Em 1953, o célebre autor de ficção científica Isaac Asimov escreveu o conto “O dedo do macaco”. Neste, um autor de ficção científica tenta convencer seu editor a não interferir com uma história e, para tanto, ele recorre à pesquisa de um cientista com uma invenção no mínimo inusitada. Asimov não teria como saber, mas, de certa forma, seu conto possui paralelos com a questão da literatura pelas inteligências artificiais nos dias de hoje.
O conto está disponível no livro Júpiter a Venda, em que Asimov reuniu alguns de seus escritos. Além dos contos, o livro também traz comentários do próprio autor, explicando algumas coisas. Não é uma das obras mais famosas de Asimov, mas rende leituras interessantes.
O dedo do macaco: resumo sem spoilers
Marmie Tallinn está em um embate com Lemuel Hoskins, o editor de uma revista de ficção científica para a qual Marmie escreve. Hoskins deseja que Marmie faça uma alteração em seu último conto; entretanto, Marmie está convencido de que a sua versão é melhor.
Para convencer Hoskins a aceitar o conto tal como Marmie o escreveu, o autor propõe uma experiência científica. Marmie conhece um professor da Universidade de Columbia, Dr. Torgesson, que desenvolveu uma forma científica de julgar a qualidade de uma obra literária. E qual é essa forma?
Um macaco com uma máquina de escrever.
O Dr. Torgesson explica que o pequeno macaco, chamado Rollo, foi submetido a uma cirurgia, e seu cérebro praticamente tornou-se um computador. Assim, Rollo passou a ser capaz de escolher as palavras para um texto literário, selecionando as que melhor se encaixam, levando em consideração o “espírito” do texto.
Desta maneira, Rollo é capaz de reproduzir quase integralmente trechos de Shakespeare, com mínimas mudanças naquilo que o Bardo escreveu.
– Oh, uma cópia… o seu pequeno Rollo não conheceu o seu Shakespeare. É “erguer armas contra um oceano de dificuldades”.
Torgesson admitiu:
– Muito certo, sr. Hoskins. Shakespeare efetivamente escreveu “oceano”. Mas veja que se trata de uma metáfora mista. Não se enfrenta o oceano com os braços. Enfrenta-se uma hoste com os braços. Rollo selecionou a palavra e datilografou “hoste”. É um dos raros equívocos de Shakespeare.
Com isso, Torgesson demonstra a proeza literária de Rollo. Em seguida, Hoskins aceita que Marmie utilize o macaco para provar (ou não) que sua versão é melhor do que aquela proposta pelo editor.
Estruturalismo
A ideia no conto é que, dadas todas as palavras de uma língua, um computador seria capaz de “calcular” quais as melhores palavras para um texto, assim como se calcula o melhor movimento em uma partida de xadrez. Isso pressupõe que haja um “certo” e um “errado” na forma de escrever e, portanto, é possível definir parâmetros puramente lógicos para determinar a qualidade do texto.
Em termos de teoria literária, encontramos no Estruturalismo uma teoria que se aproxima dos preceitos acima. O Estruturalismo foi uma teoria que teve seu auge na década de 1960. Seus principais expoentes foram Roland Barthes e Tzvetan Todorov, influenciados pelo trabalho de Ferdinand de Saussure, o pai da linguística moderna.
Os estruturalistas partiram da dicotomia apresentada por Saussure, ou seja, a divisão da língua entre langue e parole. Langue diz respeito aos padrões e regras de uma língua, conhecidas por todos os falantes dela, enquanto parole tem a ver com a manifestação da langue de forma individual, dentro de um contexto específico. O interesse dos estruturalistas estava na langue, ou na estrutura da língua e, principalmente, na obtenção de uma poética estruturalista, isto é, “uma teoria da estrutura e do funcionamento do discurso literário.” (TEIXEIRA, 1998, p.35)
Qual a relação disso com o conto? Teixeira (1998, p. 35) aponta que os estruturalistas buscavam descobrir a “gramática segundo a qual se articulam as narrativas do homem, que não são aleatórias nem imprevisíveis, mas que obedecem a uma estrutura, entendida como o conjunto de propriedades essenciais do discurso literário.” O pequeno Rollo tem essa estrutura esquematizada no cérebro, que ele utiliza para determinar as melhores palavras para cada texto. Entretanto, como Rollo é praticamente um computador, ele fica limitado a esse “algoritmo” predeterminado por Torgesson.
É aí que a gente passa para a terceira parte deste texto.
Literatura de inteligências artificiais
Não sou especialista em inteligência artificial, então as considerações aqui são baseadas naquilo que li e ouvi de pessoas mais próximas a essa área.
As inteligências artificiais que se comunicam por escrito, como o ChatGPT, são treinadas a partir de uma série de textos pré-existentes. Com isso, elas aprendem padrões da estrutura da língua, sendo capazes de produzir textos que sigam a esses padrões. Porém, é importante destacar: essas IAs não criam nada novo. Além de não entenderem os conteúdos que alimentam sua base de dados, elas apenas reproduzem o que já se encontra dentro de sua programação. As IAs (pelo menos as atuais) não criam nada, não podem produzir inovações em campos criativos como a literatura e a arte, pois elas não podem trazer significados novos para as palavras.
Assim como o pequeno Rollo “corrigiu” Shakespeare, pois Shakespeare usou uma metáfora e o macaco era incapaz de entendê-la, as IAs não são capazes de gerar metáforas novas. E isso é porque não é só o contexto linguístico que traz significado e adequação para as palavras em um texto, porque a língua não se basta sozinha. Também dependemos do contexto social, dependemos de emoções e associações que são feitas, para além dessa estrutura textual buscada pelo Estruturalismo.
Talvez um dia a IA seja capaz de entender as nuances humanas, ou de criar novas coisas? Pode ser. Quem sabe no futuro, nós leremos literatura escrita por inteligências artificiais. Por enquanto, isso é só ficção científica.
Referência
TEIXEIRA, Ivan, Estruturalismo. Fortuna Crítica In: Revista Cult. Revista Brasileira de Literatura. São Paulo: Lemos Editorial, out., 1998, p. 34-37.
Imagem da capa: Imagem de aknourkova por Pixabay, editada por Allan Penoni