Todo mundo que mantém memórias da longínqua década de 90 e dos anos 2000 sabe muito bem o que foi o pânico das vacas loucas. Não, leitores da geração Z, não houve nenhuma ocupação por vacas irritadas com nossa alimentação onívora. Pelo menos até agora…
Em setembro do ano passado, duas vacas foram diagnosticadas com a doença, causando sanções comerciais oriundas dos principais importadores de carne bovina brasileira. A bolsa de valores também reagiu mal ao evento, gerando uma onda de apreensões a todos que trabalham na cadeia agropecuária. Afinal, o que tem a doença da vaca louca para causar tanto pânico? Existe somente uma doença igual a esta? Irei tentar responder estas dúvidas hoje!
A encefalopatia espongiforme bovina – conhecida popularmente como doença da vaca louca ou EEB – é um mal que acomete os ruminantes, causando degeneração do sistema nervoso [1]. A doença é fatal aos animais e facilmente transmissível de um bovino para outro. Sua forma de transmissão é por meio de príons, que seriam proteínas de conformação alterada que começam a se comportar como vírus.
A doença teve sua origem em terras britânicas no ano de 1986. Produtores observaram alterações nos animais antes da morte dos mesmos, como: hipersensibilidade aos sons e ao toque, ansiedade generalizada e alterações raivosas no comportamento [2]. Porém, a doença só foi levada mais a sério com o pico da epidemia em 1992, quando foram registrados mais de 37.000 casos novos da infecção.
Os primeiros casos da transmissão da peste para humanos foram observados em 1996, originando quadros de doenças fatais no sistema nervoso central conhecido como variante de Creutzfeldt‑Jakob [3]. Com o impacto contado em vidas humanas, a epidemia começou a ser melhor estudada para descobrirmos suas causas o quanto antes.
Finalmente descobriram que a doença possuía causas completamente derivadas do estilo de manejo praticado pelos criadores. Os mesmos usavam farinha de ossos e carcaça de boi para potencializar a dieta dos bovinos. Com o “canibalismo” sendo legalmente praticado naquele meio de criação, coube aos bois o adoecimento, sendo que as próprias condições de criação – como espaços confinados – também facilitaram a disseminação da partícula infectante.
Com as causas mais bem estabelecidas, autoridades de fiscalização em todo mundo já sabiam como prevenir o avanço do fenômeno: proibição do uso de subprodutos de carne na ração de ruminantes, proibição da venda e do consumo de cárneos dos animais doentes, controle da importação dos produtos e rastreabilidade epidemiológica; além da remoção de materiais de risco específico (MRE, como resíduos do sistema nervoso central). Por ser uma doença de longo período de incubação, levou-se cerca de duas décadas para que a mesma estivesse conceitualmente controlada nas companhias pecuaristas e alimentícias ao redor do mundo.
Mesmo com este controle, alguns casos da doença continuam ocorrendo. Geralmente estes surtos são conhecidos como EEB atípica, que difere um pouco com relação à EEB clássica. Esta variação ocorreu ao mesmo tempo na Itália e na França em 2004. Os príons eram um pouco diferentes daquele original, com um peso molecular maior e um poder de propagação muito menor. Mesmo assim, a espontaneidade de onde surgia era bem problemática.
Há discordâncias com relação à primeira aparição da EEB atípica francesa – denominada EEB tipo H – pois existem indícios de seu aparecimento no ano 2000. Mesmo assim, um quadro causal foi sendo montado para evitar uma propagação dos comportamentos de risco à nova problemática bovina.
Todos os casos desta nova EEB foram identificados em animais idosos (acima de oito anos já é ancião na vida ruminante). A média de idade dos bovinos acometidos nos casos franceses era de 12 anos. Alguns casos espontâneos no Japão, França, China e nos EUA apontaram faixas etárias de 15 anos.
Hoje em dia, cientistas reconhecem a espontaneidade da EEB atípica e sua não propagação de maneira viral. A doença estaria relacionada com o processo de adoecimento natural que os bovinos idosos passam, assim como seria o alzheimer para os humanos. Alimentação e condições de vida também refletem nos riscos de desenvolvimento do quadro clínico.
Estudos franceses no ano de 2012 indicaram que as formas atípicas eram bem mais frequentes em bovinos de corte (80%) do que nos bovinos leiteiros (20%) [1]. Novamente a questão do manejo fora levantada, uma vez que bovinos de corte sofrem com maus tratos em toda a cadeia frigorífica, dos quais destacam-se: golpes com paus, uso de cães, manejo defasado, falta de espaço, ataques repentinos e exposição ao calor excessivo.
Em um cenário em que os maus tratos tornam-se rotina, mesmo com a adoção das Boas Práticas Agropecuárias (BPA) por parte da fiscalização, casos atípicos tendem a se tornar mais comuns. Os meses passaram para que a China – o maior importador de carne do Brasil – voltasse a comprar os produtos da bovinocultura. A crise abalou a imagem do processo fiscalizatório e de segurança alimentar, historicamente e culturalmente construído por milhões de brasileiros.
A EEB atípica sempre aparece para mostrar problemas que não são facilmente observados nas produções de grande escala. Quantas crises serão necessárias em âmbito nacional para que erros crônicos possam ser superados de vez? Deixando o texto com esta reflexão final, agradeço a todos pela leitura e até a próxima!