Olá aos leitores do Portal Deviante. Este será o último texto da nossa série sobre o ato religioso da alimentação! As redações podem deixar saudades, mas os leitores sempre poderão conferir os textos anteriores aqui.
Descobrimos muito sobre como práticas alimentares correspondem aos sistemas filosóficos, sociais e (sobretudo) religiosos, reforçando tabus, práticas e valores únicos de cada crença.
Neste texto, iremos abordar um pouco um estilo filosófico-alimentar que não é tão convencional ao pensamento do brasileiro comum. A alimentação Hare Krishna, desenvolvida sobre o sistema de crenças que compõe o hinduísmo!
Conhecemos o hinduísmo como uma religião, mas na verdade o mesmo é um sistema de crenças, valores e normas que se desenvolveram no subcontinente indiano, da mesma forma como acontece com as religiões de matriz africana aqui no Brasil e no continente africano. Uma destas crenças é o Hare Krishna, conhecido pelo seu alto valor cultural e de adaptações normativas ao ato alimentar ao redor do mundo.
O Hare Krishna salienta a manifestação do encontro com o divino através de práticas que reforçam a teoria. Alimenta-se a vida biológica, simbólica e religiosa com rituais diários que delineiam os mais diversos momentos da vida. O ato alimentar é bastante importante nesta religião, pois com ele conseguimos reforçar a vida nestas três esferas de uma só vez.
O alimento não pode agradar apenas nossas necessidades fisiológicas e mundanas, mas também reforçar a presença dos deuses (hindus) em nossa vida [1]. A literatura do livro sagrado dos Hare Krishna, os Vedas, indica que o hábito de comer precisa ser cerceado por normas para que o alimento seja oferecido a Krishna — deus supremo e verdade absoluta — acarretando também em oferendas lactovegetarianas em nome da divindade.
Segundo a mitologia, existem três modos diferentes de se levar a vida, que são os chamados “três modos da natureza material”. Estes modos de vida possuem seus respectivos reflexos nos hábitos alimentares dos praticantes, correspondendo ao grau de conhecimento e sabedoria desses.
O “modo de bondade” é aquele que ocupa o grau mais elevado dos modos de vida. Corresponde aos alimentos substanciais, nutritivos e suculentos [1], também conhecidos como alimentos vivos, por estarem frescos no ato comensal. Vegetais, grãos, leite e sementes correspondem a estes alimentos que purificam a existência.
No “modo de paixão”, encontram-se alimentos que estejam amargos, ácidos, secos, picantes e ardentes. Assim estariam classificados o café, a pimenta e outras espécies de temperos, como o vinagre, a cebola e o alho. O modo de paixão até pode te trazer felicidade momentânea, mas pode ser responsável por malefícios e doenças futuras.
Logo abaixo, existe o “modo de ignorância”. Por estarem em constante e gradual “estado de decomposição”, estes alimentos exercem péssimas influências no comportamento do comensal, aumentando a propensão às atitudes avulsas e ignorantes. Nesta classificação estaria a carne, a fritura e as bebidas alcoólicas.
Para a comida ser sacralizada por Krishna, o alimento precisa ser preparado tanto de maneira material quanto espiritual. A liberação dos automatismos de vida em benefício da realidade sagrada faz-se por meio de ritos de sacralização. Estes ritos são sistematizados e também evocam a capacidade de sujeição do praticante à religiosidade.
Desta maneira, mesmo que a pessoa permeie sua escolha alimentar ao lactovegetarianismo (representante do modo de bondade), ela estaria comendo só pecado caso não faça os ritos corretos. Os mantras corretos ao longo do manuseio e preparos entoam a forma correta de sacralizar o alimento a Krishna. Uma das cânticas mais famosas durante o preparo e a comensalidade é o mantra hare krishna.
A qualidade e a quantidade também refletem o modo de vida mais asceta de alimentação. De forma geral, os modos de vida representados na alimentação são capazes de indicar os rumos da sociedade em nível de consciente coletivo, gerando os caminhos que serão percorridos pela nossa alma e corpo.
A alimentação dos Hare Krishna, bem como as práticas espiritualistas não-cristãs, recebeu um reforço no final dos anos 70 com o soerguimento da contracultura (1965-1977) [2]. Tendo mostrado a alimentação lactovegetariana e os modos de vida aos não praticantes, o movimento criou uma imagem de leveza e vitalidade à sua alimentação que se espalhou tão longe quanto imaginava.
O vegetarianismo e suas classificações ganharam vida própria a partir deste movimento, criando seu próprio repertório de tabus e moralidades. Hoje em dia, é impossível de indissociarmos estes movimentos de slow food com a própria pauta ambientalista/sanitarista que os Hare Krishna estabeleceram.
Os símbolos desenvolvidos em torno da prasada (o ritual de preparo e comensalidade da região) sintetizam o sistema cultural e, consequentemente, o ethos de um povo inteiro [5]. Desta forma, todo um sistema de personalidades, o caráter, o tom e até a qualidade de vida podem ser identificados como de um agrupamento específico.
Apesar de não possuir seu próprio selo de certificação de preceitos culturais em seus preparos, o repertório de pratos e receitas consolidadas está crescendo vertiginosamente. Isto porque conceitos como “autopurificação” por meio da austeridade e “elevação de consciência” não são explicados com tanta facilidade por meios técnicos.
Estando em uma das temáticas mais importantes dos últimos tempos, os Hare Krishna nos ensinam como a cultura alimentar é capaz de delinear o conjunto de possibilidades de vida a que não percebemos normalmente. O que pensa o leitor sobre o tema? Deixe seu comentário e até a próxima leitura!