Paro frequentemente para pensar sobre lendas familiares nas diversas mitologias, principalmente na grega em que a fidelidade e a lealdade são tão raras dentro das famílias. Vemos maridos e esposas se traindo, filhos matando pais, e irmãos se degladiando por algum prêmio insignificante. Entretanto, algo em muitas mitologias é sagrado e inquestionável desde tempos imemoriais: o amor de uma mãe por sua prole!
Nesse sentido, trago um antigo texto meu. Uma reinterpretação de uma lenda sobre o desejo de não se estar sozinho e sobre como uma mãe pode ameaçar todo o mundo para defender sua filha.
Trago-lhes a lenda de PERSÉFONE (Conhecida como Proserpina para os romanos).
Zeus, o senhor do Olimpo, estava em seu trono discutindo ferrenhamente com sua esposa Hera, deusa da família e do casamento, pois acabara de retornar de uma cidade mortal, onde havia se transformado num jovem guerreiro, cortejado uma nobre princesa e dormido com ela.
– Irei amaldiçoar qualquer criança ou criatura que aquela humana parir! – Gritou a deusa, apontando em direção à base do Olimpo.
– Minha querida, – respondeu Zeus, em tom apaziguador – não há perigo de isso ocorrer, pude sentir sua energia vital e ela não estava fértil naquele dia.
– Isso não me interessa! Você é um deus, sabe-se lá do que é capaz de fazer. Deveria era respeitar nosso casamento! Até agora o único filho que teve comigo foi Ares, o deus da guerra!
– Ah! E é o meu filho mais poderoso! Temido por todos! – Animou-se o deus e, tentando abraçar a esposa, adicionou, com sua voz mais sedutora – Se a questão é essa, podemos fazer com que engravide novamente.
Hera virou as costas para Zeus, acertando seu rosto com longos cabelos castanhos, e se afastou do alcance dos braços musculosos.
– Você é um ingrato! – Tornou a falar, sem olhar o marido, mas sua voz estava trêmula, entre o desejo de ser acalentada e a vergonha de ter sido traída.
Antes que o deus pudesse responder, o ambiente se tornou gelado e ligeiramente mais escuro e uma voz grave e cavernosa ecoou pelo salão:
– Concordo com você, querida irmã, se eu tivesse uma esposa bela como você e que me amasse como ama seu marido, estaria disposto a fazer qualquer sacrifício para vê-la feliz!
O casal de deuses olhou na direção da voz, onde a luz turvou levemente e revelou a imagem de um homem alto e musculoso, de pele muito clara, como alguém que não se expõe ao sol por muitos meses, e cabelos negros como a escuridão. Em sua mão direita portava um longo garfo de duas pontas, feito da mais pura prata e magnificamente ornado com símbolos e traços em sua haste, enquanto a mão esquerda retirava da cabeça um elmo dourado, no melhor estilo espartano, com uma plumagem escura e acinzentada, que Zeus sabia ter sido retirada da juba de uma quimera muito antiga e poderosa.
Hera o olhou no fundo dos olhos, da cor do mais profundo abismo, e segurou sua respiração por poucos segundos, até ver um enorme sorriso surgir no rosto pálido. Relaxando, abriu um sorriso carinhoso e caminhou até o recém chegado para recebê-lo com um abraço:
– Meu querido irmão Hades! Há muito tempo que não o vejo. Seu lugar de honra aqui no Olimpo está ficando empoeirado.
Hades, riu do comentário enquanto abraçava sua irmã, sabia que nada ficaria desarrumado no Olimpo, não enquanto Héstia, a deusa da organização doméstica, estivesse por perto. Ao se soltar, virou-se para Zeus e, com uma leve mesura, saudou:
– Meu senhor e irmão, espero não ter chego em má hora.
– Não, de forma alguma. Hera e eu estávamos apenas conversando sobre coisas triviais. – Respondeu, aliviado por ter um motivo para que a discussão não continuasse – Deveria ter sabido que estava vindo, você sempre gostou de entradas triunfais.
– Não sou o senhor do submundo por mero acaso. As almas que vêm para mim sempre se surpreendem, com coisas boas ou, em muitos casos, terríveis. Porém, respondendo à dúvida de minha cara irmã – se virando para Hera -, não posso abandonar meu reino por muito tempo, os humanos têm a constante mania de morrer. A todo momento tenho que receber as almas enviadas. Acredito que o único deus mais ocupado que eu é Hermes, por ter de levar todos esses espíritos para o mundo abaixo.
– E o que o traz ao nosso palácio, caro irmão? – Questionou Zeus, intrigado.
– A solidão, senhor dos raios. Por mais populoso que seja meu domínio, sinto falta de poder conversar abertamente, de deus para deus, e também do conforto vindo do amor de uma esposa, algo tão raro quanto almas dignas de ir para a Ilha dos Abençoados. Vim lhe pedir permissão de escolher uma deusa para reinar ao meu lado.
– Escolher? – Perguntou Hera – Nenhuma das deusas se interessou por você? Um deus tão poderoso e dedicado?
– Não, por mais que muitas das divindades gostem de minha companhia, todas temem ter de viver eternamente no submundo, que, apesar de seus locais agradáveis, é o palco de tantas punições e horrores. Ficar longe do sol, longe dos outros deuses, sempre é visto como um castigo.
– E no que está pensando, meu irmão? – Desconfiou o senhor do Olimpo, se sentando mais ereto em seu trono, pronto para passar seu julgamento – Diga sem pestanejar o que deseja?
– Desejo raptar uma das deusas não casadas – não desonraria nenhum deus com tal ato – para poder provar para ela o quanto pode-se aproveitar de uma vida no submundo.
– Fora de questão. – Bravejou Zeus, sua voz ecoando como um trovão – Não permitirei que tome tal atitude contra qualquer morador do Olimpo.
Hades estava pronto para isso, não esperava uma resposta positiva de Zeus, mas, antes de poder iniciar sua argumentação, Hera gritou mais alto e com mais raiva que seu marido:
– Fora de questão? Ele será um marido melhor do que qualquer outro! Hades saberá dar valor a uma deusa que esteja disposta a abandonar o Olimpo e ir viver em seu reino. – Mudando o tom de voz numa fração de segundo, completou do modo mais inocente que conseguia – Se deseja meu perdão, meu querido marido, dê uma chance a Hades, permita que ele tenha a oportunidade de criar sua família.
Zeus pensou por alguns minutos, puxando fios de sua longa barba grisalha. Sabia que seu irmão, mesmo sendo o senhor dos mortos, não era um deus mau e sua vontade de fazer as pazes com Hera fizeram com que decidisse a seu favor. Considerando a honra das deusas e o risco de entrar em conflito com outros deuses, propôs para Hades:
– Muito bem. Poderá raptar uma deusa, desde que respeite três condições: Não poderá escolher escolher Artemis, que desejou se manter virgem por toda eternidade; também não poderá usar de violência para seu rapto, não quero nenhuma das belas divindades sendo ferida; e, por fim, após levá-la ao mundo inferior, você deve conquistá-la, pois ela poderá escolher, de livre vontade, se deseja ficar ao seu lado ou não.
– São condições extremas! – Protestou Hades, que nunca conseguíra convencer nenhuma das deusas a ir conhecer seus domínios.
– Minha proposta é final. – Determinou Zeus – Aceita?
Engolindo sua ira, Hades aquiesceu, agradeceu sua irmã pelo apoio e se retirou com uma mesura quase agressiva, vestindo seu elmo, que o tornou invisível novamente. O casal percebeu que o senhor dos mortos estava longe quando o ar voltou esquentar e um dos raios do sol vespertino entrou novamente pela janela, iluminando o rosto de Hera, que torcia para que tudo se resolvesse.
Hades não sabia se comemorava ou se explodia de raiva. Como raptar uma deusa sem usar força bruta? E, principalmente, quem ele deveria escolher?
Afrodite e Athena estavam fora de cogitação, ambas se recusariam a permanecer longe do pai, além de que a primeira era amante de Ares, com quem Hades não desejava entrar numa rixa de sangue, e a segunda tinha tantas intenções de permanecer livre quanto a irmã de Apollo.
Já estava vendo, no horizonte, a região vulcânica do Vesúvio, entrada do mundo subterrâneo, quando sentiu a energia pulsante de um deus. Olhando ao redor percebeu, próxima a um depósito de enxofre, uma linda mulher, de cabelos tão negros quanto os seus e, se possível, pele mais alva que a sua própria, ajoelhada, coletando pequenas flores amarelas que nasciam apenas ali.
Percebendo o deus se aproximando, a jovem se levantou assutada, permitindo ser reconhecida.
Perséfone, filha de Zeus e da deusa das colheitas, Deméter, era uma das deusas da nova geração. Seu corpo era esguio e sensual e seus olhos tão azuis que beiravam o cinza. Ela sempre vagava pelo mundo dos homens, olhando o trabalho de sua mãe, para poder ajudá-la no crescimento das constantes plantações.
– Senhor Hades. – Disse, numa voz firme e já sem medo – Não esperava encontrar com o senhor aqui.
– Caminhando pelas portas do meu reino? Aqui é um lugar muito propício para me encontrar. O que está fazendo nessa região, não há plantações aqui onde a lava do vulcão ainda atinge o solo vez ou outra, e por que pareceu tão assustada ao me ver?
Perséfone corou levemente e mostrou o pequeno buquê amarelo que segurava:
– Essas flores precisam do magma misturado ao solo para crescer, só posso colhê-las nessa região. – Então continuou, corando ainda mais e com um novo temor em sua voz – Quanto ao susto, antes de ver o senhor, senti apenas a aura divina. Achei que fosse o sanguinário Ares, que vem me perseguindo nos últimos tempos, buscando em mim uma nova diversão.
– Violência e morte realmente não se adequariam a uma bela e delicada jovem como você. – Respondeu Hades, com sinceridade e o tom mais reconfortante e protetor que sua voz grave era capaz de fazer.
Para sua surpresa, os olhos claros da deusa brilharam em desafio, antes de responder:
– Sim, nas formas levianas e desnecessárias tão amadas pelo deus da guerra, mas você, senhor do mundo inferior, deve saber, melhor do que ninguém, dos seus valores, uma vez que a morte é parte da vida dos homens e, se as histórias forem verdadeiras, a violência também é muito comum no seu reino.
O argumento de Perséfone deixou Hades sem reação, que apenas concordou em silêncio, lembrando de tudo que é feito nos campos da punição, e começou a caminhar rumo ao vulcão. Escutou, após alguns passos, a deusa dizer, numa voz aflita:
– Perdão se o ofendi, senhor. Entendo como funciona a vida e a morte, só não aprecio quem a aplica de modo desnecessário.
O senhor dos mortos apenas acenou em resposta, sem se virar ou parar. Sua mente já estava correndo freneticamente pensando em como raptaria aquela jovem, mas sem ferir um fio de seu cabelo.
A entrada do mundo inferior era uma caverna na base do vulcão, um local quente o suficiente para que nenhum humano se aproximasse por engano, mas, ao passar da entrada, a temperatura voltava ao normal.
Hades desceu pelo túnel até encontrar o rio Estige, onde Caronte, um barqueiro esquelético e coberto por uma capa negra, aguardava para transportar até o mundo dos mortos as almas que pudessem pagar, o que ocorria quando o corpo era enterrado com um dracma dourado em seus olhos ou embaixo da língua.
– Mestre Hades. – Saudou o barqueiro, com sua voz etérea – Posso levá-lo até o outro lado?
– Sim. E, enquanto fazemos a travessia, me responda uma coisa: Já transportou tantas almas e criaturas, como faria se tivesse que levar alguém contra sua vontade, mas sem ferir e sem usar a força bruta?
– Meu senhor, de tantos mortos que passam por aqui, mais da metade terminou sua vida sem vontade de fazê-lo, mas todos estavam dispostos a se sacrificar, sempre seduzidos por algo que amavam, seja outra pessoa, ouro ou poder…
– Ou uma flor! – Exclamou Hades – Já sei quem poderá me auxiliar. Caronte, me leve até o Tártaro.
O Tártaro era o abismo mais profundo do submundo, um lugar escuro e também uma prisão inexpugnável onde eram mantidos os titãs que lutaram contra os deuses e foram vencidos na Titanomaquia, mas não era exatamente nesse abismo que Hades desejava ir. Ao lado da entrada, foi construído um pequeno altar, dedicado à mãe terra, que não se envolveu nos combates, porém desejou permanecer próxima ao seu marido, o titã Uranus, ou o céu.
Se curvando perante ao altar, o deus do mundo inferior clamou:
– Gaia, mãe terra e minha avó, preciso de sua ajuda!
– O que precisa de mim, Hades, deus das almas? – Respondeu a voz de Gaia, retumbando pelo próprio terreno.
– Desejo raptar Perséfone, mas não quero, nem devo, lhe fazer mal. Só assim poderei trazê-la até o submundo e conquistá-la, para que se torne minha esposa.
– Irei ajudá-lo, pois sinto sua solidão, mas, se destratá-la de algum modo, a fúria dos titãs cairá sobre você e perderá seu reino.
– Estou de acordo. O que devo fazer? – Questionou Hades.
– Aguarde meu aviso, sei de tudo que ocorre na terra, pois este é o meu corpo, e vi a paixão da deusa pelas flores. Irei seduzir Perséfone com um narciso encantado e a lançarei aqui nas profundezas, onde você deverá estar esperando para recebê-la. – Respondeu Gaia, retornando ao seu indecifrável silêncio.
Hades aguardou pacientemente o aviso da titã, até que, dias depois, Radamanto, senhor dos Campos Elísios, avisou seu mestre do local onde Perséfone chegaria em breve.
Escolhendo seu melhor manto e usando sua carruagem voadora de ouro e platina, Hades foi até o lugar marcado, onde viu a terra se abrir, acima de sua cabeça, e Perséfone cair pela fissura.
Quando a agarrou no ar, o deus viu que a jovem estava em transe, segurando firmemente um narciso amarelo, muito similar com as flores que nasciam nas proximidades do vulcão.
Sendo o mais delicado possível, Hades retirou a flor da mão de Perséfone, que voltou a si segundos depois, e disse:
– Bem vinda ao submundo. Não tenha medo, não irei machucá-la. – Oferecendo um buquê de flores douradas.
Perséfone ficou atônita por uns instantes, antes de se dar conta com quem e onde estava e o que era aquele maravilhoso ramalhete.
– O que estou fazendo aqui? – Perguntou, pegando de modo incerto o presente, mas se desvencilhando dos braços de Hades.
– Peço uma chance de mostrar meu reino. Ver que a morte não significa violência, algo que existe aqui, mas não com a abundância que a maioria acredita.
– Por que deseja me mostrar isso? Irá me matar? – Sua voz tremia de medo.
– Não! Nunca! – Apressou-se, Hades, em responder – Seu comentário me fez acreditar que você, entre todas, pode ver o real valor do que é feito aqui, como você mesma disse. E também – adicionou, tirando um enorme diamante do bolso e entregando para a deusa – se dar conta das inúmeras belezas e riquezas desse lugar.
A voz agradável do deus, e a visão da raríssima pedra, fizeram com que Perséfone se acalmasse e dissesse, já em um tom mais sereno:
– Estou de acordo em visitar seu reino. Só peço que me pergunte diretamente, numa próxima vez que desejar minha companhia, pois não tenho o coração fraco de uma donzela e a inocência, perante a vida e a justiça, de uma criança.
Hades se sentiu ainda mais atraído pela deusa, por seu espírito e sua visão. Voaram então pelo submundo, começando pelo próprio Tártaro, onde Hades depositou o narciso mágico no altar, como oferenda e agradecimento à Gaia.
Seguiram para os Campos de Asfódelos, circundado nove vezes pelo rio Estige. Um vasto prado tedioso, onde as almas das pessoas que levaram uma vida comum vagavam pela eternidade, continuando na mesma rotina sem graça ou futuro que levaram durante seus anos em terra. Perséfone se impressionou com o silêncio do lugar, uma vez que as almas não emitiam ruído algum ou mesmo falavam umas com as outras, pareciam apenas se ignorar e focar em sua própria invariabilidade.
A próxima parada foram os Campos Elísios, um lugar muito mais alegre, onde heróis mortos e as pessoas comuns que tiveram uma vida correta e virtuosa passavam a eternidade, numa existência fácil de constantes festas e nenhum trabalho. Mais uma vez a deusa se viu espantada, pois aquela região do submundo possuía um céu, ou pelo menos a ilusão de um, com um sol e nuvens. Hades explicou que aquele era um local de reconhecimento para as boas e distintas almas, e que um ambiente cavernoso e escuro nunca poderia ser considerado um prêmio digno, por isso tudo havia sido adequado para que a eternidade ali fosse a mais tranquila possível.
– Mas, isso ainda não é tudo. – Disse o deus, enquanto voavam em direção a um enorme lago, no centro dos Campos – Vê aquela ilha? Ali é onde fica o meu palácio e onde a verdadeira alegria se encontra.
A ilha era conhecida como Ilha dos Abençoados, onde Hades construíra sua morada, com grandes pedras escuras e cristais esverdeados. As almas que habitavam essa ilha eram aquelas que realmente iriam experimentar o paraíso eterno, tendo seus desejos realizados e todo o conforto e satisfação que pudessem imaginar. Foi explicado para Perséfone que, para estarem naquele lugar, as almas tiveram que passar pela provação final, pois, quando uma alma era eleita para descansar nos Campos Elísios, ela podia escolher ficar lá ou reencarnar e, caso ela fosse digna dos Campos em três vidas seguidas, o espírito provara para todos seu caráter especial, sendo, então, convidado para degustar a eternidade no paraíso, junto ao deus dos mortos.
Durante a visita, Hades conversou constantemente com a jovem e seu afeto por ela foi crescendo rapidamente, vendo seu interesse em todo o seu reino, mas ficou realmente apaixonado após saírem da Ilha dos Abençoados, onde pararam alguns dias para desfrutar das delícias do palácio, e quando Perséfone perguntou:
– E quanto às almas dos humanos maus, perversos, assassinos e estupradores? Não vi você comentando deles em nenhuma das regiões que passamos.
– Você tem real interesse em saber? – Questionou Hades, incerto – Temos um lugar para eles, que evitei de propósito.
– Entendo o que quis fazer – respondeu a deusa, numa voz séria, mas acariciando de leve o braço de Hades – e fico grata por isso, pois sei, agora, que você é capaz de ser justo com os humanos e generoso com quem merece, por isso digo que tenho interesse, sim, em saber se sua justiça também é adequada para aqueles que só trouxeram desgraça e tristeza para seus semelhantes. Pessoas com o espírito pútrido como o de Ares, que tentou me ter a força tantas vezes.
A agressividade e força no tom da deusa fizeram com que Hades se sentisse, finalmente, junto com alguém digno de dividir sua coroa e, satisfeito, respondeu:
– Vou lhe mostrar o lugar, mas, antes, se ama tanto a justiça irei lhe apresentar meu juiz, o rei Minos.
A carruagem atravessou o ar e seguiu, através dos Campos de Asfódelos, até uma região onde o ar era insuportavelmente quente e, ao mesmo tempo, gelado. Toda a área a frente de Perséfone era cercada por uma muralha altíssima, atrás da qual se podia ver chamas subindo, lava escorrendo, geadas, tempestades de areia e furacões terríveis, assim como podia-se ouvir o tilintar de metal, o borbulho de ácidos e o chiado de carne sendo queimada, tudo isso abafado pelos infinitos gritos de dor e sofrimento.
Hades, olhou para a deusa ao seu lado, esperando uma expressão de horror e pena, mas encontrou apenas a face impassível de alguém que sabe que a justiça estava sendo feita e que as punições eram merecidas.
Pousaram em frente à única abertura na muralha, uma enorme porta, ao final de uma escadaria, onde uma fila de almas esperava impassivelmente para entrar e, como Perséfone imaginava, serem julgadas, pois uma fila muito menor saía pela porta e seguia em direção aos campos entediantes.
A porta dava para um gigantesco salão, onde havia uma mesa de centro e na qual se sentava um enorme rei humano, ou quase, pois possuía uma cauda de serpente que usava como um chicote para atiçar a fila à andar e, também, prender e arrastar de volta qualquer alma que tentasse escapar.
O rei Minos, com sua barba grisalha e coroa cravejada de rubis, precisava de apenas alguns segundos para visualizar toda a vida do espírito à sua frente e passar seu julgamento, indicando para que a alma retornasse por onde havia vindo e vagasse pela eternidade ou agarrando a alma e a atirando para trás, por cima do ombro, através de uma outra porta que dava para um mar de lava, onde o infeliz iria iniciar seu tomento eterno. Raras vezes o rei soltava uma gargalhada de satisfação, batia levemente nas costas de um espírito e o convidava a ir de volta até o rio Estige, onde entraria novamente na barca e poderia escolher se seguiria até os Campos Elísios ou reencarnaria.
Perséfone tentou conversar com o juiz, mas esse se desculpou alegando que não poderia parar agora com seu trabalho ou a fila iria fugir de seu controle, e estalou o rabo-chicote que se enrolou na perna de uma alma, que acreditara na distração do rei e tentara escapar, e a jogou sem julgamento algum no lago de lava derretida.
A deusa, então, se aproximou da porta para o inferno, para ver melhor o que realmente se encontrava atrás da grande parede de pedra. O local não poderia ser descrito de outra forma senão como dantesco, almas de todos os tamanhos, sexos, idades estavam sendo torturadas das mais diversas e horrendas formas, que, segundo Hades, representavam fielmente todo o mal que a pessoa tivesse causado e que seria submetida por toda a eternidade.
Hades permitiu que a deusa observasse tudo que queria, até respondendo em quais casos, e como, ele mesmo aplicava o castigo. Estava para se arrepender de ter contado tal fato, quando Perséfone comentou, se virando e seguindo para a carruagem:
– Você é um deus muito justo, generoso e cruel com quem merece. – E, ficando levemente rubra, completou – Os outros deuses deveriam se espelhar mais em você, deixando de lado toda a mesquinhes, inveja e luxúria que vemos no Olimpo. Gostaria de estar aqui com você mais vezes.
– Perséfone, – Disse Hades, num tom gentil, segurando a deusa pelos ombros e a virando para si – você gostaria de ficar aqui e reinar ao meu lado, após tudo o que viu e o que conversamos?
A jovem olhou para o senhor do mundo inferior por alguns segundos, até que o abraçou e respondeu:
– Sim, serei a sua dama das sombras e governarei os mortos ao seu lado.
Então começou o reinado de Perséfone, senhora dos mortos, encarregada de governar ao lado de Hades e aplicar, nas almas danadas, as maldições dos vivos, que sofreram por ações desses algozes.
Alguns meses se passaram quando Deméter, desistindo de acreditar que sua filha estava em algum lugar do mundo dos homens, foi até Zeus.
– Meu senhor e irmão, você que tudo vê, sabe onde está minha filha, Perséfone?
– Sua filha está com o marido, Hades. – Respondeu o senhor do Olimpo, como se fosse algo óbvio.
– Minha filha está no submundo?! – Esbravejou Deméter, cuspindo algumas sementes, em sua ira, e fazendo nascer alguns espinheiros ameaçadores no centro do salão – Como é que ela foi parar no reino de Hades, meu caro irmão?
– Eu dei permissão para o senhor dos mortos escolher uma noiva, raptá-la, desde que não usasse força bruta, e desposá-la, se ela concordasse, e assim aconteceu.
Os espinheiros secaram e se desfizeram no mesmo instante que Deméter começou a chorar.
– Como pôde? – Perguntou entre soluços – Minha pobre filha, demando que a traga de volta!
– Não irei fazer isso, minha irmã, pois dei minha palavra a Hades. Hera é minha testemunha e Hermes trouxe notícias de que foi de livre escolha que o casamento aconteceu.
– Não irá trazê-la de volta? – Ameaçou Deméter, saindo do salão – Espero que saiba o que está fazendo.
Semanas se passaram e, com a crescente depressão de Deméter, a deusa não foi capaz de cumprir com suas obrigações em relação à vida vegetal e ao plantio, deixando a terra estéril e os seres da terra morrendo de fome e fraqueza. Zeus tentou convencê-la novamente de que Perséfone não estava sofrendo, mas conseguiu parcos resultados, até que decidiu quebrar sua promessa e desceu ao mundo inferior para ter com seu irmão.
– Hades, preciso que deixe Perséfone ir, Deméter está rumando para a erradicação dos homens e animais da terra.
– Ah, então é isso. – Disse Hades, surpreso – Gaia me contou que não têm recebido nutrição nos últimos dias e o volume de almas chegando aumentou vertiginosamente. Minos está no limite de sua capacidade de fazer julgamentos. Estava me perguntando o que vocês estavam aprontando lá em cima.
– Bem, agora que sabe, demando que libere Perséfone para retornar. – Exigiu Zeus.
– Não posso fazer isso.
– E por que não? – Se enfureceu o deus.
– Pois eu não sou uma prisioneira aqui! – Respondeu Perséfone, entrando no salão. Vestia agora uma túnica negra que contrastava com sua pele branca, deixando-a terrível e sensual – Como bem sabe, casei com Hades e amo meu marido. Fico aqui pois tenho minhas obrigações como dama das sombras.
– Mas sua mãe enlouqueceu! – Rugiu Zeus – Ela vai matar a todos e então não terão mais nada o que fazer!
A expressão de Perséfone amenizou ligeiramente. A deusa sentia também a falta de sua mãe, mas não havia chance de um espírito livre como aquele residir com eles no submundo, por mais belas que algumas áreas fossem. Se virando para o marido, pediu:
– Me ajude, meu querido. – Não devo deixar minha mãe sozinha assim, mas também não quero ficar longe de você e do nosso reino.
Hades pensou por alguns minutos, também não queria ficar sem sua amada, mas o fluxo de almas estava exagerado, a humanidade estava morrendo de uma forma que não era natural, e aquilo não poderia continuar. Pegou então uma romã, a fruta mais sagrada no submundo, e retirou doze sementes, que estendeu para Perséfone:
– Aqui, como bem sabe, acreditamos e valorizamos a justiça. Te ofereço uma semente para cada mês do ano e o poder de julgar quanto tempo é justo que fique com sua mãe e aqui. Como as sementes são da fruta sacra do nosso domínio, você deverá comer quantas representem o tempo que ficará aqui, ao meu lado, e o nosso reino irá se adaptar para essa nova rotina, assim como o meu coração.
A deusa, perante a decisão mais difícil de sua existência, ponderou tudo o que pôde, desde a sua própria felicidade até o que era justo com os humanos, e comeu seis das doze sementes, selando que passaria metade do ano com sua mãe no Olimpo e a outra metade com seu marido no submundo.
Com isso, foram definidas as estações do ano, pois, no início do ano, nos primeiros três meses, Deméter está recebendo sua filha recém chegada e enche o mundo com flores (Primavera), nos três meses seguintes Perséfone ajuda sua mãe nas tarefas divinas, garantindo a colheita nas plantações (Verão), então a dama das sombras retorna para seu marido e a segunda metade do ano se inicia, onde, nos três primeiros meses, Deméter está começando a se entristecer com a saudade que sente da filha e as plantas começam a desfalecer (Outono), até que, nos três meses finais, a deusa fica em depressão, deixando de lado suas obrigações e tornando a terra improdutiva, gelada e sem vida (Inverno), fechando um ciclo das estações e iniciando o seguinte.
Hades também cumpriu, eternamente, sua promessa à Gaia, se por amor ou por receio não se sabe, mas sendo um dos raros deuses que se mantiveram fiéis às suas esposas, mesmo que não tenham gerado nenhum descendente.