Faz um tempo já, a revista Nature deu um grande destaque ao fato de que pesquisadores conseguiram incorporar ao DNA humano duas letras a mais dos que as clássicas A, T, G e C. Por uma absoluta falta de criatividade, batizaram estas novas moléculas como X e Y (acho que alguns cientistas deveriam dar uma olhada no Twitter brasileiro para extrair algumas ideias). Tendo duas letras a mais, o número de combinações aumenta exponencialmente, permitindo que novas proteínas sejam criadas, expandindo de maneira inimaginável as possibilidades. O alfabeto aumentou e com ele agora se torna possível escrever novas mensagens. Mas, para quem dormiu na aula de Biologia do primeiro ano, como algumas poucas letras escrevem todos os livros da vida na Terra? Venha comigo nesta viagem que o tio irá explicar.
Primeiramente, vamos relembrar que o DNA é uma fita dupla, sendo que em cada lado da fita repousa um conjunto de bases ou nucleotídeos. As duas fitas se mantêm unidas porque cada uma das quatro bases faz uma ligação obrigatória com outra base, dita complementar. Assim, o A (Adenina) liga-se sempre ao T (Timina) e o C (Citosina) liga-se sempre ao G (Guanina) e vice-versa. Essa complementaridade de ligação é que torna possível a replicação do DNA, porque se um dos lados se desprende do outro, as afinidades químicas entre as bases fazem com que haja um preenchimento imediato dos nucleotídeos soltos, re-montando a fita dupla novamente (animação aqui).
Mas, como vocês sabem, a duplicação é só uma das coisas que o DNA pode fazer. Não que não seja importante, pelo contrário. É graças a isso que a multiplicação celular existe e torna possível uma vida de organismos multicelulares, caso contrário todos ainda viveríamos em poças de água comendo farelinhos (se bem que, lendo comentários de Portais começo a duvidar desta assertiva…mas, enfim, divago). O que eu quero dizer é que o DNA também é responsável pela armazenagem de informação sobre como produzir as moléculas que fazem os organismos funcionarem (enzimas, hormônios, neurotransmissores, etc.). E aqui mora um detalhe fundamental: o DNA é só o manual de instruções para estas funções. O DNA é o engenheiro com a planta, mas quem bota a mão na massa são outros operários. Então, como faz?
Bem, para que a informação contida no DNA possa ser útil aos organismos, ela deve ser transcrita para RNA e traduzida em proteínas, que são as moléculas que, de fato, vão agir no corpo. Ou seja, existe uma cadeia de comando: engenheiro-chefe (DNA) a mestre-de-obras (RNA) a operários (proteínas). Sendo preciso, isso ocorre da seguinte forma: para codificar uma enzima, por exemplo, o DNA abre sua fita em uma região específica (um gene), a qual sofre um emparelhamento por nucleotídeos que, ao invés de se tornarem outra fita de DNA, vão gerar uma fita simples chamada RNA, especificamente falando RNA mensageiro (mRNA), justamente porque ele leva a mensagem do engenheiro para os operários. Este processo se chama transcrição. O detalhe aqui é que na transcrição da informação do DNA para o RNA mensageiro, o complementar do A é o U e não o T. Este U é a inicial de Uracila, outra base nitrogenada. Portanto, uma sequência com a base U, obrigatoriamente é RNA e não DNA.
Certo, mas e daí? Já temos o engenheiro, o mestre-de-obras e a explicação sobre como fazer a obra. Faltam os operários, que são, de fato, aqueles que botam a mão na massa. Vamos ver, então, como se dá este processo. Depois de as informações do DNA terem sido transcritas para mRNA, ocorre a tradução. Na tradução, os mRNAs saem do núcleo da célula e estabelecem conexões com estruturas conhecidas como ribossomos, que é onde se dará a síntese das proteínas. Os mRNAs serão então “lidos” por outras moléculas de RNA, estas chamadas de RNAs transportadores (tRNAs), justamente porque eles transportam os aminoácidos que formarão as proteínas. Os tRNAs trazem os aminoácidos conforme as instruções contidas nos mRNAs. E vocês irão perguntar, como os tRNAs sabem qual aminoácido trazer de cada vez?
Pois bem, cada um dos vinte aminoácidos essenciais é representado por uma sequência de três letras, o códon, os quais codificam um aminoácido. Nos tRNAs, em uma das “extremidades” da molécula, está o aminoácido e na outra está o anti-códon, que é o código complementar ao códon, tudo isto seguindo a complementaridade dos nucleotídeos. Ou seja, temos, de um lado, a fita de mRNA com algumas sequências de nucleotídeos agrupadas de três em três (digamos, CCU) e, do outro lado, temos o tRNA com uma sequência complementar de bases (ou seja, GGA). Este tRNA traz consigo o aminoácido Glicina, o qual ele descarrega no ribossomo para se acoplar em outros aminoácidos e formarem a proteína desejada. Conforme a fita de mRNA vai sendo “lida”, os aminoácidos vão sendo trazidos e emendados, formando a estrutura da molécula protéica (melhor visualizado aqui).
Como vocês são leitores espertos e treinados em análise combinatória, já perceberam que, com estas quatro letras, podemos fazer 64 combinações possíveis. Pois é, mas são só vinte aminoácidos, então sobram 44 combinações ainda. E aí, o que acontece? Como só ocorrem em sistemas biológicos, moldados por tentativa-e-erro, as coisas são redundantes ou degeneradas. Com o código genético não é diferente. Redundância é fundamental para diminuir erro e tornar um sistema menos frágil, já que, falhando uma coisa, outra substitui e os processos seguem seu curso. Trocando em miúdos: o mesmo aminoácido pode ser codificado por várias combinações de A, C, G e U. Por exemplo, o aminoácido Isoleucina é codificado pelos códons AUU, AUC e AUA, a Glicina do nosso exemplo acima é representada pelas trincas GGU, GGC, GGA e GGG e assim por diante. Além disso, existem códons especiais, os ditos códons de parada (stop codons, na língua do Homer), que são as trincas UAA, UAG e UGA. Estas combinações de bases sinalizam para o tRNA que pode parar de acoplar aminoácidos porque a proteína já está completa.
Agora que vocês já relembraram o básico da Biologia Celular do primeiro ano, poderemos voltar a conversar sobre por que é tão importante a síntese de dois novos nucleotídeos. Bom, os motivos são óbvios: com apenas duas novas letras, se torna possível re-arranjar as trincas de modo a produzirmos mais de 100 novos códons. O que abre possibilidades para que novas proteínas possam ser sintetizadas, com funções biológicas ainda desconhecidas. Antes de se pensar em apocalipse zumbi, devemos pensar em novas drogas (farmacologicamente falando, né? Tipo antibióticos. Não estou pensando nisso aqui), novas enzimas, novos fertilizantes, etc. Não há limites para as possibilidades de benefícios a longo prazo para nossa sociedade. Toda mudança científica sempre gera medo, mas até hoje, tudo o que aconteceu nos últimos 100 anos só trouxe aumento da expectativa e qualidade de vida. Por que não pensar que desta vez pode ser igual?
Só para fechar o post, vou contar para vocês o sentido da vida. Não e não é 42, já vimos que é mais. É algo mais lindo e profundo do que isso, que pode muito bem ser dito em conversas de bar, naquele exato momento que antecede o amor ao mundo, aquele em que todo bêbado se torna o Deep Thought e quer compreender a vida, o universo e tudo mais. Os nucleotídeos são formados por três estruturas: uma pentose (açúcar de 5 carbonos), um fosfato e a base propriamente dita (as letrinhas). Acontece que os carbonos do açúcar são numerados de 1 a 5 (notação 1’ até 5’) e como todo glicídio, nas suas extremidades ocorrem moléculas de hidroxila (OH), as quais fazem ligações com outras moléculas. Pois bem, na fita de DNA estas ligações acontecem sempre entre a hidroxila do carbono 3’ de uma fita com a hidroxila do carbono 5’ e este é o sentido da “leitura” e síntese de novas moléculas. Por isso, o sentido da vida é 5’- – ->3’ (lê-se ‘cinco linha – três linha’), como já nos ensinou a Mafalda muito tempo atrás.
Até a próxima pessoal!