Fevereiro de 1945, Burma (atual Mianmar). Uma força aliada de indianos e britânicos luta para reconquistar a ilha de Ramree (Figura 1), tomada pelos invasores japoneses em 1942. Após uma campanha de várias semanas, as tropas aliadas flanqueiam os japoneses, que são forçados a recuar e fogem pelos pântanos da ilha. Quase duas décadas depois, em 1962, Bruce Wright, um naturalista canadense que serviu nas forças britânicas em Burma, relatou sobre o destino dos soldados japoneses numa passagem que é amplamente citada:
“Aquela noite [de 19 de fevereiro de 1945] foi a mais horrível que qualquer membro das tripulações da M. L. [lancha a motor] já experimentou. Os disparos de rifle espalhados no pântano escuro como breu perfurados pelos gritos de homens feridos esmagados nas mandíbulas de enormes répteis, e o som turvo e preocupante de crocodilos girando criaram uma cacofonia do inferno que raramente foi duplicada na terra. Ao amanhecer, os abutres chegaram para limpar o que os crocodilos haviam deixado […]. Dos cerca de 1000 soldados japoneses que entraram nos pântanos de Ramree, apenas cerca de 20 foram encontrados vivos”
Desde então, o massacre foi considerado o pior ataque de animais a humanos já registrado, com centenas de vítimas fatais; sendo citado em diversas publicações populares e semi-técnicas. No entanto, é preciso considerar esse relato com mais cautela.
Platt e colaboradores (2001) e Saunders (2019), por exemplo, apontam várias incongruências nesse relato, como o fato de quem o fez não estar presente na batalha, tendo chegado a Burma depois do ocorrido. De fato, o capítulo em que ele descreve os acontecimentos na Ilha Ramree foi escrito na terceira pessoa, em seu livro “Wildlife Sketches Near and Far”, enquanto o resto do livro é escrito na primeira pessoa. Wright se baseou em relatos de outros soldados presentes na batalha para escrever sua versão dos fatos, o que costuma ser ignorado quando propagam a história.
Além disso, o trecho tão amplamente citado foi levemente tirado do contexto. Wright nunca atribuiu a maioria das mortes aos crocodilos, apenas informou que cerca de vinte soldados foram capturados vivos. Antes de descrever os ataques dos crocodilos ele discute as condições precárias das tropas japonesas, sua relutância em se render e o intenso bombardeio aliado.
Outros relatos de veteranos da batalha e moradores locais também apontam que os crocodilos eram apenas parte dos perigos da ilha, e que a maioria das mortes foi consequência de desidratação, afogamentos e fome. Ataques de outros animais, como escorpiões, serpentes e até mesmo tubarões, também foram relatados. Outra confusão que ocorre frequentemente é assumir que todos os soldados desaparecidos morreram. Cerca de metade dos mil japoneses em retirada conseguiu escapar da ilha sem ser capturada pelos aliados.
Uma análise mais cética dos fatos aponta para outra narrativa: os homens que fugiram para o pântano rapidamente esgotaram seus estoques de água e comida. Os soldados sem água potável eram forçados a beber a água salobra do pântano, causando desidratação severa. Disenteria e doenças transmitidas pelos abundantes mosquitos da ilha também afligiram os japoneses. Muitos se afogaram nas águas traiçoeiras do pântano, ou tentando atravessar a estreita faixa de mar para o continente.
Apesar de ser possível que alguns crocodilos e tubarões tenham atacado os soldados perdidos, é mais provável que eles tenham apenas se aproveitado dos corpos das vítimas da ilha. A notória relutância dos japoneses em se render certamente impediu que a maioria se entregasse, preferindo a morte. Enquanto os aliados tinham uma taxa média de 1 rendição para cada 3 mortes, os japoneses tinham uma taxa de 1 rendição para cada 120 mortes.
Apesar de a citação de Wright insinuar que o massacre ocorreu numa única noite, o “cerco” ao pântano durou semanas, e as mortes foram distribuídas em vários dias. Seria muito improvável que centenas de soldados treinados e fortemente armados fossem massacrados por animais selvagens de forma tão massiva. Finalmente, crocodilos de água salgada são animais territorialistas, e os pântanos da Ilha Ramree não seriam capazes de suportar as centenas de crocodilos adultos necessárias para devorar tantas pessoas.
O suposto massacre causado pelos terríveis crocodilos seria então um hoax, uma lenda, fatos distorcidos e exagerados para criar uma história interessante, assustadora, exótica. Como se a história real não fosse interessante o bastante.
Lendas como essa servem para propagar a ideia de animais selvagens são monstros frios e calculistas, esperando oportunidades para se banquetear na carne humana.
Apesar de obviamente serem perigosos se ameaçados, os crocodilos de água salgada (Crocodylus porosus) (Figura 2) não são particularmente agressivos.
Entre 2010 e 2020, 1350 ataques de dessa espécie ocorreram em toda sua área de ocorrência (Figura 3), que abrange praticamente toda a costa do Sudeste Asiático. Desses ataques, 682 não foram fatais. Em comparação, após um ataque fatal em 2018, cerca de 300 crocodilos foram mortos em “retaliação” numa aldeia da Indonésia (Atenção! Imagens fortes no link).
Apesar de ainda serem classificadas como “fora de perigo” pela IUCN, as populações de crocodilos de água salgada vêm diminuindo, e amostragens em campo revelam que poucos animais avistados estão nas maiores categorias de comprimento corporal, indicando que os adultos são caçados e que as populações não estão se recuperando dos distúrbios a tempo de os animais se reproduzirem e manterem populações estáveis. Talvez os verdadeiros monstros assustadores e sanguinários não sejam os crocodilo no fim das contas.