Em nosso país, há muitos atores envolvidos na cadeia de alimentos e serviços alimentícios. Alguns atores naturalmente promovem segurança alimentar, enquanto outros destoam desse paradigma por diversos motivos. Mas talvez nenhum seja tão atual e problemático quanto aquele que é o tema do texto de hoje.

A Dark Kitchen (cozinha sombria ou restaurante fantasma, em tradução livre) se tornou um tema da moda para muitos influenciadores do meio de food service. Alguns criticam pelos seus impactos na legislação, outros salientam a flexibilidade e a “inovação” como seus principais aspectos.

No texto de hoje, pretendo iniciar uma discussão sobre as dark kitchen em nosso país. Afinal, o que é esse modelo de negócios? Qual seu impacto na saúde e no setor alimentício? Vamos falar sobre isso agora.

Esse modelo de negócios é totalmente voltado para a lógica digital, não tendo nenhum atendimento ao público [1]. Mesas, cadeiras e cardápios são dispensados nessas empresas, bem como a  fachada do estabelecimento. No lugar, entram os aplicativos de logística delivery para levar refeição pronta ao consumidor.

Estas empresas tiveram um desenvolvimento acentuado durante a crise sanitária de Covid-19, da qual muitas companhias do setor alimentício tiveram que fechar as portas para frear o avanço dos vírus e precisaram se reinventar no meio digital [2]. A informalidade trabalhista também aumentou severamente naquela época, acentuando processos de geração de renda extra com comida, doces e petiscos.

Conjuntamente a esses fatores, durante a pandemia também houve uma certa sensação de “controle da qualidade” maior por parte desses estabelecimentos por estarem sempre disponibilizando fotos, revisões e avaliações, gerando (apesar de falsamente) uma maior sensação de segurança aos processos higiênico-sanitários e aos alimentos [1].  Com outras facilidades exclusivas de aplicativos (cashbacks, promoções, cupons, programas de lealdade, etc.), muitas pessoas se apegaram ainda mais a essa ferramenta como meio de promover refeições em casa.

Desta forma, houve um boom de estabelecimentos voltados apenas ao atendimento online. Podemos pensar que 2020 foi o ano inaugural da era dos estabelecimentos de e-commerce como um todo. É nesse contexto que surgiu o negócio conhecido como dark kitchen, ou restaurante-fantasma.

 

Imagem um. Notícia do Portal Migalhas informa sobre extinção de processo contra dark kitchen no Ministério Público [3]. Estes estabelecimentos, que prezam pela eficiência, podem não se achegar a certas normas de emissão de resíduos dos restaurantes normais. Na imagem, observamos uma mão de cozinheiro mexendo uma panela com vegetais. O mesmo está utilizando uma colher de madeira e usando avental da cor preta.

Para o consumidor, o modelo de negócios pode apresentar certos ganhos à primeira vista. É muito conveniente fazer o pedido em casa, levando em consideração que alguns custos de restaurante deixarão de existir, como tempo improdutivo ou limpeza do salão [4]. Com isso, a concentração de recursos fica totalmente voltada à produção.

Levando em consideração a flexibilidade desses locais, é possível que mais empresas operem no mesmo espaço, ou o mesmo restaurante-fantasma atenda mais de um serviço alimentício [4]. Muitas, inclusive, operam hoje no modelo de hub logístico, concentrando muitas cozinhas/empresas em espaços mais densos. Operando em espaços conjuntos, muitas atividades podem ser otimizadas, ajudando todas as empresas envolvidas.

Isso faz com que ocorra maior economia de escala e poder de barganha com os fornecedores. Assim, evitam-se muitos riscos oriundo do aumento de preços de suprimentos, do aluguel de espaços e do transporte delivery. Para o consumidor, tudo isso é muito importante pelo barateamento.

Aqui no portal, já temos um texto falando justamente sobre parcerias estratégicas no ramo alimentício, em especial da importância de “coopetir” nesse ramo. Leia mais sobre essa estratégia aqui

Contudo, nem tudo são flores nesse modelo de negócios. Muitos problemas podem ser elencados, tanto ao público quanto aos trabalhadores desse sistema. Muito disso se dá devido à “camuflagem” que essas cozinhas possuem nos ambientes urbanos [1]. Como não possuem fachadas, é provável que estes estabelecimentos passem despercebidos pelas autoridades de saúde.

Sem a atuação de agentes sanitários, é comum que situações de risco à saúde se amplifiquem [5]. Nesse contexto, a cidade passa a ficar subnotificada com relação ao surto de doenças transmitidas por alimentos (DTA’s). Lembrando que a maior parte dessas doenças ocorrem devido ao acúmulo de erros em manipulação de alimentos [1]. E também podem ocorrer problemas com o fornecimento, uma vez que a procedência dos ingredientes e insumos também pode passar invisibilizada pelas autoridades de saúde ou agropecuárias.

Por ter grande ênfase no processo produtivo e pouca fiscalização, situações de riscos sanitários podem se acumular com mais facilidade do que em restaurantes convencionais. E os sinistros também podem ocorrer contra os trabalhadores nesse sistema.

 

Imagem dois. Reportagem especial do Portal O Joio e o Trigo reitera que dark kitchens são mais de um terço dos restaurantes de São Paulo [6]. Segundo a notícia, hubs de cozinha fantasma impedem o acesso de visitantes, que são parte importante para denúncias sanitárias. Dessa forma, ocorre a subnotificação de riscos e diminui o poder fiscalizatório dos municípios. Na imagem, podemos ver uma garagem, com presença de diversos motoristas e ciclistas de aplicativo.

Para o trabalhador, também há o acúmulo de situações de risco nesses ambientes. Sem a garantia da segurança do trabalho por órgãos fiscais, é provável que acidentes, surtos e tragédias possam ocorrer com mais facilidade contra a integridade física e moral dos colaboradores. E mesmo acontecendo, é ainda possível que o seguro contra acidentes não seja coberto pelos gestores dessas unidades. 

Basta lembrarmos que plataformas digitais tendem a convergir o trabalho à lógica da pejotização das relações produtivas. Os aplicativos se aproveitam de brechas regulamentares para indicar que os colaboradores são contratados terceirizados da plataforma, uma vez que não possuem escalas de trabalho fixas. Isso significa que trabalhadores, que antes eram regidos por leis trabalhistas, agora podem ser “livres” para decidir pormenores da sua escala de trabalho e atuação. Sobre a lógica de contrato de cozinheiros, auxiliares e motoristas, o processo de precarização da força de trabalho se intensifica. Menos gastos com segurança e saúde dos funcionários são realizados pela empresa, uma vez que se tornam custos variáveis do próprio trabalhador.

Quando essas relações são regidas por aplicativos, esse poder de controle sobre o próprio trabalho se dissolve por completo. As plataformas monopolizam os termos de contrato contra os trabalhadores, intensificando o fenômeno conhecido como uberização [7]. Com este estigma, os trabalhadores não são reconhecidos pelo próprio trabalho. E muito menos pelo esforço desprendido.

No setor de entregas delivery, este fenômeno é melhor observado. Motoristas e ciclistas de aplicativo se enfileiram em pequenos espaços esperando pelo chamado da plataforma. Jornadas de trabalho que ultrapassam 18h são comuns, intensificando situações de riscos de acidentes.

Com a lógica de trabalho de dark kitchens, fenômenos como a quarteirização de serviços ficam cada vez mais evidentes. Desta forma, trabalhadores viram  provedores de serviço para uma empresa que, por sua vez, torna-se mais um elo de uma longa lista de terceirizados no ordenamento da cadeia trabalhista. Assim, o trabalhador torna-se alienado de seu trabalho, perde seus direitos com mais facilidade e, para compensar,  acumula riscos de acidentes, crimes, assédio, etc.

Sendo ambientes invisibilizados, é comum que externalidades negativas também sejam passadas à vizinhança [7]. Em São Paulo, apesar da regulamentação, problemas como barulho, fuligem e cheiro de gordura alcançam os moradores durante todo o dia em algumas localidades. O risco de doenças respiratórias se torna uma possibilidade tão real quanto palpável, e nenhuma empresa desse modelo parece reconhecer essa possibilidade.

Este fenômeno ocorre pois as cozinhas-fantasma se estabelecem em locais sem seguir o ordenamento urbano ou o Plano Diretor Municipal (PDM) das respectivas cidades. Afinal, elas podem não passar pelo órgão de aprovação dos municípios em que se firmam.

Assim, é possível que grandes hub fantasmas, que operam com 10 cozinhas ou mais, se fixem em ambientes residenciais. A poluição (sonora, visual, atmosférica e hídrica) se torna mais um fator que degrada a qualidade de vida nas cidades.

Ao final de tudo, o modelo de negócios se torna benéfico apenas para um pequeno grupo de interesse: as plataformas de tecnologia voltadas para alimentação. As dark kitchens inauguram uma nova mentalidade de negócios que se voltam ao algoritmo da internet, deixando a experiência humana aquém de sua possibilidade.

Apesar de ser um assunto espinhoso, é um tema emergente no cenário alimentício e que precisa de mais análise, inclusive por parte do legislativo. Cabe ao ser humano entender um pouco mais sobre as escolhas que ele faz antes de colocar uma refeição à mesa.


ATUALIZAÇÃO: No momento em que espero a publicação deste texto, sou surpreendido com uma notícia preocupante. Um restaurante de Itajaí, em Santa Catarina, foi interditado pela Vigilância Sanitária local por supostamente empregar carne de pombos como se fosse de frango [8]. O mesmo operava no regime de dark kitchen. Essa notícia nos alerta sobre situações ainda mais problemáticos do que aquelas imaginadas neste texto. Precisamos estar atentos para um novo cenário de riscos e potencialidades epidemiológicas.

No caso em questão, a denúncia parece ter partido de populares e vizinhos ao local. Não foi informado se trabalhadores também denunciaram a empresa.  O estabelecimento não mantinha licenças para funcionamento, segundo reportagem. A participação da sociedade civil, mais do que nunca, será importante para mantermos algumas regras básicas no cenário alimentício. Esse papel também é nosso!

 

Referências
[1]: LIBERA, Victor Methner Dela. Percepção do consumidor e sua intenção de pagar frente às Dark Kitchens. Critical Reviews in Food Science and Nutrition, v. 62, n. 20, p. 5569-5581, 2022.
[2]: BOTELHO, Laís Vargas; CARDOSO, Letícia de Oliveira; CANELLA, Daniela Silva. COVID-19 e ambiente alimentar digital no Brasil: reflexões sobre a influência da pandemia no uso de aplicativos de delivery de comida. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, p. e00148020, 2020.
[3]: REDAÇÃO. Juíza extingue ação contra “dark kitchen” que tinha prazo de adequação. Portal Migalhas Quentes, 14 jun. 2024. Disponível aqui.
[4]: QUARESMA, João Breno Sanches; VERA, Luciana Alves Rodas. Dark Kitchens: uma análise sobre o modelo de negócios a partir do Business Model Canvas. Caderno de Administração, v. 31, n. 1, p. 61-90, 2023.
[5]: PATRÍCIO, Vivian Costa et al. Doenças alimentares: relação vigilância sanitária–epidemiologia. Cadernos ESP, v. 13, n. 2, p. 94-108, 2019.
[6]: MELITO, Leandro. Dark kitchens já são mais de um terço dos restaurantes de iFood em São Paulo. Portal O Joio e o Trigo, 23 mai. 2023. Disponível aqui.
[7]: MELITO, Leandro. Lei regulamentou dark kitchens em São Paulo, mas, para moradores, pouco mudou: barulho, fuligem e cheiro de fritura 24h. Portal O Joio e o Trigo, 25 mai. 2024. Disponível aqui.
[8]: BORGES, Caroline. Vigilância Sanitária apura se restaurante interditado usava pombos como alimento. Portal G1, 18 jul. 2024. Disponível aqui.