiga. Mas a margarina é mesmo um produto livre de leite? A Portaria MAPA – 372, de 04/09/1997, nos responde:
2.1.DEFINIÇÃO: Entende-se por Margarina o produto gorduroso em emulsão estável com leite ou seus constituintes ou derivados, e outros ingredientes, destinados à alimentação humana com cheiro e sabor característico.
Por isso, para que seus produtos possam ser chamados de “margarina” nos rótulos, os fabricantes precisam adicionar neles leite ou algum derivado. No caso, são adicionadas porções menores do que 1% de leite em pó. Essa adição de leite não é suficiente para alterar o sabor e nem a consistência, e também não é suficiente para proporcionar à margarina os valores nutricionais do leite. Sua única e exclusiva utilidade é a função burocrática de permitir o uso do nome de “margarina” no rótulo. Ou seja, a presença do leite acaba atrapalhando veganos e consumidores com alguma restrição ao leite, sendo que poderia muito bem não ter leite nenhum, já que sequer iria alterar as características do produto. Pelo menos uma vantagem da adição do leite é o fato de que, por caracterizar a derivação de leite, os fabricantes de margarina são obrigados a passar pela Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal, atestada com o selo do S.I.F. no rótulo (que a Flavia Ward nos explicou o que é nesse texto).
Existe margarina sem leite?
É pra responder essa pergunta que entra em cena o “creme vegetal”. “Margarinas” e “cremes vegetais” são praticamente o mesmo produto, com a única diferença de as margarinas, por definição, terem que ser derivadas de leite, como vimos acima. O produto que tem exatamente a mesma fórmula da margarina, com exceção da adição de leite, é chamado então de “creme vegetal”. Sua definição é indicada na Portaria 193/99 da Anvisa:
2.1.Definição
CREME VEGETAL é o alimento em forma de emulsão plástica, cremoso ou líquido, do tipo água/óleo, produzida a partir de óleos e/ou gorduras vegetais comestíveis, água e outros ingredientes, contendo no máximo 95% (m/m) e no mínimo 10% (m/m) de lipídios totais.
Apenas uma observação pertinente: por “emulsão plástica” a portaria não se refere ao que popularmente chamamos de plástico (esse material de polímero produzido a partir de matérias primas derivadas de petróleo e gases minerais que usamos em quase tudo), mas sim a uma emulsão de consistência plástica, ou seja, sólida com capacidade de se deformar.
Mas o que é uma emulsão?
Emulsão é a mistura de líquidos imiscíveis entre si (no caso das margarinas e cremes vegetais, é uma mistura de água com gordura vegetal hidrogenada). Para que essa mistura seja possível, é necessário a ajuda de um emulsificante, que vai intermediar o contato entre as duas substâncias (nas margarinas e cremes vegetais, utiliza-se como emulsificante uma proteína da soja chamada lecitina).
A olho nu, as emulsões parecem ter uma fase única, mas, em microscópio, é possível ver as micelas de um dos líquidos dispersas no outro líquido (ou seja, não diluídas, não totalmente misturadas em nível molecular). O fato de emulsões não serem uma solução dá a elas a propriedade de ser opacas e mais viscosas (ou até cremosas). Outros exemplos de emulsões são sangue, leite, condicionador, amaciante, mostarda, maionese, massa de bolo, massa de sorvete, etc. (falei um pouco sobre a propriedade de proteínas poderem ser utilizadas como emulsificante neste texto do Portal Deviante).
O que é gordura vegetal hidrogenada?
Os óleos vegetais (tais como óleo de soja, óleo de palma, etc.), que são matérias primas para a gordura vegetal, possuem ácidos graxos insaturados. “Ácido graxo” é cada um dos “braços” da molécula de óleos e gorduras (moléculas essas que são chamadas de “triglicerídeos”), como pode ser visto na imagem mais abaixo. Serem “insaturados” significa que são moléculas com duplas ligações entre os átomos de carbono e que têm menos átomos de hidrogênio. Essa conformação química confere aos óleos a sua característica líquida.
Para que a sua consistência seja alterada de modo a ficar similar a gorduras pastosas, os óleos passam por um processo chamado hidrogenação (reação com gás hidrogênio na presença de níquel em alta temperatura), em que as ligações duplas vão se tornando ligações simples. No limite, numa hidrogenação completa (com 100% das ligações duplas se tornando simples), o óleo se tornaria uma gordura muito dura, o que também não é desejável. Para uma textura cremosa, a hidrogenação deve ser parcial.
O problema deste processo é que as ligações duplas que sobram, e que originalmente eram cis (voltadas para o mesmo lado) podem ser alteradas e se tornarem trans (de lados opostos). A gordura trans (chamada assim por ter ácidos graxos com duplas ligações trans) aumenta o risco de doenças cardiovasculares, pois estimula a decomposição da HDL (lipoproteína de alta densidade, mais conhecida por “colesterol bom”) enquanto propicia o aumento da LDL (lipoproteína de baixa densidade, mais conhecida por “colesterol ruim”), o que pode levar à formação de placas no interior dos vasos sanguíneos, afetando o fluxo de sangue. A gordura trans ainda pode interagir diretamente com as células que formam as paredes internas do sistema cardiovascular, aumentando a rigidez desses tecidos.
E o que é a gordura “zero trans”?
Existe uma forma de se obter a consistência desejada da gordura vegetal sem formar a gordura trans. Primeiramente, basta hidrogenar 100% do óleo vegetal, pois assim não restará ligações duplas para serem trans. Como dito, isso deixa a consistência muito dura, mas, para resolver este inconveniente, na segunda etapa, mistura-se esta gordura 100% hidrogenada com um óleo líquido não hidrogenado. Essa mistura é então submetida a um processo chamado interesterificação, em que as moléculas do óleo líquido e da gordura de consistência dura têm seus ácidos graxos trocados entre si. O resultado são moléculas parcialmente hidrogenadas, porém que têm ligações duplas que não passaram pelo processo de hidrogenação.
O que mais tem na margarina e no creme vegetal?
A mistura de água com gordura vegetal resulta em uma emulsão de cor branca e com sabor típico de óleo vegetal. Por isso, a margarina ou creme vegetal precisa de aditivos para melhorar suas características organolépticas. Essa característica são justamente as propriedades dos alimentos conforme vemos (cor, aparência), tateamos (textura, dureza), sentimos (sabor, aroma) e ouvimos (o crack ao quebrar e mastigar, o slup de chupar). No caso das margarinas e dos cremes vegetais, eles são aditivados com corante de urucum, aromatizante artificial “sabor manteiga” e, se o produto for “com sal”, o nosso velho conhecido cloreto de sódio.
Ainda são adicionadas substâncias que atuam como “sequestrantes de oxigênio”, também conhecidos como “antioxidantes” (a saber, EDTA ou ácido cítrico), pois oxigênios livres reagem com as moléculas do óleo, deixando o produto com sabor “rançoso”. Esses sequestrantes de oxigênio, juntamente dos conservantes (geralmente benzoato de sódio ou sorbato de potássio, que previnem o desenvolvimento de fungos), permitem uma maior duração das margarinas com as suas propriedades originais. Quanto a contaminação por bactérias, não é uma preocupação para as margarinas, pois um ambiente tão gorduroso não é propício para o desenvolvimento desses microrganismos.
E o que é “alimento a base de margarina e manteiga”?
Algumas marcas fazem uma mistura de manteiga com margarina, apresentando a descrição no rótulo “alimento a base de margarina e manteiga”. Como o produto já contém manteiga, a proporção de margarina dessa mistura não precisa receber a adição de leite em pó para garantir a derivação do laticínio e nem do aromatizante artificial (a quantidade de manteiga na mistura já é suficiente para garantir o sabor). Essa mistura ainda tem a vantagem de manter a cremosidade suave da margarina e ainda ter o sabor tão apreciado da manteiga (ainda que mais sutil). As características nutricionais da manteiga também são amenizadas (tanto as positivas quanto as negativas) e o preço por grama também segue essa lógica – na média entre o preço da margarina comum e o da manteiga.
O quanto de água tem na margarina?
A água e a gordura vegetal juntas compõem quase 100% da massa das margarinas e cremes vegetais, pois a quantidade dos demais ingredientes é muito menor em relação à base da emulsão. É possível descobrir a proporção gordura-água no próprio rótulo do produto, pelo item “Gorduras Totais” informado da tabela nutricional, pois ele se refere à quantidade em gramas de gordura vegetal em uma base 10,0 g. Ou seja, uma margarina que indica 8,0 g de gorduras totais na tabela nutricional é feita com 80% de gordura vegetal e, portanto, quase 20% de água. Uma margarina que indica 3,5 g tem 35% de gordura e quase 65% de água, e assim sucessivamente. Ter esse conhecimento pode ser útil, pois quanto menor o teor de gordura indicado na tabela, mais água você estará levando para casa (dica: não derreta na frigideira margarina com menos de 6,5 g de gordura, pois a quantidade de água causará explosão de bolhas de vapor, espalhando a gordura derretida pela cozinha). Por outro lado, ter mais água significa menos gordura, o que pode ser o objetivo de quem está diminuindo o consumo calórico. Por isso, apesar de serem produtos constitutivamente menos nobres, as marcas com maior teor de água se apoiam no marketing de serem produtos “mais saudáveis”.
O objetivo deste texto não foi qualificar as margarinas, cremes vegetais e gorduras hidrogenadas como vilãs da alimentação saudável ou vítimas de propaganda negativa. A ideia aqui era dar ao leitor uma base científica para conhecer o processo de fabricação e os constituintes deste alimento para então, a partir daí, tirar suas próprias conclusões. Para maiores esclarecimentos quanto aos efeitos na saúde, converse sempre com seus médicos e nutricionistas, mas definitivamente não acredite em tudo que você vê na internet.
Referências
Portaria MAPA – 372, de 04/09/1997
PORTARIA Nº 193, DE 9 DE MARÇO DE 1999 Ministério da Saúde Secretaria de Vigilância Sanitária
Fasano, S. Cibilis E. Margarina – Ingredientes e Formulação. UFRGS, 2003
Gazzola, J. Depin, M. H. Associação entre consumo de gordura trans e o desenvolvimento de doenças cardiovasculares (DCV). Extensio: Revista Eletrônica de Extensão, Florianópolis, v. 12, n. 20, p. 90-102, dez. 2015. ISSN 1807-0221.
Wikipedia – Fat hydrogenation
Wikipedia – Fat interesterification