A Guerra Civil norte-americana (1861 – 1865) é tradicionalmente vista como um conflito travado entre a porção abolicionista do país, localizada ao norte da nação, contra a parcela escravocrata formada pelos estados sulistas. O problema dessa visão reducionista e amplamente difundida é que ela contribuiu para que se forjasse uma interpretação de que o racismo nos EUA é algo que pode ser geograficamente localizado.
No entanto, os recentes eventos de racismo ocorridos em território estadunidense envolvendo o abuso policial contra afro-americanos, como o assassinato de George Floyd em Minnesota, o assassinato do ciclista Dijon Kizzee na Califórnia e os disparos dados à queima-roupa contra Jacob Blake no Wisconsin, demonstram que essa visão está longe de ser verdadeira. Vale ressaltar que todos esses estados se configuram como territórios que sequer possuíram a escravidão entre seus “regimes de trabalho” ao longo de toda história.
Para entendermos esse problema, então, é preciso que analisemos primeiramente alguns aspectos da Guerra Civil que comumente nos escapam. Conforme bem apresentou o historiador Victor Izecksohn em seu artigo intitulado Escravidão, federalismo e democracia, a Guerra Civil foi o ponto auge de um processo de disputa pelo controle do Estado por parte de forças políticas do norte e do sul dos Estados Unidos, que remontariam, ainda, ao período de elaboração da Constituição, em 1787.
Desde então, mas sobretudo a partir de 1819, com a assinatura do Compromisso do Missouri, a escravidão se converteu em pauta central no Congresso Americano, opondo políticos das duas regiões em embates cada vez mais calorosos. Naquele momento, o Norte caminhava para se constituir enquanto uma potência econômica, fazendo com que a estratégia do Sul – para estabelecer um equilibro de forças – se desse por meio da dominação das instituições políticas, valendo-se de uma estratégia bastante peculiar. Explicando: o uso constante da ameaça de separação caso a escravidão fosse colocada em xeque, permitiu ao sul atingir tal protagonismo nas discussões políticas de então.
Contudo, pouco a pouco, tal expediente passou a encontrar maior resistência entre os políticos nortistas, que começaram a denunciar a existência de um poderoso esquema de controle do Estado (slave power) por parte dos sulistas, fato que colocava em risco a manutenção do pacto federativo, responsável pela autonomia das leis estaduais em relação às leis federais, desde a fundação da Nação.
Essa percepção ficaria ainda mais evidente quando da assinatura do Compromisso de 1850, que, ao deliberar sobre a entrada de novos estados livres à União, o que favoreceria o Norte na composição do Senado, estabeleceu a implementação mais severa da lei do escravo fugitivo, como forma de compensar o Sul. Segundo essa lei, todo escravo que escapasse dos domínios de seu senhor e buscasse abrigo em territórios livres ao norte do país deveria ser devolvido ao seu lugar de origem por meio do emprego de forças federais. Para os políticos do norte, isso representou uma intromissão do Poder Executivo em assuntos estaduais.
Em resposta a isso, alguns partidos políticos foram fundados e, posteriormente, reunir-se-iam em torno do Partido Republicano que participaria de sua primeira eleição em 1854, quando seria derrotado. No entanto, quatro anos mais tarde, liderados por Abraham Lincoln, os republicanos venceriam as eleições, carregados por um sentimento anti-sulista gestado ao longo daquela década.
Desta feita, em fevereiro de 1861, semanas antes da posse de Lincoln, o medo de que os republicanos agissem em revanche, colocando um termo à escravidão fez com que os estados da Carolina do Sul, Alabama, Mississippi, Geórgia, Flórida, Texas e Louisiana declarassem sua independência perante à União, como forma de proteger seus hábitos, direitos e tradições contra os possíveis abusos do poder federal. Entre as tradições a serem defendidas, a principal era a escravidão.
Os conflitos começariam meses depois e não nos interessam aqui para o andamento de nosso texto. Para nós, a primeira coisa que deve ficar evidente é que, ainda que a guerra tenha começado motivada pelo desejo do sul em manter a escravidão, não foi contra ela que o Norte se voltou. Ao Exército Federal caberia o desafio de manter a unidade territorial da nação diante da ameaça separatista.
A escravidão apenas se tornaria a justificativa “oficial” da guerra no final de 1862, quando Lincoln não apenas declarou o fim do sistema de exploração nos estados do sul, como também promoveu a formação de batalhões de guerra que seriam compostos exclusivamente por afro-americanos. A incorporação desse elemento foi fundamental para a narrativa da guerra e deu a Lincoln vantagem no campo político por conta de três motivos.
Primeiro, pois, ao alçar a escravidão como causa central da guerra, ele atribuiu a ela um sentido moral e, com isso, afastou qualquer possibilidade de que o Sul pudesse conseguir o apoio formal e logístico junto à Inglaterra, como sonhavam os confederados. Afinal, não faria sentido que os ingleses, principais promotores da abolição no século 19, se pusessem a lutar uma batalha em nome da escravidão.
Em segundo lugar, a temática da abolição era bastante popular no Norte e, naquele momento, após dois anos de longos embates e inúmeras derrotas, a guerra começava a se tornar indesejável perante a opinião pública dos territórios dominados pela União. Deste ponto de vista, a luta contra a escravidão deu sobrevida à legitimidade dela.
Por último, ao declarar a escravidão proibida no Sul, mesmo sem ter jurisdição sobre tais territórios que, naquele momento, já se encontravam separados, Lincoln incentivou que afro-americanos cruzassem as fronteiras, deixando os senhores do sul sem mão de obra para gerar seu sustento em meio à guerra e incentivando a adesão dos antigos escravos ao exército da União. Ao todo, foram 520 mil homens e mulheres que seguiram por esse caminho durante a guerra.
Porém, este era também um movimento perigoso, afinal, como escreveu Victor Izecksohn em outro artigo de nome O Recrutamento de Negros nas Tropas da União durante a Guerra Civil Americana, era possível que ao fazer isso, Lincoln perdesse o apoio de Oficiais que se recusariam a lutar ao lado de soldados negros em um mesmo campo de batalha e, por isso, a estratégia de se criar batalhões exclusivos foi necessária. Agora, essa é uma informação que nos exige reflexão. Por que um soldado se recusaria a lutar ao lado de um companheiro negro em uma guerra que visava acabar com a escravidão?
Primeiro é preciso que se diga que a guerra do século 19 é bastante diferente do que temos agora. Ainda que muitos defendam que o conceito de Guerra Total guarde suas raízes no bonapartismo, naquele momento, a guerra ainda possuía um sentido aristocrático. E segundo, pois, o abolicionismo norte-americano do século 19 não era essencialmente antirracista, principalmente entre os brancos. Mesmo aqueles que defendiam o fim da escravidão, acreditavam na diferença entre as raças e na inferioridade dos negros.
Exemplo claro disso foi o próprio Lincoln que, apesar de defender o fim da escravidão, também advogou em prol da superioridade branca. Outro exemplo que, para nós, olhando do futuro, nos faz contorcer a razão é o famoso livro Uncle Tom’s Cabin (A Cabana do Pai Tomás, em português) que tão bem foi analisado por Marcelle Braga em seu artigo intitulado Mulheres de papel.
A título de elucidação, o romance escrito por Harriet Beecher Stowe, em 1852, foi uma das grandes peças de divulgação do abolicionismo nos EUA, contribuindo significativamente para a difusão de uma visão humanizada do negro na América do Norte. No entanto, ao mesmo tempo em que cumpriu tal função, contraditoriamente, também foi responsável pela divulgação de uma interpretação racista dos afro-americanos, uma vez que defendia que eles aceitassem seu papel de coadjuvantes dentro do “mundo dos brancos”. Essa interpretação de um “negro cordial”, advogada pelo livro, é algo tão flagrante que, até os dias atuais, Uncle Tom é um dos xingamentos mais agressivos que se pode existir entre as pessoas pretas nos EUA.
Por isso, então, foi que o movimento de Lincoln teve certo grau de risco, pois aqueles soldados que lutavam a guerra contra a escravidão, em sua grande maioria, não viam os negros em condição de igualdade a eles. Ao fim e ao cabo, ainda que fosse uma sociedade onde o abolicionismo se converteu em uma causa popular ao longo do século 19, o Norte seguia sendo uma sociedade racista, marcada pela crença na diferença entre brancos e negros.
É claro que tais questões ganhariam novos elementos e que produziriam novos sentidos à essa relação, principalmente com o início das grandes migrações de pessoas negras do Sul para as zonas metropolitanas nortistas durante a primeira guerra. Também é evidente que, a vida no Norte possibilitou que homens e mulheres tivessem mais acesso a direitos e possibilidades de organizar de maneira mais democrática a luta por seus ideais, algo muito diferente do que se viu acontecer no sul até meados da década de 1960.
Porém, o ponto aqui é o de destacar que, mesmo nesses ambientes, a vida também foi marcada pelo racismo. Ainda que a segregação não fosse institucionalizada no Norte, como era no Sul daquele período, ele foi constantemente vivido e reafirmado no cotidiano e, até mesmo, por meio de políticas habitacionais promovidas pelos governos dos EUA entre as décadas de 1930 e 50, resultando na formação de subúrbios etnicamente muito bem desenhados, como bem demonstrou Richard Rothstein em seu livro The Color of Law.
Olhando para o passado com os olhos do presente, incorremos no erro de pensar que abolicionismo é um conceito que carrega obrigatoriamente um sentido antirracista como o entendemos hoje. Contudo, no caso do abolicionismo norte-americano do século 19 essa não é uma verdade e, deste ponto de vista é possível dizer que, se a escravidão foi um problema geograficamente localizado nos Estados Unidos, o racismo não o é.
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