Há cerca de 2 bilhões de anos a vida no planeta Terra cruzou um limiar: a simplicidade dos seres unicelulares deu espaço para uma complexa variedade de formas e funções, inerente dos organismos multicelulares. Essa transição só foi possível graças a uma característica essencial, garantida pelo processo evolutivo: a capacidade proliferativa. Uma vez que uma única célula seja capaz de produzir cópias de si mesma, seu arranjo forma os tecidos que, por sua vez, compõem o que chamamos de órgãos. Os órgãos funcionam de modo sincronizado – como uma sinfonia – garantindo o correto funcionamento do nosso corpo.Durante o desenvolvimento de um embrião e até o final da puberdade as células são capazes de se multiplicar com maior frequência. A taxa proliferativa deve diminuir após a completa formação do organismo e o mecanismo de multiplicação celular é altamente controlado por processos de morte celular programada. Imagine essa dinâmica como uma balança de pratos que deve se manter equilibrada: de um lado estão as células em proliferação, cuja quantidade deve ser proporcional às células perdidas, no outro prato da balança.
Os tecidos são compostos por um número determinado de células, nem mais nem menos que a quantidade necessária. Alguns tecidos, como o epitélio que reveste nosso corpo, precisam ser renovados a todo o instante, porém, se forem formadas mais células que o necessário, a balança vai pender para um lado e desequilibrar. Neste caso, o tecido desenvolve uma neoplasia (do grego “neo” – novo e “plasis” – crescimento).
Levando esses fatos em consideração, o que seria capaz de desequibrar esse processo minuciosamente controlado e culminar na formação de neoplasias? Toda essa bagunça começa a partir de uma única célula que acumula mutações genéticas ou epigenéticas em genes chamados de “genes sensíveis”: os oncogenes e os genes supressores tumorais.
Os oncogenes são responsáveis pelo estímulo da multiplicação celular — em condições fisiológicas, garantem a reposição celular, essencial durante o processo de cicatrização de um machucado, por exemplo.
Já os genes supressores tumorais estimulam a célula a cometer uma espécie de suicídio (morte celular por apoptose) quando já estão muito velhas ou mediante a presença de alguma alteração que modifique a sua função.
O acúmulo de mutações que seja capaz de superativar os oncogenes ou inativar os supressores tumorais gera células com vantagem proliferativa, com perfil altamente agressivo, capaz de desregular o equilíbrio tecidual e resultar em uma neoplasia. Quando a neoplasia se limita ao tecido de origem, é considerada benigna; caso invada tecidos vizinhos ou migre para órgãos à distância, caracteriza uma neoplasia maligna, ou o famigerado câncer.
Muito se fala sobre o temido câncer, mas o que poucas pessoas sabem é que “câncer” é, na verdade, o termo utilizado para definir mais de 100 doenças maligas, todas caracterizadas pela multiplicação celular aumentada e desordenada. O câncer pode afetar todos os tecidos do corpo e atingir qualquer organismo multicelular: desde humanos até águas-vivas! No que diz respeito à nossa espécie, o tipo mais prevalente, à nível global, é o câncer de pulmão, que também apresenta o maior índice de mortalidade, seguido do câncer de mama e de intestino grosso.
Predisposição genética e hereditariedade são os principais determinantes para o desenvolvimento de algumas neoplasias, como o melanoma. Outros subtipos estão majoritariamente relacionados a fatores externos ou ambientais, como o consumo excessivo de bebidas alcóolicas, tabagismo, sedentarismo, maus hábitos alimentares, contaminação por vírus, exposição à radiação ultravioleta e ionizante e substâncias químicas — todos estes agentes são capazes de danificar direta ou indiretamente o DNA e tornar a célula mais suscetível ao acúmulo de mutações.
Você já deve ter ouvido falar sobre a quimioterapia e talvez sobre outros tratamentos utilizados contra o câncer, como a radioterapia, que são efetivos em alguns quadros da doença. Porém, um fator que gera muita preocupação é que as terapias não são efetivas em todos os casos, especialmente em quadros avançados da doença — nessa situação, as células tumorais já se proliferaram ao ponto de se espalharem pelo corpo, o que é chamado de metástase. Portanto, o câncer, em grande parte dos casos, é uma doença que permanece sem cura, apesar de todo o esforço da comunidade científica para desvendar os mistérios moleculares por trás do desenvolvimento tumoral.
Pesquisadores da Universidade de Oslo, na Noruega, encaram que o câncer talvez nunca venha a ter cura e que o segredo para conviver com a doença é evitar seus estragos pelo maior tempo possível, em vez de focar em uma solução definitiva. Pessimistas? Talvez…
O que norteia essa ideia é a visão do câncer como uma doença evolutiva, em que a vantagem de sobrevivência de uma célula tumoral, garantida por aquelas mutações no genoma que falamos no início do texto, são passadas para suas células-filhas e para as gerações seguintes. Quanto maior a taxa de multiplicação de uma célula, maior a capacidade que ela tem de sofrer alterações com o decorrer do tempo.
Considerando que a expectativa de vida está aumentando em todo o mundo, você concorda que seres que vivem por mais tempo precisam que as células que compõem seus órgãos se dividam mais vezes quando comparamos com organismos que vivem menos, certo? É como se a gente comparasse com um carro: quanto mais velho é o automóvel, maior é a necessidade de manutenção. E aqui temos a explicação do porquê muitos estudiosos consideram que vivemos uma epidemia de câncer: nunca vivemos tanto.
De acordo com o oncologista Jarle Breivik, “encarar a doença como uma consequência da evolução, é aceitar que o câncer e o envelhecimento são os dois lados de uma mesma moeda”. Ainda de acordo com Breivik, essa visão evolutiva abre portas para o desenvolvimento de pesquisas que vão além da tentativa de encontrar novos tratamentos e possíveis curas, mas que considerem, principalmente, a melhora da qualidade de vida dos pacientes acometidos pela doença.
A visão do câncer como uma doença evolutiva traz diferentes perspectivas e amplia as possíveis abordagens terapêuticas. “Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças”: a frase atribuída ao velho Charles Darwin nunca fez tanto sentido para os estudiosos do câncer.
Referências:
Breivik, J. (2007). No solution to cancer: Have or genes evolved to turn against us? ScienceDaily. < sciencedaily.com/releases/2007/04/070416160429.htm>.
Vendramin, R. Litchfield, K. Swanton, C. (2021). Cancer evolution: Darwin and beyond. EMBO. v. 40(18):e108389. DOI: 10.15252/embj.2021108389.
Nedelcu, A.M. (2020). The evolution of multicellularity and cancer: views and paradigms. Biochem Soc Trans. v. 48(4):1505-1518. DOI: 10.1042/BST20190992.