Você provavelmente viu um rosto na foto da capa. Mas aquilo não é um rosto, é só uma foto aleatória de Júpiter. Você não consegue se controlar. Por mais que, pensando mais um pouco, você descubra que não tem uma face ali, você não consegue deixar de vê-la. A razão não é suficiente para desfazer essa percepção. A mesma coisa acontece com nossos vieses, seja na economia, seja nas relações interpessoais. Nossas decisões serão enviesadas, irracionais, por mais que estejamos cientes disso racionalmente: “sim, eu sei que é só a superfície de Júpiter, mas eu vejo um rosto ali mesmo assim”.
As pessoas se acham tão racionais que, quando perguntamos o que nos diferencia dos demais animais, dizemos que é a racionalidade. Mas a verdade é que somos previsivelmente irracionais. Parafraseando Simone de Beauvoir, não se nasce racional, torna-se. Não somos frios e calculistas o tempo todo como Spock, de Star Trek, mas apenas em momentos circunscritos – e grande parte do que chamamos de racionalidade pode ser um artefato da cultura WEIRD. É por isso que você poderia comprar uma camiseta básica, preta, com preço de fábrica, mas prefere comprar uma camiseta idêntica de uma marca mais cara e famosa.
Isso acontece porque a cognição humana foi moldada para resolver problemas adaptativos recorrentes na história humana, não problemas abstratos típicos da cultura ocidental, como economizar nas compras do mercado ou decidir em quem votar.
Um desses problemas adaptativos é encontrar parceiros ideais para se reproduzir. E isso independe de estar ou não pensando em sexo. Toda espécie sexuada evoluiu sendo capaz de reconhecer parceiros com quem valeria mais a pena se reproduzir, por isso que a maioria das características que contribuem para a beleza têm a ver com fertilidade e saúde (na verdade, é mais complexo que isso, mas vamos facilitar por hoje).
Isso significa que, quando você escolhe comprar uma camiseta mais cara por causa da marca, provavelmente você não está sendo racional (não está calculando custo-benefício), mas agindo segundo heurísticas que evoluíram com o objetivo de aumentar o prestígio ou as chances de parecer atraente. O objetivo desse texto é mostrar como vieses funcionam com base numa lógica adaptativa.
Considere o caso da aversão à perda. Como comentamos no Scicast de Economia Comportamental, pessoas tendem a ter aversão à perda. Ou seja, perder R$200,00 tem um efeito maior do que o efeito positivo de ganhar R$200,00. Na prática, vamos evitar mais perder essa quantia do que vamos arriscar ganhá-la. Se fôssemos racionais como o Spock, as curvas de utilidade seriam equivalentes, ou seja, íamos sentir a mesma satisfação em ganhar e perder esse dinheiro, mas com sinal trocado. Isso tem propósitos adaptativos evidentes. Em ambientes menos controlados do que o nicho ecológico construído pelo Homo sapiens ao longo de milênios, riscos são mais fatais (você não vai ter soro antiofídico para curar uma picada de cobra), então é melhor prevenir do que remediar.
Mas em algumas situações esse viés muda e passamos a arriscar mais. É o que acontece com homens motivados por estímulos relacionados a acasalamento. É por isso que existem páginas como Por que homens vivem menos e o Darwin Awards. Homens são capazes de correr mais riscos (não só riscos desembestados como beber e fumar mais, mas também riscos verdadeiramente heróicos) se isso significar chamar a atenção do sexo feminino, o que também ocorre em situações envolvendo dinheiro (apesar de alguns estudos não terem passado pela crise de replicabilidade). Cassinos já entenderam isso faz tempo, por isso que em muitos deles existem mulheres atraentes sendo exibidas com trajes sumários. Isso faz os homens apostem mais vezes e com valores mais altos, mesmo sem perceber.
As mulheres não ficam de fora desse tipo de viés econômico diante de estímulos “sexuais”. No entanto, ao contrário dos homens, mulheres acabam gastando mais em produtos que as tornam mais bonitas (maquiagem, adereços luxuosos, roupas que salientam suas qualidades físicas), tanto para supostas rivais do sexo feminino quanto para os homens. Isso não precisa ser voluntário: se você perguntar por que ela está comprando, ela pode dizer que quer se sentir bem consigo mesma, por exemplo.
Os efeitos da beleza vão de efeitos econômicos individuais. Pessoas consideradas mais bonitas são beneficiadas por uma série de vieses que elas sem querer ativam em outras pessoas. Por exemplo, pessoas mais bonitas recebem salários em torno de 12% maiores e recebem mais promoções. Elas também são consideradas mais competentes e honestas. Esse viés não ocorre só no momento de contratação ou início da vida profissional, mas longitudinalmente. Um exemplo específico é o mundo acadêmico. Professores mais bonitos (mas não professoras) são mais bem avaliados pelos alunos. Mas em outras áreas o prêmio da beleza beneficia as mulheres, como é o caso das garçonetes, que recebem gorjetas mais generosas do que os garçons. Homens também tendem a doar maiores quantias quando são abordados por mulheres mais atraentes. Segundo o livro de 2011, Beauty pays: Why attractive people are more successful, o gap econômico entre pessoas mais e menos bonitas chega a ser igual ou maior que o gap salarial entre homens e mulheres, brancos e negros (nos EUA).
Existem várias explicações evolutivas para esse prêmio da beleza ser tão prevalente. Se reproduzir é fundamental do ponto de vista da evolução. Isso significa que nossos corpos e certos aspectos da nossa psicologia são moldados para alcançar esse objetivo mesmo sem sabermos disso. As características que tornam pessoas mais atraentes estão em parte ligadas à saúde. Assim, do ponto de vista evolutivo é esperado que essas pessoas mais férteis sejam consideradas mais atraentes e que nós também façamos coisas para parecermos mais atraentes para elas. Por isso no geral as pessoas mais atraentes contam com uma série de vieses positivos em relação a elas. De certa forma é adaptativo ter a tendência (mesmo sem saber o motivo) de se mostrar como mais cooperativo, generoso, e simpático para essas pessoas, especialmente se estamos falando de homens em relação a mulheres.
Claro, ninguém vai assumir esses vieses. Até porque a maioria nem vai percebê-los. Achamos que somos muito racionais, mas na maioria das vezes a razão é usada a posteriori para justificar algo que fizemos “irracionalmente”, ou seja, com base nessas heurísticas adaptativas. Você deve estar achando relativamente indigesto o que acabou de ler, mas a evolução não dá a mínima para isso.