Caríssimos leitores, esse texto é um pouco complexo e tangencia de certa forma um pouco do limite do que podemos afirmar com algum grau certeza, além de ser um convite a refletirmos não apenas sobre inteligência artificial, mas sim sobre nossa própria condição de ser humano.

Vamos fazer uma discussão sobre um dos principais paradoxos que são comumente discutidos dentro da inteligência artificial: o paradoxo do navio de Teseu.

Vamos começar então explicando o que é o paradoxo do navio de Teseu e qual seu paralelo com a Inteligência artificial:

A história que inspira o paradoxo diz que o navio que Teseu fez sua viagem foi preservado por eras pelo atenienses porque eles trocavam as partes velhas e as substituíam pelas partes novas, então, quando podemos estabelecer que o navio de Teseu não existia mais ? (quase uma discussão sobre carros antigos originais ou não).

O paradoxo pode ser formalizado de forma tão simples quanto :

  • R=Navio que Teseu iniciou a viagem
  • S=Navio que Teseu concluiu a viagem.

Se Teseu trocava partes do navio, podemos inferir que R=S ?

Trazendo essa pílula filosófica ao mundo dos colecionadores de fuscas à inteligência artificial, temos o seguinte paradoxo que foi formulado em meados de 1970 por Clark Glymor e estudado e publicado por Hans Moravec (1980).

Suponha que a neurofisiologia compreendeu totalmente as funcionalidades do seu cérebro e conheça todos os comportamentos de entrada, saída e conectividade de todos os neurônios.

Agora, suponha que existem chips eletrônicos que substituam individualmente neurônios, suas funções e interfaces.

Por fim suponha que exista uma técnica cirúrgica que possa substituir individualmente seus neurônios por esses microchips sem danos à pessoa.

O paradoxo se resume em saber se o indivíduo permanecerá com sua experiência externa e interna inalterada, apesar da dificuldade de apurar se a consciência do indivíduo continua intocada, uma vez que, pelas premissas, o comportamento externo do indivíduo não deveria ter alterações.

Os pesquisadores defendem diferentes pontos de vista. Searle, por exemplo, acredita que o indivíduo perceberia uma perda de controle de seu comportamento externo, enquanto Moravec acreditava que a consciência permaneceria inalterada.

Mais que demonstrar uma possível perda de sua consciência, a questão subsequente é: quando submetido a um estímulo qualquer, o indivíduo seria consciente ou o quanto a resposta aparentemente consciente não seria uma emulação do cérebro eletrônico?

Em resumo, existem duas grandes hipóteses que podemos elencar sobre o paradoxo:

  • Os mecanismos causais responsáveis pela consciência ainda estão operando nos cérebros eletrônicos.
  • Os eventos conscientes que ocorrem no cérebro normal não têm uma conexão causal com o comportamento e foram omitidos do cérebro eletrônico, que não é consciente.

Agora considerem que o neurônios eletrônicos foram substituídos novamente por neurônios biológicos. Nesse caso, o Indivíduo teria consciência dos fatos ocorridos enquanto tinha seu cérebro eletrônico ?

Ufa…. devidamente introduzidos ao paradoxo? Então vamos passar rapidamente por alguns conceitos:

O papel epifenomenal da consciência.

A consciência é o que os filósofos chamam de um epifenômeno, algo que ocorre mas não pode ser aferido no mundo observável, por esse motivo é tão difícil falar de um teste para medir a consciência de terceiros. Podemos apenas inferir que, mediante a algumas similaridades de comportamento e percepção do mundo, essa pessoa apresente o mesmo nível de consciência que você, e, por dedução, assumimos que todos os seres humanos são conscientes.

Consciência não é “apenas a  mente”

Talvez os psicólogos queiram me perseguir com tochas nessa parte do texto e eu já peço desculpas de forma antecipada e deixo o disclaimer: O assunto é complexo, eu não tenho formação para percorrer toda complexidade teórica dele e nem pretendo. Por isso fica o convite que vocês interajam nesse texto e, por favor, indiquem leituras e até produzam um artigo sobre esse assunto dada sua densidade, mas não posso me furtar a citar de forma resumida apenas para contextualizar nossa conclusão.

A consciência não é um processo isolado que tem origem no cérebro. Sabemos que a consciência é um processo complexo formado durante todo nosso processo evolutivo e que nosso corpo e interações com o ambiente têm papel na construção e emersão de uma consciência.

Podem máquinas ser conscientes?

Ciência, quando tenta tocar as áreas limítrofes, é…como poderíamos dizer…. previsível….

A resposta é: não temos como inferir.

Mas há sim um caminho que eu tento delinear nesse texto

A consciência é um fenômeno não muito bem compreendido ainda, porém acredito que seja possível afirmar, com algum grau de segurança, que o que conhecemos como consciência não pode ser relacionado apenas ao processo de “pensar”, mas sim às capacidades do indivíduo e às interações com o ambiente que ele habita.

Seria muito improvável nesse contexto uma máquina desenvolver uma consciência minimamente parecida com a nossa, porém isso não significa que ela não poderia desenvolver uma consciência. E, caso isso ocorresse, é quase certo que teríamos dificuldades em perceber uma consciência com essas características.

Se você, em algum momento da sua vida, se preocupou com robôs caminhando na rua e escravizando humanos, ou em um supercomputador que decidiu que “sem humanos é melhor”, você muito provavelmente pode ficar decepcionado (ou aliviado), porque provavelmente esse não será o futuro da “singularidade”.

Mas não significa que a Inteligência artificial não vai mudar o mercado e a sociedade. Eu tenho uma série de textos introdutórios que eu falo um pouco sobre isso e você pode acompanhar a parte 1 aqui e a parte 2 aqui

Mas…peraí,  e quanto ao paradoxo ?

Não vou ficar em cima do muro (apesar de querer muito ficar nesse assunto, rs).

Se partirmos do princípio que a consciência não depende apenas da mente e sim da complexidade de todo organismo bem como de suas interações com o ambiente para florescer, eu tendo a ser um partidário de Moravec, acreditando que a substituição dos neurônios reais pelos neurônios artificiais não causaria nenhum dano a consciência do indivíduo. Uma vez que eles iriam realizar as mesmas funções com a mesma capacidade, as características do indivíduo permaneceriam iguais e não haveria mudança na sua forma de interagir e interpretar o mundo.

Espero que o texto traga uma visão mais ampla (apesar de talvez menos romântica ou ficcional) sobre a IA e o advento da Singularidade.

E não se esqueçam, organismo conscientes lavam as mãos e usam máscara.

Stay safe !