A crise no sistema de representação política e a democratização do acesso às tecnologias da informação podem ter causado um descolamento do campo político com a política, como observou Pierre Rosanvallon e apresentado por nós na primeira parte de nosso texto. Além disso, tal quadro pode ter contribuído para o surgimento de novas demandas políticas que levam a uma necessária reconfiguração da própria noção de cidadania no ocidente. Tais questões podem estar no centro de uma explicação sobre o descontentamento das pessoas em relação aos rumos da humanidade quando, segundo diversos estudos, vivemos o melhor momento de nossa espécie sobre a Terra. Parece que os seres humanos recusam a aceitar um mundo melhor, como no filme The Matrix.

Porém, outra forma de compreendermos o descontentamento com a Matrix pode estar na maneira como enxergamos o mundo. Em um estudo de pesquisadores das universidades de Harvard, Virginia, Dartmouth e Nova York, foi possível identificar e avaliar um fenômeno responsável por uma distorção no nosso julgamento, com base na prevalência [2]. Eles iniciam o artigo resultado desse estudo apontando que, do mesmo modo que observamos deformações em materiais (creep, em inglês), cientistas de várias áreas têm observado nos últimos anos expansões não intencionais em escopo nos mais diversos contextos.

No cenário de desenvolvimento de software, o exemplo dado é o de feature creep, que é a expansão não intencional das funcionalidades do software ao longo do tempo. Militares, por outro lado, se preocupam com mission creep, que seria a expansão dos objetivos de uma campanha militar ao longo do tempo. E, seguindo essa linha, os cientistas chegaram no cerne do estudo que é a observação de que conceitos abstratos também podem se deformar. Em 1960, por exemplo, o dicionário Webster em inglês definia agression” (agressão) como an unprovoked attack or invasion” (ataque ou invasão não provocados), mas hoje esse conceito em alguns países foi expandido para incluir comportamentos como indagar alguém sobre seu país de origem.

Outros conceitos que tiveram seu escopo expandido são citados no estudo e, através de experimentos, eles identificaram uma das causas para essa expansão: a prevalência. Uma diminuição da prevalência de um fenômeno costuma provocar uma expansão de como vemos aquele fenômeno. Uma diminuição dos números de violência, por exemplo, eventualmente acaba causando uma expansão do conceito de violência, de forma inconsciente, o que gera uma impressão de que o mundo segue violento ou se tornou ainda mais violento! Os autores relatam a preocupação inclusive com relação a indivíduos responsáveis por estudar esses fenômenos e elaborar políticas públicas para combatê-los, que inconscientemente poderiam estar sendo vítimas desse fenômeno.

Um outro estudo analisou a sensação de insegurança entre jovens indianos, estratificando a análise por sexo, tipo de família e ordem de nascimento [3]. Garotas se sentiam mais inseguras que garotos; adolescentes de família nuclear (pais e irmãos) se sentiam mais inseguros que adolescentes de famílias maiores (incluindo avós, tios e seus filhos); primogênitos se sentiam mais inseguros do que o irmão/ã do meio, que por sua vez se sentia mais inseguro do que o irmão/ã caçula. A facilidade com que podemos comunicar ideias hoje contribui para que essas pessoas que se sentem mais vulneráveis, por exemplo, possam compartilhar seus pensamentos e alcançar esses outros indivíduos que pensavam ser exceções. Esse acúmulo de pessoas sentindo o mesmo estímulo muitas vezes cria um consenso de uma realidade subjetiva que acaba por sobrepor a realidade e, muitas vezes, por ser aceita como a representação precisa do real.

Em reportagem recente [4], criticou-se um cartaz no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, que dizia: “A cada 13 minutos morre um jovem negro no estado”. O diálogo com o reitor seguiu desse modo:

Reitor: – O número de morte está imenso no Rio de Janeiro
Deputado: – De bandido
Reitor: – Mas tem criança de oito anos que não pode ser bandido
Deputado: – Já fez a perícia?
Reitor: – Pra saber se ela é bandido?
Deputado: – Não, para saber se ela foi morta por policiais

Se a cada 13 minutos morresse um jovem negro no estado do Rio de Janeiro, nós teríamos cerca de 40.000 jovens negros mortos por ano no estado do Rio de Janeiro. Felizmente, isso está muito longe da realidade, uma vez que em 2017, um dos anos com as maiores taxas de mortes violentas da história recente do Rio de Janeiro, houve em torno de 7.000 mortes, incluindo pessoas das mais variadas características. Ainda que esses 7.000 mortos fossem jovens negros, não é sequer 20% do número do cartaz, de 40.000 [5]. A pessoa que escreveu isso, no entanto, não é a única que iria inicialmente concordar com esse número. É o tipo de ideia que, de um modo ou de outro, é repetida no dia-a-dia e acaba criando adeptos, que não fazem os cálculos para identificar que é impraticável que a informação seja real. Esse tipo de informação remonta às famosas fake news, que têm se disseminado em velocidade recorde graças a tecnologia e desestabilizado eleições e governos mundo a fora. Tudo isso acaba por contribuir com o mito de que o mundo está pior do que nunca, quando na verdade nunca esteve em período histórico mais próspero.

As tabelas compiladas pela organização Our World in Data e apresentadas a seguir deixam bastante evidente esse descompasso entre a percepção que as pessoas possuem sobre o mundo em relação aos números e informações que possuímos sobre ele. Quando questionados a respeito de um possível aumento no número de pessoas que viviam em condição de pobreza extrema no mundo, 52% dos entrevistados disseram que isso correspondia à realidade, quando, como vimos no início da primeira parte de nosso texto, esta é uma informação falsa.

O mesmo pode ser visto em relação aos dados sobre a mortalidade infantil. 61% das pessoas pensam que nos últimos vinte anos o número de mortes de crianças não se alterou ou, então, teriam se agravado, quando a informação científica aponta para a direção oposta.

Assim, enquanto os números afirmam que nos últimos anos houve um aumento dos rendimentos e da qualidade de vida de uma parcela cada vez maior de pessoas, intuitivamente a opinião das mesmas sobre isso segue na contramão dos fatos, como vemos na tabela abaixo. Interessante sobre ela é a opinião colhida entre os chineses.  41% deles acreditam que o mundo está melhor. De fato, nos três gráficos apresentados, os chineses possuem uma porcentagem de acerto acima da média em relação aos demais países pesquisados. De certa maneira, isso reforçaria nossa hipótese de que boa parte de nosso sentimento em torno dos descaminhos da humanidade estão relacionados à crise nos sistemas de representação e no modelo de nossa democracia, como observou Rosanvallon; da mesma forma como aponta para uma generalização deste fenômeno no mundo ocidental.

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Algo que nos intriga e que motivou a escrita deste texto é o fato de que, cada dia mais, torna-se um ponto pacífico entre as pessoas de que vivemos “tempos sombrios”, “o pior momento da história da humanidade” ou, então, que “as ficções escritas por George Orwell e outros autores de distopia haviam se tornado realidade”. Isto nos incomoda, uma vez que não corresponde à verdade, afinal, os seres humanos continuam produzindo diariamente feitos incríveis e não apenas aqueles voltados a suprir as necessidades do “grande capital”, pois, como sabemos, estudos sobre biodiversidade e sustentabilidade avançam, bem como outros experimentos que colocam em xeque a periculosidade de doenças como o câncer.

Evidentemente que isso não quer dizer que nossa sociedade é perfeita, ainda mais quando sabemos que estamos de fato diante de um grande desafio ambiental e que existem ainda 700 milhões de pessoas vivendo em condição de extrema pobreza. Não seria o caso de comemorar, também, a informação real de que a desigualdade no mundo aumentou no período correlato em que a pobreza caiu. No entanto, estamos muito longe de estarmos vivendo o tempo mais obscuro de nossa história.

Aliás, próprio fato do tema da desigualdade ter entrado com grande impacto e destaque na pauta de liberais e progressistas ao redor da mídia e da academia é um dado a ser explorado. Não que ele esteja errado, de fato, a desigualdade econômica e social é um dos grandes problemas que teremos de enfrentar nas próximas décadas. Porém, essa discussão nos demonstra o quanto o combate à pobreza e à fome no mundo foi relegado a um segundo plano. Assim, como no experimento da prevalência, por nós abordado anteriormente, o tema da desigualdade expande as discussões sobre a pobreza, tornando este problema algo tão nocivo quanto a fome e outros males, contribuindo mais e mais para que a percepção em torno de nossas mazelas supere a apreensão simples da realidade.

Por fim, em um mundo em que a palavra “narrativa” se tornou moda e que nos importamos mais com a maneira como os eventos impactam nossos sentimentos, preferimos trabalhar com a dimensão da realidade que nos convence, que dialogam com nossas frustrações ou que anulam nossas esperanças. Neste caso, trocamos a utopia pela distopia sem considerar que existe um deserto de realidade que as separa. No fundo, parece que o agente Smith estava correto em sua análise sobre a humanidade, não conseguimos aceitar uma realidade em que a tragédia não seja o grande mote de nossa existência.

Referências

[1] Texto escrito em coautoria com Marcos Sorrilha Pinheiro

[2] Prevalence-induced concept change in human judgment publicado na Science (2018) pelos autores David E. Levari, Daniel T. Gilbert, Timothy D. Wilson, Beau Sievers, David M. Amodio e Thalia Wheatley.

[3] A Study of Security-Insecurity Feelings among Adolescents in Relation to Sex, Family System and Ordinal Position publicado na International Journal of Educational Planning & Administration (2013) pelos autores Shruti Raina and Kiran Sumbali Bhan.

[4] Ver: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/blog/edimilson-avila/noticia/2019/10/11/deputados-tentam-fazer-vistoria-no-colegio-pedro-ii-e-provocam-confusao-com-reitoria.ghtml?fbclid=IwAR2ifWJHoj0thsczellmRs1J76zzi8JW4Td2CKA3KPBD1VYXhFufPBV-1xU

[5] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/01/18/rio-fecha-2017-com-maior-taxa-de-mortes-violentas-dos-ultimos-oito-anos.htm