No primeiro texto desta série, vimos as aplicações das especiarias na Idade Média como itens de luxo e medicinais e o efeito de suas substâncias no organismo. No segundo texto, entendemos como elas chegavam à Europa Ocidental passando por navegadores árabes e monopólios no Oriente Médio e no Mediterrâneo. E finalmente vimos no terceiro texto como a busca por novas rotas diretas até as especiarias incentivaram as Grandes Navegações e como Portugal conseguiu o controle sobre as fontes das lucrativas especiarias. Mas e os outros Estados europeus? Como reagiram ao fato de realmente existir rota alternativa pelo mar para se chegar ao Oriente?

A expedição de Colombo em nome da Coroa Espanhola não conseguiu atingir as Índias Orientais por ter encontrado um novo continente no meio do caminho. Mas os espanhóis continuaram tentando descobrir um caminho para as Índias por rota diferente da portuguesa (que não precisasse passar pelos postos portugueses na África e na Índia). Em 1519, Fernão de Magalhães partiu da Espanha comandando 5 navios e 234 homens, dessa vez contornando o já conhecido continente americano. A partir do extremo sul da América, levaram mais quatro meses até finalmente chegarem às ilhas do Oriente, já com a tripulação dizimada pela fome e por doenças (o oceano Pacífico se mostrou maior do que se acreditava). Fernão de Magalhães morreu em combate com nativos nas Filipinas e a viagem de circum-navegação pelo planeta seguiu sob o comando de Juan Elcano, que completou a viagem retornando à Espanha em 1522 com apenas 1 navio e 18 homens.

Com a chegada dos espanhóis ao Oriente, um novo impasse foi criado em torno do Tratado de Tordesilhas, aquele que tinha sido acordado em 1494 e segundo o qual as terras a leste de um certo meridiano estabelecido pertenceriam a Portugal (basicamente metade do atual território brasileiro) e as terras a oeste seriam da Espanha (o restante do continente americano). Ora, se a terra é redonda, e a expedição de Fernão de Magalhães provou que o extremo Oriente estava sim a oeste do continente americano, logo todas as Índias Orientais pertenceriam à Espanha conforme acordado em Tordesilhas. Para resolver o imbróglio, um novo tratado foi assinado em 1529: o Tratado de Saragoça, que estabeleceu os limites de cada reino no Oriente: traçou-se um antimeridiano, ou seja, um meridiano equivalente ao de Tordesilhas (a distância entre um meridiano e seu antimeridiano é a mesma em ambos sentidos, e a união entre os dois divide o globo em duas partes iguais). O novo tratado garantiu a Portugal o controle sobre as principais terras produtoras de especiarias, em especial as Ilhas Molucas, conhecida como “Ilhas das Especiarias”.

Expansão marítima da Coroa Portuguesa nos séculos XV e XVI, conquistando possessões nas costas africanas, no recém descoberto continente americano (o Brasil) e no Oriente (Índia, Sudeste Asiático, China e Japão). O mapa mostra também a circum-navegação de Fernão de Magalhães e Juan Elcano em nome da Coroa Espanhola. As duas linhas verticais indicam o Tratado de Tordesilhas de 1494 a oeste, e o Tratado de Saragoça de 1529 a leste (fonte).

O acesso dos portugueses às Índias e o estabelecimento de uma rota alternativa direta para a fonte das especiarias, porém, não reduziram o preço das especiarias nos mercados europeus. Ou seja, a demanda por especiarias como itens de luxo era a mesma, a diferença é que agora os lucros estavam indo para grupos diferentes daqueles dos séculos anteriores.

Até a década de 1580, havia um acordo comercial entre Portugal e as Províncias dos Países Baixos (atual Holanda, englobando os atuais territórios de Bélgica e Luxemburgo) em que os portugueses forneciam as especiarias e os Países Baixos comercializavam na França e no norte da Europa. Essa aliança foi encerrada com a União Ibérica, em que a Coroa Portuguesa ficou submetida à Espanhola. Na mesma época, os próprios Países Baixos lutavam contra a dominação espanhola (das dezessete províncias sobre as quais a Coroa Espanhola clamava domínio, sete conseguiram formar a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos, independentes da Espanha). Devido a essa disputa com os Países Baixos, e tendo a partir de então o controle sobre o comércio português, a Coroa Espanhola embargou o comércio de especiarias com os holandeses.

Nesse mesmo período, a Coroa Inglesa, durante o reinado da Rainha Elizabeth I, veladamente apoiava atos de pirataria e comércio ilegal de navegadores ingleses nas possessões espanholas. Além disso, no contexto dos conflitos de independência das Províncias dos Países Baixos, a Inglaterra dava suporte ao grupo protestante holandês, cuja ascensão era combatida pela Coroa Espanhola católica. Como consequência disso tudo, ocorreu uma sucessão de conflitos intermitentes entre Inglaterra e Espanha a partir de 1585, que começou com navios ingleses sendo confiscados em portos espanhóis. Em 1588, quando o Rei Felipe II da Espanha tentou invadir a Inglaterra e destronar a Rainha Elizabeth I, sob o pretexto de restaurar o catolicismo na Europa, os ingleses derrotaram a “Grande y Felicísima Armada” espanhola em uma das batalhas navais mais épicas da história. Abriu-se então caminho para a exploração comercial inglesa no Caribe e nos mares do Oriente, sendo esse o fim do monopólio português-espanhol no comércio de especiarias.

Francis Drake, o corsário mais famoso do período elisabetano. Do ponto de vista espanhol, um típico pirata ameaçador que atacava e pilhava seus navios com carregamentos de ouro e mercadorias. Do ponto de vista inglês, um herói, agraciado pela rainha, e que inclusive participou do contra-ataque contra a tentativa de invasão espanhola de 1588, quando a “Grande y Felicísima Armada” foi derrotada. (fonte)

A partir de então, mercadores ingleses, agora oficialmente autorizados pela rainha, começaram a estabelecer postos comerciais nas Índias. Em 1600, tem-se a fundação da Companhia Britânica das Índias Orientais.

Enquanto isso, os holandeses, que tinham perdido o direito de negociar com os portugueses, fundaram algumas companhias que também passaram a navegar no Oriente a partir de 1595. Em 1602, essas companhias se fundiram, formando a Companhia Holandesa das Índias Orientais. Um dos fatos marcantes dessa companhia foi o seu pioneirismo no que seria o princípio da lógica capitalista do mercado de ações (antes mesmo da Revolução Industrial): os custos e os riscos das viagens na busca pelas mercadorias no Oriente eram previamente repartidos entre os interessados em investir de forma que, no retorno, o lucro era dividido. Em caso de falha da missão, o prejuízo era também divido e, portanto, menor para cada investidor. Em contraste, a Companhia Britânica, em suas primeiras décadas, pertencia a aristocratas ingleses e à Coroa.

No começo do século XVII, a Companhia Holandesa das Índias Orientais buscou tomar as possessões portuguesas no oceano Índico, onde estavam as rentáveis fontes das especiarias. Além de atuar no Oriente, os holandeses se voltaram também para o Ocidente: em 1623, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais é fundada para atuar no oceano Atlântico e, já em 1624 e 1625, invade colônias portuguesas no nordeste brasileiro e na costa atlântica da África.

Os portugueses, embora até tenham conseguido recuperar territórios importantes no Brasil e Angola, perderam definitivamente para os holandeses várias das suas colônias na costa africana e as possessões mais lucrativas do Oriente, como a ilha de Ceilão (atual Sri Lanka) e as ilhas nas atuais Malásia e Indonésia (inclusive as Ilhas Molucas), que eram as principais fontes de especiarias na época. Dentre suas possessões no Oriente, Portugal conseguiu permanecer apenas com Timor Leste na Indonésia, Goa na Índia e Macau na China.

Em verde, estão indicadas as possessões portuguesas até 1595, antes dos conflitos com a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos (atual Holanda). As áreas hachuradas indicam os territórios disputados. (fonte)

 

A chamada “Batalha de Nuremberg”, em que as seleções de futebol de Portugal e Holanda se enfrentaram pelas oitavas-de-final da Copa do Mundo de 2006 na Alemanha, sendo distribuídos 16 cartões amarelos e 4 vermelhos, não foi nada comparada às disputas entre portugueses e holandeses no século XVII. (fonte)

As especiarias tiveram uma longa história: durante a Idade Média, suas utilizações como itens de luxo e medicinais geraram alta demanda na Europa Ocidental, tornando-as um negócio lucrativo, o que incentivou a busca por novos caminhos para se chegar a seus locais de origem no Oriente. Essa busca resultou em conflitos e colonizações que moldaram algumas das fronteiras no formato em que as conhecemos hoje nas Américas, na África, no Oriente Médio e no Sudeste Asiático. De certa forma, podemos refletir sobre como as especiarias influenciaram até nas fronteiras atuais da Europa. Sem o comércio de especiarias, o Estado holandês conseguiria se manter soberano após a sua independência? E como se daria a unificação italiana no século XIX se a República de Veneza não tivesse perdido o monopólio do comércio com o Oriente? E qual o tamanho que o império português atingiria se não tivesse perdido suas colônias orientais mais importantes? Questões contrafactuais como essas nos ajudam a pensar como o mundo seria diferente se a Europa Ocidental dos séculos XV a XVII não tivesse dado tanta importância para as especiarias.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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