No dia 11/04 saiu um texto incrível do Lênin Machado sobre a alimentação como ato religioso no contexto das religiões de matriz africana presentes no Brasil. Ele menciona o sacrifício de animais em rituais religiosos e o embate na justiça para que essa prática fosse reconhecida como legal. E é sobre esse embate que eu quero falar um pouco nessa continuação não oficial do texto do Lênin.

Um pouco sobre o sacrifício de animais para fins religiosos

Eu não vou entrar tanto na prática do sacrifício, porque o Lênin abordou isso melhor do que eu teria condições de fazer, então leiam o texto dele para aprofundar. Contudo, tem alguns pontos que vale a pena eu trazer aqui.

Basicamente, alguns cultos africanos em sentido estrito têm a prática de sacrificar animais, que são sacralizados em nome de uma entidade. Diferente do que alguns opositores dessa prática afirmam, esse sacrifício é feito sem crueldade e a carne do animal geralmente é consumida ao final.

A lei gaúcha sobre o tema

É claro que existem muitas pessoas que são contra a prática por seguirem o pensamento vegano ou vegetariano, mas também há muito preconceito e falta de conhecimento dos críticos, que usam a crueldade e o desperdício de alimento (que não ocorrem) para disfarçar sua visão estigmatizada das religiões africanas.

Por esse motivo, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou em 2004 a Lei Estadual 2.131. Essa lei acrescenta uma exceção à proibição ao sacrifício de animais do Código Estadual e Proteção aos Animais.

O texto determina que:

Não se enquadra nessa vedação [ao sacrifício de animais] o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana.

Bom, óbvio que, se existe o preconceito com as religiões de matriz africana, essa lei foi questionada.

A judicialização da lei

Já em 2004, o Ministério Público (MP) gaucho propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), ou seja, uma ação para declarar a inconstitucionalidade da lei que permitia o sacrifício de animais em rituais das religiões de matriz africana.

Por ser uma lei estadual, essa ação foi julgada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (decisão completa aqui). Porém, posteriormente, o caso foi para o Supremo Tribunal Federal (decisão completa aqui). Vou tratar aqui dos argumentos no geral, sem especificar muito o que foi abordado em cada tribunal.

A argumentação do MP levantava argumentos formais, ou seja, vícios no processo legislativo, e materiais, vícios no conteúdo da lei.

No plano formal, sustenta-se que uma lei estadual não poderia contrariar a legislação federal que já coloca as exceções em que o “abate” de animais são permitidos. Quanto ao conteúdo material, houve apontamentos no sentido de que o sacrifício de animais configuraria a contravenção penal de maus tratos

Esses argumentos foram facilmente repelidos. Sacrifício não implica maus tratos, são coisas diferentes e que não precisam estar associadas. Em outras palavras, existe maus tratos sem o animal morrer assim como é possível matar um animal sem crueldade. Se não fosse assim, o sacrifício de animal para alimentação também seria proibido por essa lei.

Porém o argumento mais forte no conteúdo não foi o sacrifício do animal em si, mas sim o direito à igualdade. A grande discussão entre os juízes, era que não se podia conceder esse direito apenas às religiões de matrizes africanas.

Por isso, houve uma proposta de se usar a chamada declaração parcial de inconstitucionalidade com redução de texto, um nome difícil para dizer que o artigo da lei não é inconstitucional por inteiro, mas só um pedacinho, no caso, só a expressão “das religiões de matriz africana”.

A ideia é que o sacrifício de animais deveria ser permitido para todas as religiões que o utilizam, como o judaísmo e o islã, mas, apesar de ter lógica, também faz sentido a decisão que prevaleceu.

A decisão

Tanto o TJRS, em 2005, quanto o STF, em 2019 (é, essas coisas demoram), entenderam, por maioria, que é constitucional o artigo da lei gaúcha que assegura o direito ao sacrifício de animais para fins religiosos pelas religiões de matriz africana.

Liberdade de crença

A grande base para essa decisão é o direito fundamental à liberdade de crença, ou liberdade religiosa. Essa liberdade está prevista dentre os vários direitos individuais e coletivos do artigo 5º da Constituição:

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

É bem consolidado na literatura e nos tribunais que a liberdade de crença não se restringe ao direito de ter e professar uma religião, mas garante o direito de agir conforme o que essa determina. Um exemplo disso aparece dois incisos depois:

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

Esse inciso é mais conhecido pelas discussões sobre a recusa a prestar o serviço militar obrigatório e na guarda dos sábados de religiões, mas ele está dentro dessa ideia geral de não ser obrigado a agir contra suas crenças.

Nesse sentido, o sacrifício de animais, seja nas religiões de matriz africana, seja no judaísmo, no islamismo ou em qualquer outra religião que adote essa prática, é garantido pela liberdade religiosa.

É claro os direitos fundamentais têm seus limites e cabe à lei estabelecê-los. Nesse sentido, os dois tribunais destacaram que práticas em que o sacrifício seja feito com maus tratos são ilícitas. Por isso, o STF fez uma distinção desse caso com o da vaquejada, declarada inconstitucional em 2016, em que a crueldade contra os animais faz parte do próprio ritual cultural.

Outro limite que se pode colocar são as leis que estabelecem procedimentos para resguardar a saúde pública.

É necessário o consumo da carne após o sacrifício?

O relator original da ação no STF, o Ministro Marco Aurélio, votou para que o sacrifício de animais fosse permitido, mas apenas sob a condição de (1) não haver maus tratos e (2) que a carne fosse consumida posteriormente.

Essa segunda condição, porém, foi afastada pela maioria dos ministros. A decisão foi acertada. Como lembrou o Ministro Alexadre de Moraes, apesar de a maioria dos rituais aproveitar a carne para o consumo pelos praticantes, existem rituais em que a oferenda é feita somente ao Orixá.

Além disso, o Estado não pode determinar que a alimentação do corpo seja superior à do espírito, esse senso de prioridade deve vir da visão pessoal de cada um.

Aliás, no Brasil é permitido o abate de animais para fins fúteis como a fabricação de roupas e utensílios de couro ou pele de animais (com exceção em alguns estados). Então, porque seria exigido o consumo da carne para se poder satisfazer os preceitos espirituais assegurados na Constituição?

O problema da igualdade

Mas daí fica a dúvida, porque as cortes não declararam só o finalzinho do artigo inconstitucional, pra deixar claro que essa permissão vale para qualquer religião, e não só para as de matriz africana?

A própria constituição parece que iria por esse lado no artigo que fala da laicidade do Estado:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; […]

III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

A lógica desses dispositivos é que o Poder Público não pode beneficiar uma religião em detrimento de outras. Não seria isso que ele estaria fazendo ao colocar só as de matriz africana?

Igualdade material

Para os tribunais, por toda a construção constitucional, nem seria necessária a existência dessa lei, pois a prática do sacrifício de animais já é permitida e garantida por direito fundamental.

Entretanto, eles interpretaram que a razão de a lei destacar as religiões de matriz africana é conceder uma proteção maior para os que sofrem mais discriminação. É a ideia de tratar de os desiguais de forma desigual para corrigir essa desigualdade.

Apesar de não ser necessária a lei para existir o direito, o preconceito das pessoas, em especial as que têm alguma autoridade, é bem conhecido por tolher direitos das minorias. Então, a lei vem exatamente como um reforço para o exercício desse direito no dia a dia.

Conclusão

Essa história tem uma lição interessante para todos que não seguem religiões que fazem sacrifício de animais em rituais religiosos, que é a da alteridade.

Eu mesmo sou agnóstico e não sigo qualquer religião. Na minha opinião pessoal, não há qualquer sentido em sacrificar animais em rituais religiosos. Da mesma forma, para mim, não fazem sentido outros rituais de outras religiões, como o consumo da hóstia no catolicismo.

Entretanto, o fato de não fazer sentido para mim não significa que eu não tenha que respeitar. Provavelmente existem muitas coisas que eu faço que outras pessoas vão achar que não fazem sentido. E é esse o papel dos direitos fundamentais e do Estado Democrático, o de proteger aquilo que cada pessoa considera precioso em um âmbito subjetivo, suas crenças filosóficas e religiosas.

Claro, existe um limite e esse limite aparece na decisão do TJRS e do STF, que é o que prejudique os direitos de terceiros ou o interesse coletivo. No mais, devem ser respeitados e garantidos os ritos religiosos.


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