Após seu surgimento no Triássico Superior, momento este muito bem documentado no registro fóssil do Rio Grande do Sul (como abordamos no texto anterior), os dinossauros ainda levaram cerca de 30 milhões de anos para se tornarem os seres dominantes nos ambientes terrestres de todo o mundo. Esse momento sinaliza o início de um período pós-extinção, da chamada extinção do Triássico-Jurássico, que é marcado inclusive pelo surgimento de outros grupos de dinossauros que ainda encontramos por aí: as aves. Sim! E se não sabia disso, lembre-se que come coxa de dinossauro em todo almoço de domingo na casa da vovó.

A partir do início do Jurássico, os três grandes grupos de dinossauros, os ornitísquios (como os famosos Triceratops, Stegosaurus e Parasaurolophus – dá um Google aí!), os sauropodomorfos, que agora são representados pelos grandes saurópodes (aqueles pescoçudos), e os terópodes (que inclui o T. rex e aquele frango assado lá da sua nonna) se estabeleceram em seus ecossistemas, onde desempenharam seus papéis ecológicos, de forma geral, como herbívoros (ornitísquios e saurópodes) e predadores e generalistas (terópodes).

Mas, para efeitos de ufanismo nacionalista, o período Jurássico não nos traz muito do que nos gabarmos porque, infelizmente, não há quase nenhum registro de dinossauros jurássicos no Brasil. Na verdade, rochas do Jurássico e que tem ossos de dinossauros são mais raras, tanto na América do Sul como em outras massas de terra que do que era o Sul do Pangeia, aquele supercontinente da época, onde tudo era meio que junto, e o Oceano Atlântico ainda não existia  (Bittencourt e Langer, 2011). O pouco que conhecemos da diversidade de dinossauros brasileiros do Jurássico provém de pegadas fósseis, que são um tipo de icnofóssil. Essas pegadas provêm do Grupo Areado, de Minas Gerais, e da Formação Botucatu, que aflora em vários estados do Sul e Sudeste, mas seus icnofósseis são mais conhecidos em São Paulo. Na verdade, a coisa pode ser um pouco mais complicada, mas só um pouco…porque os paleontólogos ainda não sabem direito o quão antigas são essas rochas, e isso quer dizer que a idade de onde estão essas pegadas meio que varia do Jurássico Superior até o Cretáceo Inferior.

Daí vale um destaque especial para as pegadas fósseis da Formação Guará, de novo, do Rio Grande do Sul. Essas rochas são do Jurássico Superior e possuem um registro mais amplo de pegadas de dinossauros. Lá tem pegadas de terópodes, saurópodes, e ornitísquios ornitópodes, um dino tipo o Aladar (não sabe quem é o Aladar? Tsc tsc tsc…então aproveita a quarentena e vai ver o filme!). Ainda mais legal é que recentemente foram encontradas pegadas de anquilossauros, outro grupo desses ornitísquios bastante raros na América do Sul, e que foi documentado pela primeira vez no Brasil (Francischini et al. 2018; Figura 1).

Figura 1: Pegadas fósseis de um anquilossauro da Formação Guará, Jurássico Superior do Rio Grane do Sul. A e B mostram a pegada como preservada (A), sendo que em B ela está sombreada para ressaltar seu formato. C é uma reconstrução do anquilossauro caminhando (visto de baixo para cima) à medida que produz as pegadas. Retirado e editado de Francischini et al. (2018).

Um dado interessante é que o registro icnológico é extremamente importante para entender como eram os ornitísquios brasileiros porque osso que é bom, por aqui nada. Para se ter uma ideia, sabe-se que havia ornitísquios no Brasil apenas por conta destas pegadas da Formação Guará. Esse registro é complementado por outras trilhas e pegadas isoladas de ornitísquios, em sua grande maioria ornitópodes (agora já sabe quem é o Aladar?), do complexo de bacias do Rio do Peixe, como a Bacia de Souza e a Bacia de Uiraúna-Brejo das Freiras, que datam do começo do período Cretáceo (Leonardi e Carvalho, 2002). Nota: me desculpem pelos nomes…não culpem o carteiro pela mensagem!

Por falar no período Cretáceo, são em depósitos desta idade que se concentram todos os fósseis corpóreos de dinossauros pós-triássicos do Brasil. Nos últimos 20 anos foram descritas cerca de 20 espécies de dinossauros, incluindo uma ave, do Cretáceo do Brasil. A figura 2 mostra todas as espécies de dinossauros descritas formalmente no país, além de alguns grupos cuja presença nos horizontes tupiniquins ainda é discutida.

Figura 2: Relações de parentesco de todas as espécies de dinossauros brasileiros, incluindo grupos conhecidos apenas por seu registro icnológico, como pegadas de ornitísquios, e outros a partir de registro incompletos e que não permitem a identificação de uma nova espécie. Imagens cedida gentilmente pelo paleontólogo da USP-São Paulo, Dr. Luis Eduardo Anelli.

Toda essa diversidade de fósseis e dinossauros se concentra em apenas 4 bacias sedimentares: Bacia do Paraná, Bacia Sanfranciscana, Bacia do Araripe e Bacia São Luís-Grajaú – uma bacia sedimentar é uma depressão no relevo, por vezes muito grandes, onde se acumulou sedimentos ao longo de algum tempo, podendo conter fósseis ou não. Ao invés de compormos aqui um catálogo de espécies, é mais interessante contextualizar os aspectos evolutivos mais gerais que moldaram os nossos dinossauros e que também nos ajudam a entender algumas questões que possam pintar na cabeça do leitor, tais como: por que não tem Tyrannosaurus rex  no Brasil?

Se você tiver curiosidade de pesquisar todas as espécies de dinossauros do Cretáceo que há por aqui (os nomes estão na figura 2), pode se deparar com comparações que o levarão a concluir que nossos bichos são muito mais parecidos com os da Argentina (os hermanos devem ter o dobro ou mais de espécies de dinos do que temos aqui…mas a gente é Penta!) e África do que com dinossauros do hemisfério Norte. E é aí que a paleontologia nos ajuda a entender a dinâmica da história do planeta de uma forma mais complexa do que apenas “mais um punhado fósseis de um troço que não existe mais”.

Por exemplo, dentre os fósseis de dinossauros do Brasil que são encontrados em rochas do Cretáceo Inferior (por exemplo, fósseis das formações Quiricó, Santana, Itapecuru e Alcântara), há alguns parentes dos dinos que são comuns na América do Norte, Europa e Ásia (essas três regiões estavam juntas nessa época, e chamamos ela de Laurásia). Isso porque neste momento, a porção sul do Oceano Atlântico tinha acabado de se formar por conta do movimento dos continentes (deriva continental) que levaram à separação da América do Sul e da África. Ou seja, pouco tempo antes (hahaha pouco tempo prum paleontólogo quer dizer alguns milhões de anos), todos os continentes estavam juntos e os dinos conseguiam viajar por aí de boas.

Nessa época, ainda era possível encontrar por aqui primos distantes dos tiranossauros, como o Santanaraptor (Delcourt e Grillo, 2018). Mas com a separação dos continentes, este grande grupo de terópodes se isolou na Laurasia e foi por lá que apareceu grandes predadores como T.rex. Então já podemos explicar a pergunta feita acima dizendo que não tinha T. rex no Brasil porque havia um mar gigantesco que separava seu local de origem, a América do Norte no caso, do Brasil (o grupo dos tiranossauros é bem grande, e havia bichos bem parecidos habitando regiões diferentes, como o Tarbosaurus que viveu na Mongólia e na China). Um exemplo bem diferente, mas que talvez ajude a entender o valor de uma barreira biogeográfica deste porte, é explicar que não tem leões no Brasil porque eles não conseguem cruzar o Atlântico!

Desta forma, entendemos que a fauna de dinossauros do final do Cretáceo Inferior e do Cretáceo Superior (estes representados pelos fósseis da Bacia do Paraná) são evolutivamente mais próximos a outras espécies sul-americanas, como as da Argentina e África por questões biogeográficas. Então vamos aos exemplos, começando pelos terópodes.

Além do grande grupo dos Tyrannosauroidea, como explicado acima, destacaremos os espinossaurídeos (tem um desses bem famoso no Jurassic Park 3, que é o Spinosaurus), ceratossaurídeos e aves enantiornites pois apresentam um registro fóssil mais completo. Espinossaurídeos são bem documentados em pelo menos duas bacias, a de São Luís-Grajaú, com a espécie Oxalaia quilombensis, e Araripe, com Angaturama limai e Irritator chalengieri. Este grupo de dinossauros carnívoros são bem comuns no Norte da África que, à época, era pertinho do nordeste brasileiro, e estudos apontam que eram especializados em comer peixes, além de atingirem tamanho bastante grandes. Oxalaia, por exemplo, tem estimativa de tamanho de 12 a 14 metros.

Já os ceratossaurídeos são representados por dois grupos: os abelissaurídeos e os noassaurídeos. Ambos os grupos representam os registros mais completos de terópodes da Bacia do Paraná, provenientes dos grupos Caiuá e Bauru. Atualmente, o abelissaurídeo mais completo conhecido no Brasil é o Pycnonemosaurus nevesi, encontrado no Mato Grosso. Estudos recentes apontam, inclusive, que se trata da maior espécie de abelissaurídeo já encontrado no mundo, medindo algo em torno de 9 metros de comprimento (Grillo e Delcourt, 2016). Abelissaurídeos foram os terópodes mais comuns presentes no final do Cretáceo do Brasil, além de serem bastante parecidos com outros representantes do grupo da Argentina, África, Madagascar e Índia.

Já o grupo dos noassaurídeos ganharam no ano passado um novo integrante brasileiro, o Vespersaurus paranaensis. Bem menor que os abelissaurídeos, e medindo apenas poucos metros de comprimento, o Vespersaurus tem a peculiaridade de ter sido funcionalmente monodáctilo em seus membros posteriores. Na prática isso significa que ao pisar/caminhar/correr, apenas o terceiro dedo do pé era funcional, enquanto os dedos 2 e 4 ficavam “levantados” (Figura 3). Essa adaptação do Vespersaurus é muito interessante para um animal que vivia em ambiente árido, e cercado por dunas, como era o paleoclima e ambiente de onde ele viveu.

Figura 3: Imagem mostra o fóssil do pé do Vespersaurus paranaensis, que possuía adaptações para a monodactilia funcional em resposta ao modo de vida em ambientes desérticos, com diversos corpos de dunas. Retirado de Langer et al. 2019.

O pouco que se conhece de aves fósseis no Brasil se baseia em algumas penas da Bacia do Araripe, e no recém descrito Cratoavis cearensis, um tipo de ave que ainda tinha dentes e que eram bastante comuns na época. Há indícios da presença desse grupo de aves no Grupo Bauru baseados em fósseis bastante incompletos, além de um ovo fóssil.

O registro dos dinos pescoçudos, os saurópodes, do Cretáceo do Brasil é o mais comum para dinossauros. Dois grandes grupos são conhecidos, começando pelos Diplodocoidea, que recebe esse nome por conta de seu representante mais famoso, o Diplodocus. O grupo é mais raro por aqui, representados por apenas alguns registros na Bacia São Luís-Grajaú, como Amazonsaurus maranhensis. Já os titanossaurídeos são muito mais comuns. Ao longo do Cretáceo, eles se tornaram os saurópodes mais bem sucedidos em todo o mundo, em termo de diversidade e ocupação de habitats, vivendo inclusive em ilhas! No geral, seu sucesso é relacionado ao que parece ter sido uma melhor capacidade de sobreviver em ambientes mais áridos, como ocorreu no Cretáceo da Bacia do Paraná, e em outras localidades como na Argentina. São conhecidas diversas espécies no Brasil para o grupo, dentre as quais destaco o Tapuiasaurus macedoi, que vem da Formação Quiricó, do Cretáceo Inferior, e é um dos poucos titanossauros do mundo que possui um crânio completo e relativamente bem preservado. Outra espécie que merece destaque é o Uberabatitan ribeiroi, encontrada em rochas da Formação Marília do Grupo Bauru, datada do final do Cretáceo Superior. Representado por vários indivíduos, estudos recentes sugerem que alcançava até 25 metros de comprimento (Silva et al. 2019) (Figura 4)!

Figura 4: Estimativa do tamanho corporal do Uberabatian, um titanossauro de Uberaba, MG, que poderia alcançar os 25 metros de comprimento quando adulto. Créditos da imagem são do doutorando Julian Silva Junior, autor do estudo.

Mas os dinos se foram, com exceção das aves obviamente. E ainda bem…se um vírus já causa tanto estrago, imagina o que seria se tivéssemos por aí dinossauros gigantescos e gripados! Mas apesar de não existirem mais, novas e mais novas espécies têm sido descobertas no Brasil nos últimos anos, e isso passa direto pelo esforço dos paleontólogos em trabalhos de campo. O futuro da paleontologia nacional depende da continuidade destes estudos com a finalidade de entender melhor a real composição das faunas que rondavam por aqui no passado. E garanto que não eram só dinossauros! Havia muito outros animais e plantas…mas isso é assunto para outra hora.

 

Bibliografia

-Bittencourt, J. S. e Langer, M. C. 2011. Mesozoic dinosaurs from Brasil and their biogeographic implications. Anais da Academia Brasileira de Ciências 83(1): 23-60.

– Delcourt, R. e Grillo, O. N. 2018. Tyrannosauroids from the Southern Hemisphere: Implications for biogeography, evolution, and taxonomy. Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology. 511: 379–387.

– Francischini, H., Sales, M. A., Dentzien-Dias, P. e Schultz. C. 2018. The Presence of Ankylosaur Tracks in the Guará Formation (Brazil) and Remarks on the Spatial and Temporal Distribution of Late Jurassic Dinosaurs. Ichnos 25, 177-191.

-Grillo, O. N. e Delcourt, R. 2016. Allometry and body length of abelisauroid theropods: Pycnonemosaurus nevesi is the new king. Cretaceous Research. 69: 71–89.

Langer, M. C., et al. 2019. A new desert-dwelling dinosaur (Theropoda, Noasaurinae) from the Cretaceous of south Brazil. Scientific Reports. 9 (1): 9379.

-Leonardi, G. e Carvalho, I. D. S. 2002. Icnofósseis da Bacia do Rio do Peixe, PB. In Sítios geológicos e paleontológicos do Brasil (pp. 101-111). Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).

-Silva, J.C.G. Jr., Marinho, T.S., Martinelli, A.G. e Langer, M.C. 2019. Osteology and systematics of Uberabatitan ribeiroi (Dinosauria; Sauropoda): a Late Cretaceous titanosaur from Minas Gerais, Brazil. Zootaxa. 4577 (3): 401–438.

 

Imagem da “capa”: Reconstituição do Vespersaurus paranaensis por Rodolfo Nogueira.


Júlio Marsola. Paleontólogo, Licenciado em Ciências Biológicas, Mestre e Doutor em Biologia Comparada pela USP de Ribeirão Preto, SP, onde pesquisa sobre a origem dos dinossauros e outros temas. Pai da Lis, curte um bom e velho Rock’n Roll, além de passar um tempo com aquarismo e sofrendo com o Santos na TV.

 

 

Nota da Editora:

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