Olá, leitoras e leitores, trago mais um texto da série de direitos humanos fundamentais, que começou com seu surgimento e continuou com as características da fase liberal. Acontece que esses direitos sofreram muitas mudanças ao longo do tempo. Eles começaram como direitos do indivíduo contra o Estado, que simplesmente precisava se abster de tomar certas decisões (olha lá no segundo texto). A partir de agora, vamos começar a ver como os direitos humanos fundamentais são muito mais complexos que isso. Nesse texto, vamos entender como passaram a cobrar uma postura ativa do Estado.
O modelo liberal dos direitos fundamentais era muito simples: existiam interesses dos indivíduos que o Estado não poderia ferir (se bem que uma lei poderia limitar). Esses se baseavam, principalmente, no tripé liberdade, igualdade e propriedade.
Na esfera pública, podemos destacar alguns efeitos disso. O Estado não podia prender ninguém (liberdade) sem que o que a pessoa fez estivesse definido como crime. Também não podia criar distinções entre as pessoas (igualdade), fazer leis que valessem para uns, mas não para outros (mas podia considerar as mulheres incapazes para atos da vida civil, vai entender…). Também não poderia cobrar tributos sem uma lei prévia ou confiscar bens (propriedade).
Na esfera privada, o Estado não podia intervir em praticamente nada. No direito de família, o famoso, e ultrapassado, “briga de marido e mulher não se mete a colher” (apesar de que, se você quisesse largar o marido, aí o Estado te impedia). Já nos contratos e na sua propriedade, aí realmente você pode fazer o que queria, era o âmbito máximo de atuação da vontade privada.
Isso funcionou bem (ainda que pra assegurar os interesses da burguesia) enquanto a sociedade era mais simples. Mas tivemos algumas “pequenas” mudanças no mundo.
A necessidade do social
A segunda fase dos direitos humanos fundamentais é a chamada de Estado Social de Direito. O que aconteceu pra chegar nele é que a sociedade, majoritariamente rural, foi se industrializando.
Com a industrialização se inicia um processo de aumento da população dos centros urbanos que muda a sociedade em vários níveis: econômico, político, social e, porque não, jurídico.
Não convém aprofundar em todas as mudanças porque nosso foco é entender como os direitos fundamentais começaram a mudar. Vou ilustrar um pouco o cenário com a seguinte situação:
O sujeito trabalhou no campo, mas ouviu notícia de que tinha emprego nas fábricas. Foi com a família pra cidade pra tentar melhorar de vida. Conseguiu uma casa e um emprego na fábrica, mas agora não tem mais uma terrinha pra plantar umas mandiocas pra sobrevivência, então depende totalmente do patrão.
O salário não é muito, mas ele não pode reclamar, pois têm muitas outras pessoas querendo seu emprego, a maioria delas aceitando até ganhar menos ou trabalhar mais.
Ele aceitou trabalhar uma jornada longa e cansativa. Seus filhos, ainda que pequenos, também arrumaram emprego pra ajudar no sustento da família, então dá pra ir tocando o barco. “Mas a vida, a vida é uma caixinha de surpresas”.
Um belo dia o seu (eu não dei nome pra ele, né… vai ser o José) Zé está trabalhando na fábrica e cai algo bem pesado em sua perna. O patrão, muito solidário, só tem uma saída… demissão.
O seu Zé não recolhia INSS (até porque isso não existia), então não vai ter seguro desemprego (que também não existia), só vai pra rua, sabendo que não tem muita chance de conseguir outro emprego.
Pode isso?
Pra entender a situação em que o seu Zé está, precisamos lembrar da visão que se tinha dos direitos fundamentais (e do direito como um todo).
Vigia a tríade: liberdade, igualdade e propriedade.
Considerando a propriedade, a fábrica é do patrão (que vai ser o Walter). Como dono, ele pode fazer ou deixar de fazer o que quiser com ela.
Em relação à liberdade, seu Zé é totalmente livre pra fechar o contrato com Walter, e até negociar seus termos.
Pensando a igualdade, o seu Zé é igual ao seu patrão. Se são iguais, a negociação do contrato de trabalho foi feita entre iguais.
Então, o seu Zé é igual ao patrão, mesmo esse não tendo que aceitar qualquer emprego pra sustentar uma família que está passando fome. Não importa que se o seu Zé não aceitar o contrato do jeito que lhe foi oferecido, tem outro pra aceitar no lugar. Também não interessa se a carga de trabalho é exaustiva e provavelmente vai levar ele a cometer erros e causar acidentes. Dane-se se ele não tem nenhum seguro caso se acidente trabalhando para gerar riquezas ao seu patrão.
O contrato foi feito entre pessoas livres e iguais, portanto é um contrato justo (isso realmente era dito, com outras palavra, pelo filósofo Alfred Fouillée). Se o contrato é justo, então não cabe ao Estado intervir. Aliás, pelo contrário, caso o Estado interfira nesse contrato, estará violando a liberdade das partes.
A 2ª fase do Estado de Direito
É importante que não tentem comparar essa relação de trabalho com as que conhecem hoje. Não só pelo próprio direito do trabalho, mas, principalmente, pelas diversas qualificações e competências (acadêmicas ou da prática) que se buscam nos empregados, atualmente o degrau existente entre empregado e empregador é muito menor.
Essa diferença entre as pessoas na realidade social, completamente ignorada pelo direito, que pregava o mito da igualdade, deu muito espaço para revoltas, greves e o espalhamento das temidas ideias socialistas (inserir barulho de um fantasma com o lençol vermelho).
O direito, então, precisou responder, nascendo, assim, o Estado Social de Direito, inaugurado, formalmente, pela Constituição alemã de Weimar, em 1919.
Os direitos fundamentais sociais
Com isso, surge uma nova categoria de direitos fundamentais, para além dos individuais: os direitos sociais.
Pra ter alguns exemplos de direitos sociais, dá uma olhada no artigo 6º da nossa Constituição:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Basicamente, são direitos que não podem ser atribuídos a apenas um indivíduo, mas são de toda uma categoria de sujeitos: as crianças e adolescentes, os idosos, os trabalhadores, as gestantes, as mulheres, os aposentados etc.
Basicamente, esses direitos buscam amparar as pessoas que estão em alguma situação de desigualdade social (na ponta de baixo) e que precisam de um empurrãozinho do direito pra conseguir, não se igualar, mas, pelo menos não ficar tão em desvantagem.
Repaginando os direitos individuais
Mas não para por aí. Os direitos individuais também são ressignificados. Obviamente, a ideia básica de que as pessoas são livres e o Estado não pode interferir nessa liberdade não deixa de existir, mas algumas mudanças são necessárias.
Liberdade positiva
Não basta que o Estado deixe as pessoas serem livres, é preciso que ele atue para garantir que essa liberdade chegue, de fato, para todas as pessoas.
Isso acontece em âmbitos mais restritos, como o contrato do seu Zé, mas também de forma mais geral.
Peguemos, por exemplo, a liberdade de expressão. Pensada na perspectiva negativa, basta que o Estado deixe que eu expresse minhas ideias e opiniões, sem interferir.
Contudo, existe um lado social da liberdade de expressão, pois vocês, vocês mesmos que estão lendo esse texto agora, também têm um direito a acessar o que eu estou expressando.
Seja pelo meu direito individual, seja pelo interesse da sociedade, cabe ao Estado atuar (positivamente, não só se abster) para que eu possa me expressar e para que vocês possam ter acesso ao que eu expresso (lógico que isso tem limites, mas fica pra outro texto). Por isso, o Estado tem o dever de proteger os meios de comunicação. Levando um pouco mais longe, tem, também, o dever de dar educação (olha os direitos sociais aí), para que eu, e todas as outras pessoas tenham mais substrato para expressar suas ideias e entender as ideias que os outros expressam.
Igualdade material
A igualdade de todos perante a lei (igualdade formal) ainda existe, mas, em algumas situações, é preciso que a lei trate alguns grupos de forma desigual, buscando suprir essa desigualdade.
Dentro disso que vem o direito do trabalho, impondo alguns limites ao que o empregador pode sujeitar o seu empregado. No mesmo sentido, pra citar outros exemplos, o direito da criança e do adolescente, o direito do consumidor, a proteção da mulher contra violência doméstica, dentre muitos outros.
Propriedade funcionalizada
Para fechar nossa tríade, aquela propriedade, antes absoluta, não pode mais atender apenas os interesses do proprietário. Não confundam com o fim da propriedade, pois essa ainda é individual e ainda atende aos interesses do dono, mas, agora, é necessário que esses interesses estejam de acordo com uma função social.
Bom, pra começar, o pacotão básico. Não pode usar a propriedade pra alojar trabalho escravo nem pra cultivar drogas ilegais, se não o titio Estado tira o brinquedo.
Mas, além disso, você não pode deixar um terreno só esperando ele valorizar sem dar uso a ele (a chamada especulação).
Se o seu terreno é na cidade, é necessário que você construa, dê uma destinação, seja residencial ou comercial. Não é pedir muito, é só fazer uma casa ou um escritório, seja pra uso pessoal ou pra alugar, não precisa nem fazer de bom coração, pode ser só pra ganhar dinheiro mesmo.
Se for no campo, a mesma coisa, planta alguma coisa nele (lembrando que droga não pode) ou arrenda, faz ele dar um dinheirinho extra e, de quebra, ajuda a economia… isso é dar função social.
Indo pros finalmentes
Essa que vimos aqui é a primeira grande mudança nos direitos humanos fundamentais. Algo singelo, que tira bem pouquinho daquela visão puramente liberal e individualista e traz algo de social. Deu pra perceber que não tem nada de comunismo, pois o foco ainda é o indivíduo. A pessoa não precisa deixar de pensar em si mesmo, só que agora precisa pensar um pouquinho na sociedade (que, convenhamos, ele também faz parte).
Além disso, o Estado, antes naquela posição confortável de “só preciso ficar na minha e não sair prendendo nem cobrando imposto como eu queria”, agora tem uma função mais específica, a de garantir um mínimo de bem-estar para a sociedade.
Ainda temos outras mudanças que vão fazendo os direitos humanos fundamentais chegarem onde estão hoje, mas essas veremos em textos futuros.
Referências
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. Paginação irregular.
STRECK, Lênio Luiz; MORAES, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.