Continuando esta série sobre o ato religioso da alimentação (textos aqui e aqui), no texto anterior, eu havia mencionado sobre o valor e o sistema simbólico que existe na cultura islâmica e a importância da jugulação cruenta. Desta forma, descobrimos a importância de manter um sistema que abarca muito mais símbolos do que imaginamos normalmente.

Neste texto, iremos descobrir sobre os princípios da ritualística por trás do abate judaico. Existem diferenças ao abate humanitário? Qual a discussão por trás do método de sangria deste abate? Iremos descobrir logo mais!

Os judeus levam o abate ritual bem a sério. Esta jugulação cruenta (Shechita) relembra ao praticante a importância sobre os danos espirituais à pessoa ou a comunidade se nos rebelarmos contra as leis divinas. Até mesmo em caso de consumo acidental de carne não kosher (ou seja, não legítima) abarcaria em danos à vida toda.

O livro mais importante da religião judaica (torá) indica a maneira correta de se realizar um abate animal, porém a tradição oral também é muito importante à maneira hebraica de tratar o assunto [1]. Existe na tradição a proibição da angústia de outros seres vivos, devendo a responsabilidade pelo bem-estar animal ser abarcada neste domínio.

Desta maneira, a técnica reflete a matança da maneira mais sem tormenta possível, com uma faca afiada o suficiente para que o atordoamento seja rápido e indolor. Com a carne kosher — alguns mamíferos quadrúpedes, pássaros, peixes escamosos e invertebrados — o animal é submetido ao processo de morte shechita. O método de abate é a exsanguinação.

Este abate é realizado com corte por instrumento afiado chamado de chalaf, cujo comprimento é o dobro do tamanho do pescoço do animal sacrificado [1]. Quando executado rapidamente na frente do pescoço, rompe-se traqueia, esôfago, nervos simpáticos, veias jugulares e artéria carótida.

 

Redação do site Gastronomia Carioca salienta o papel da gastronomia como ligado a princípios de purificação espiritual, observado nos alimentos kosher (permitido) do judaísmo [2].

No judaísmo, o sangue do animal é a própria essência do ser vivo, sendo por alguns considerado a própria manifestação da alma [3]. Desta maneira, o abate kosher retorna ao praticante uma carne que esteja com níveis baixos de sangue, ou seja, com alta eficiência de sangria.

Somente um profissional altamente treinado — conhecido como Shochet — que é também estudioso nos textos judaicos, poderá realizar o abate. Sazonalmente, a chalaf deve ser entregue para inspeção pelo rabino a quem o shochet esteja relacionado [1]. O profissional ainda precisa ter algumas atividades pós-abate para que sua atividade esteja completa, como a inspeção de treif dos animais doentes.

No passado, rabinos notaram porcentagens pequenas de aderências no pulmão de bovinos abatidos. Tal observação resultou na carne kosher suave (glatt) e não suave, resultando na categoria de carne especial dentro do contexto religioso judaico. Esta diferença de suavidade explica a não utilização de métodos de atordoamento na prática.

A resistência ao atordoamento, inclusive o elétrico, possui seu contexto na origem dos injurias que estas técnicas trazem. As injurias (ou treifos) podem ser difíceis de localizar e, inclusive, podem mascarar erros sistêmicos na natureza das operações industriais [4]. Assim, a metodologia de abate kosher reforça a necessidade de o animal estar vivo e não anestesiado durante a degola cruenta.

 

Cerveja elaborada por Cadu Lopes (Don Gentilis) dentro dos preceitos da certificação Kosher foi a primeira a conseguir a certificação inédita dentro do segmento.

 

A opinião dos rabinos geralmente é de proibição a qualquer modalidade de atordoamento pré-abate. Por este motivo, países como Noruega, Suíça, Suécia e Holanda proíbem a realização do sacrifício ritual desta modalidade [5].

Atrelados também à ideia de alimentação saudável da culinária judaica, os alimentos kosher reiteram mercados cada vez mais afastados no mundo, tanto para a alimentação de praticantes do judaísmo ou não [6]. Israel — que concentra a maior população judaica relativa no mundo — impõe a certificação de qualidade como barreira técnica em todo o território sionista.

Embora possua uma cultura consolidada nos EUA e União Européia, as necessidades kosher são desconhecidas ao povo brasileiro. O crescimento é visto de maneira emergente no cenário nacional e regulado pela BDK. Segundo dados de 2017, cerca de 30 empresas são visitadas todos os meses por rabinos para garantir a manutenção dos preceitos judaicos.

Com a certificação mais consolidada em terreno internacional, os alimentos kosher incorporam toda uma riquíssima cultura alimentar desenvolvida na simbologia hebraica. Com este texto, espero ter mostrado um pouco da importância da manutenção de diferenças culturais à sociedade! Obrigado pela leitura e até a próxima!

 

Referências
[1]: PANCHERI, Ivanira; DE CARVALHO CAMPOS, Roberto Augusto. Abate Halal e Kosher e bem-estar animal. Unisul de Fato e de Direito: revista jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina, v. 10, n. 20, p. 59-71, 2020.
[2]: SUL, Equipe Zona. Kosher: A gastronomia como símbolo espiritual do judaísmo. Portal Gastronomia Carioca, 03 set. 2021. Disponível aqui.
 [3] IZIDORO, Thiago Braga et al. O abate de frangos pelo método Kosher: definições, conjuntura de mercado e perspectivas de estudo. Veterinária e Zootecnia, p. 274-282, 2012.
[4]: CODIGNOLI, Fábio. A faca chalaf da comida kosher. Guilda dos cuteleiros, 16 mar. 2003. Disponível aqui.
[5]: MENDONÇA, Pâmella Stéfani Melo; CAETANO, Graciele Araújo de Oliveira. Abate de bovinos:
Considerações sobre o abate humanitário e jugulação cruenta
. 2017.
[6]: RIBEIRO, Érika Neves; DO AMARAL, Larissa Maciel. Certificação kosher como estratégia de acesso a novos mercados. ACADEMIA, 2017. Disponível aqui.