Eu não vou mais mudar. Vivi tempo demais no socialismo.
Hoje ficou mais fácil viver, mas também mais repugnante. (pág. 373)
O próprio Stalin falava: não sou eu que decido, é bom Partido…
Ensinava para o filho: você acha que o Stalin sou eu. Não!
O Stalin é ele! E apontava para o próprio retrato na parede. (…)
A lógica era genial: a vítima é o carrasco, e no fim o carrasco
também é vítima. (…) A roda gira e não há culpados. (pág 364)
Em 1984, George Orwell conta uma história que se passa na Eurásia, uma nação totalitária que vigia e dita cada aspecto da vida privada e pública de seus cidadãos. Desobedecer é crime contra o povo, contra o Estado. Desobedecer é morrer ou ir para um campo de trabalhos forçados. Só sobrevive quem consegue eclipsar sua individualidade num nível em que até mesmo os pensamentos são apenas aqueles permitidos pelo Partido. Como essas condições afetam a sanidade de quem vive sob essas condições? Elas representam um papel para sobreviver ou se tornam o personagem que interpretavam, como numa espécie de síndrome de Estocolmo, ficando do lado de quem as mantêm cativas?
O livro 1984 foi inspirado na extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a primeira encarnação do socialismo marxista. Em O novo homem soviético, a jornalista Svetlana Aleksiévitch entrevista diversas pessoas, como trabalhadores da cidade e do campo, assim como ex-membros do Partido Comunista que viveram sob o regime.
O resultado não é uma crítica historiográfica ou econômica à URSS, mas os 50 tons de cinza que compõem as diferentes opiniões das pessoas que viveram lá. As considerações são tão variadas quanto as que teríamos ao perguntar a brasileiros de diferentes gerações o que acharam dos anos de ditadura militar por aqui. Ia ter gente cantando jingles e dizendo “ah, como era bom”, se referindo ao patriotismo, e também gente falando de torturas e repressão. Mas o caso soviético é bem mais interessante porque o que aconteceu lá durante os 70 anos de marxismo-leninismo tinha sido inédito até então, acabando por servir de modelo para todos os totalitarismos posteriores. Trata-se do primeiro caso de uma sociedade planejada de cima para baixo em todos os seus sentidos possíveis, do econômico ao político, da vida privada à vida pública. Foi a primeira tentativa de refundar a natureza humana e uma nova sociedade das cinzas da revolução, planejada diretamente das mentes de intelectuais.
O prelúdio da dissolução do império soviético
As entrevistas são feitas nos anos de dissolução do império soviético, do final dos anos 80 em diante. Foi a era da Perestroika, a ascensão de Gorbatchóv, o novo secretário-geral do Partido e do Estado soviético, prometendo um socialismo mais democrático, mais humano. Isso veio depois que o mundo soube oficialmente do que aconteceu durante os 70 anos de domínio bolchevique. Existem estimativas de que a União Soviética aniquilou 60 milhões de pessoas, incluindo não só mortes em campos de trabalhos forçados, mas também assassinatos políticos e especialmente fome (ver o caso Holodomor, que, apesar de parecer, não é um reino de Senhor dos Anéis). Isso é 10 vezes mais do que nazistas, os supremos inimigos do Ocidente, mataram. Pesquisando sobre o assunto enquanto lia o livro, soube que alguns fascistas italianos achavam o socialismo antidemocrático demais. Um fascista reclamando disso, vejam vocês.
Enfim, Gorbatchóv era aquele famoso político que chegou para “acabar com tudo isso que tá aí”. Ele não questionava o marxismo-leninismo, mas usava um discurso formatado pela novilíngua do Partido para expurgar Stálin e os neostalinistas — ao mesmo tempo passando um pano danado para Lênin (para mais detalhes, leia O Túmulo de Lênin, do jornalista David Remnick). Gorbatchóv não queria os custos de uma nova revolução, só queria reformar o status quo criado pela Revolução de Outubro, em 1917. Gorby era um homem do seu tempo e o marxismo-leninismo era seu credo. O principal objetivo era salvar o país da falência. Estamos falando de um lugar em que o Estado criava buracos para contratar gente para tapar. O mercado era inexistente. A indústria soviética era aquecida pela produção de tanques de guerra, como se a Segunda Guerra nunca tivesse terminado.
Nos anos 1970 eles produziam mais tanques de guerra do que os EUA. Segundo o chefe do Estado-Maior, S. Akhromiêiev, “O que vocês querem, que mandem parar o trabalho para começar a produzir panelas?“. Na mentalidade soviética era preciso manter um clima de guerra e de constante vigilância contra os imperialistas malvadões. A economia, os discursos políticos, o poder monolítico do Partido e o cotidiano da população eram todos parte de um único organismo adaptado para manter a utopia socialista, protegendo-a da ameaça “burguesa”.
Uma psicologia de colméia
A paranoia e a vigilância surgiram em vários capítulos, na boca de vários entrevistados. As pessoas simplesmente se dividiam em dois tipos: aquelas que dissolviam sua personalidade nos moldes autorizados pelo Partido, e aquelas que fingiam bem e tinham seus escapes. Essas escapadas poderiam ser esconder “literatura subversiva”, como livros do tipo de Arquipélago Gulag, ou fofocar na cozinha. Esse era o cômodo onde se socializava nas moradias coletivas. Ali podia-se falar da vida privada ou de política ligando a torneira para dificultar a escuta da KGB.
O problema era que a KGB não era o único risco. Numa sociedade como a soviética, não existe separação entre Estado, Partido e Povo. Sendo assim, a conversa na cozinha poderia ser delatada por um vizinho ou por um dos fofoqueiros dividindo a moradia. A vigilância estava diluída na própria vida civil. Todos viravam apenas abelhas operárias trabalhando em prol da rainha. Qualquer vestígio de individualidade era ceifado.
A entrevista de Ielena Iúrievna, terceira secretária do comitê distrital do Partido, nos dá a chance de conhecer uma dessas abelhas. Ela era uma neostalinista revoltada com a abertura de Gorbatchóv, com a difamação de Lênin e Stálin. Para ela, as atrocidades do regime eram necessárias para preservar a utopia dos seus inimigos. Eram necessárias mãos de ferro como as de Stálin. Ela diz que, apesar da miséria e da fome, pelo menos não se vendiam por “verdinhas” (dólares), como quem diz “eu era pobre mas era limpinha”.
A negação do mercado era um outro aspecto da psicologia soviética. Eles não apenas não entendiam o mercado, eles o odiavam.
A questão judaica na União Soviética
Chegamos a mais um ponto controverso da psicologia do Homo sovieticus, o antissemitismo. Essa associação é estranha porque aprendemos a associar antissemitismo com nazismo apenas, mas a verdade é que nazistas só inovaram ao dar uma conotação racial a isso (inclusive, os soviéticos chamavam suas políticas contra judeus de antissionismo, porque antissemitismo era associado demais aos nazistas). O czarismo já era antissemita (o czar mantinha um pedaço do território russo apenas para os judeus evitarem se misturar com russos), e o que era ruim conseguiu ficar pior com os Bolcheviques.
Bolcheviques odiavam burgueses, que eram já há muito tempo associados aos bancos, ao comércio e ao lucro. Isto é, na mentalidade não só bolchevique, mas europeia, judeus eram burgueses. O problema é que a Rússia não era exatamente um país capitalista, então os bolcheviques tiveram que recorrer a todo tipo de recurso da novilíngua do Partido para achar esses tais judeus burgueses. Os bolcheviques simplesmente ignoravam que Marx e Trotsky eram judeus.
Para piorar, a oposição “branca” também era antissemita. Eles acusavam os bolcheviques de serem judeus. Ou seja, na prática, os judeus eram acusados de liderarem conspirações comunistas e liberais. Eram odiados pelos dois grupos.
O resultado disso foi que, especialmente ao longo da União Soviética stalinista, houve vários pogroms. Judeus eram expropriados sem mais nem menos e enviados para campos de trabalhos forçados. A morte de Stálin não deu fim nisso. Na década de 80, o soviético médio ainda desprezava os judeus. Neostalinistas diziam “Rússia para os russos”, querendo excluir judeus da equação, afinal, segundo eles, “eslavos eram mais bonitos e inteligentes”.
A difusão de responsabilidade do coletivismo
Parte de O novo homem soviético se dedica aos carrascos. Se você está esperando grandes psicopatas vaidosos, está errado. É como a banalidade do mal descrita por Hannah Arendt diante do julgamento de Eichmann, o carrasco nazista. Atrocidades cometidas por homens normais, por burocratas, muitas vezes. Atrocidades mais fáceis de serem cometidas quando cada indivíduo enxerga apenas seu papel de engrenagem num sistema maior. A culpa é do sistema. É a diferença entre comer um filé de frango e torcer o pescoço de um galináceo grunhindo por piedade.
Mas nessa parte do livro a jornalista nos coloca cara-a-cara com o relato de um parente desses homens que colocaram “a mão na massa”. Abalado pela velhice, pela fragilidade e pela vodca, o homem abre o verbo e fala dos novos tempos de socialismo democrático sendo construído por Gorbatchóv. O idoso fez parte da polícia política e foi responsável por muitas execuções. Ele não tinha prazer em matar, mas considerava um serviço necessário para a construção do socialismo.
Seus votos são de que a União Soviética vá desmoronar sem medo. Para ele, as pessoas precisam do medo dos campos de trabalhos forçados, das prisões e das torturas para que o trabalho ande, para que os “inimigos do povo” não vençam. Esse tipo de “solução final” era tão institucionalizado que os carrascos ganhavam certificados pelos serviços prestados ao Partido de Lênin e Stálin.
Conclusão
Talvez todas as ditaduras, todas as formas de totalitarismo funcionem como formas de moldar a natureza humana. É esperado que isso aconteça em ambientes com diferentes gradientes de ausência de liberdade — ok, pode-se dizer que países muito liberais apenas forjam outro tipo de natureza humana, mas isso não significa que todas as formas de forjar novas naturezas humanas sejam moralmente equivalentes. Mas a URSS foi uma fábrica de humanos especial, dado seu extremismo, sua longevidade e sua extensão territorial.
Não resisti em mostrar uma passagem retirada de outro livro, História Concisa da Revolução Russa, que mostra bem a excepcionalidade desse experimento histórico. Eis o que diz Aleksei Gástiev, um metalúrgico transformado em poeta:
A psicologia do proletariado é extraordinariamente uniformizada pela mecanização, não somente dos movimentos, mas também do pensar cotidiano (…). Essa qualidade lhe confere um notável anonimato, tornando possível designar a entidade proletária em separado, como A, B, C, D, ou 325, 075 e etc (…). Isso significa que, para a psicologia proletária, de um extremo a outro do mundo, não há mais um milhão de cabeças, mas uma única cabeça global. No futuro, sem que se perceba, essa tendência tornará impossível o pensamento individual.
Os soviéticos não queriam só uma radical e planificada igualdade econômica. Eles queriam uma uniformização psicológica nunca antes vista. E essa uniformização formaria uma nova sociedade, radicalmente diferente das sociedades burguesas. Seria a Era do proletariado. Um dos exemplos mais bizarros que também constam em História Concisa da Revolução Russa, os russos queriam mudar até mesmo o que se considerava boa música. Em vez do padrão burguês, eles estimulariam o padrão proletário, em que orquestras eram tocadas utilizando sirenes, ferramentas e maquinário de fábrica.
O novo homem soviético oferece inúmeros relatos em primeira mão do que foi o experimento soviético e do que representou a sua derrocada final, no início dos anos 90. Algumas pessoas ficaram aliviadas, outras pessoas ficaram saudosistas. Muitas pessoas, talvez a maioria, não queriam exatamente o fim do socialismo. Elas queriam um socialismo humano, democrático, assim como Gorbatchóv. A Rússia de hoje é um reflexo dessa psicologia do Homo sovieticus, se mantendo como um curioso país, ainda estranho (e de certo modo fascinante) para os padrões ocidentais.