Quando falamos em fascismo na atualidade é muito natural que lembremos da imagem de Benito Mussolini, o “Duce” da Itália, cambaleando nos palanques de discurso, embalado de entonação e de vinho, ou até mesmo seu semelhante Adolf Hitler da Alemanha nazista se contorcendo, gesticulando e berrando discursos cheios de clichês propagandistas. É natural, pois foram ícones de um fenômeno até então sem precedentes na humanidade, líderes de partidos totalitários e representantes de um movimento bárbaro que deixou um estigma na história da democracia liberal. O que não significa que seja justo atribuir a carga do fascismo somente para esses dois.
Tivemos representantes do pensamento fascista em Portugal, a exemplo do Salazarismo, bem como na Espanha, com o General Franco. Além disso, se nos dispuséssemos a esquadrinhar os registros de historiadores poderíamos identificar outros governantes que estiveram à beira da tentação totalitária, como nosso conhecido Getúlio Vargas, ou ainda nações que tinham, tanto motivos para se aliar ao modelo conservador e fascista, quanto ao liberal e democrático. Por detalhes específicos escolheram esse último, segundo o que explicita melhor Eric Hobsbawm em sua obra indispensável “A Era dos Extremos”.
Nesse sentido mais conceitual também é necessário destacar que nem tudo pode ser rotulado como fascismo. Pessoas ao se comportarem de forma violenta, totalitária não são necessariamente fascistas, mas esse comportamento faz parte do fascismo. Segundo Umberto Eco em sua famosa conferência de 1995, intitulada “O Fascismo Eterno”, o fascismo é mais um conjunto de características que se encontram na humanidade do que um regime propriamente dito. Mas o fato de um governo de uma nação apresentar uma dessas características não faz do mesmo um governo fascista. Essa definição é essencial para que tenhamos um cuidado de não denominar de fascista tudo aquilo que não gostamos, correndo o risco cometer um grande erro e ajudar a propagar o esvaziamento de sentido de um conceito. Portanto existem algumas características listadas por Eco que, quando reunidas, aí sim podem ser fortes indicadoras do fenômeno fascista. Lembremos também que Eco faz essa relação de características em forma de alerta a possibilidade eterna de vivermos o que ele viveu em sua infância na Itália fascista.
Partindo desses pressupostos iniciais, e tentando não soar extremamente acadêmico, esse escrito vai direto ao ponto: fazer uma descrição do comportamento e da mentalidade fascista, segundo algumas dessas características já elencadas por Eco e bastante difundidas por outros estudiosos do tema, no que diz respeito ao conhecimento formal/acadêmico e ao mundo das ciências. Essa descrição não aspira ser definitiva e muito menos pretende ser completa, mas objetiva mostrar como podemos, através do ditado que se encontra no título, perceber comportamentos e ideias fascistas no cotidiano da atualidade.
Por mais que o discurso fascista pretenda abraçar a verdade absoluta, o máximo que faz é repetir slogans, clichês, e argumentos falaciosos, muitas vezes vencendo o discurso do interlocutor mais pelo cansaço do que por argumentação de fato. Assim é visível que o conhecimento científico e o acadêmico passaram a sofrer diversos ataques nos últimos anos, sendo recusado e relegado por negacionistas que compartilham de uma característica do ideário fascista. Não nos enganemos: o fascismo não prega a integração com a natureza cósmica, nem uma regressão ao modo de vida primordial. Os nazistas do Terceiro Reich, por exemplo, adoravam a tecnologia, mas apenas no limite da praticidade da mesma, por ser um conhecimento instrumental utilizado para algo, no caso: a morte. Mas no cerne da mentalidade fascista há um ódio ao saber pelo saber. O fascista representa o “não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe”.
Não sei: O fascismo tem em seu âmago a ignorância, o barbarismo e, consequentemente, a valorização desmedida do fazer. O conhecimento que não for extremamente instrumental e que demonstre utilidade prática imediata é descartado. Já o saber está sempre em segundo plano, subjugado pela ação pura.
Não quero saber: diretamente ligado às contradições burras do não saber, existe o ódio e a resistência ao conhecimento. Não basta apenas ao fascista agir e pensar de forma idiota (tomando o significado real da palavra), ele precisa recusar com todas as forças o conhecimento que paira em sua frente de braços abertos. Assim uma sociedade que não quer saber é aquela que mostra resistência em buscar uma explicação científica; aversão aos livros e orientações acadêmicas; preguiça de assistir um vídeo de 1 hora do YouTube com especialistas, optando sempre pela narrativa conspiratória explicada em 10 minutos. Essa sociedade é a mesma que desvaloriza o professor e que relega a segundo ou a terceiro plano a educação pública. O ser humano, receptáculo dessa característica fascista, quando confrontado com a possibilidade do não saber, recusa qualquer orientação muitas vezes por comodidade, como o famoso pensamento kantiano (“Aufklärung”) já expressava: é cômodo permanecer nessa condição de menoridade, evitando o esclarecimento. O fascista, portanto, ou foge do conhecimento por ódio, ou por preguiça.
Etimologicamente, a filosofia representa a busca pelo saber, o ímpeto de se relacionar com o saber, que muitas vezes se torna possível quando o sujeito constata a própria ignorância. Não é à toa que Sócrates insistia em “conhece-te a ti mesmo”. Sabendo de nossas limitações podemos ir atrás de mais conhecimento, mas aí também existe a humildade daquele grande sábio que quanto mais conhece, mais percebe que não conhece muita coisa. “Só sei que nada sei”.
O fascismo, por sua vez, é inimigo da filosofia. Esse dinamismo de saberes, essa compreensão de que quanto mais sabemos, menos sabemos, não existe no ideário do fascista. A transitoriedade, relatividade e a parcialidade do conhecimento significam fraqueza para o fascista infantil que necessita viver para sempre sob os cuidados do grande líder, do pai, do grande dono da verdade. Aliás, a verdade está pronta e “não há progresso na história do conhecimento”, como disse Jorge de Burgos no romance medieval “O nome da rosa”– também de Umberto Eco.
Não estranhemos, portanto, o fato da filosofia ser removida do currículo escolar em épocas autoritárias no Brasil, ou que existam agentes que, decididamente, tentem afastar novamente esse pensamento dos currículos das escolas. Como no nazismo, a palavra filosofia havia sido suprimida, ainda hoje, o ideário fascista demonstra aversão à busca pelo saber.
Tenho raiva de quem sabe: como já ficou evidente, a sabedoria é mal vista. O fascismo é por definição irracionalista. Odeia tudo que representou o iluminismo, a ilustração, o academicismo. Não é à toa que a ascensão do nazi-fascismo na Europa é período conhecido como crise da democracia e do liberalismo (fortes baluartes da modernidade iluminista). O pensar sempre foi visto como símbolo de fraqueza e imobilidade, portanto odiado em vários regimes fascistas. Para esses a humildade e a incerteza que há na atitude do filósofo precisa ser eliminada, dando espaço às ações totalitárias – essas sim, possuem valor heroico. Não é estranho o fato de que cada vez mais as pessoas irracionais sejam aplaudidas e endeusadas. Os representantes do pensamento idiota tornam-se heróis das massas. Vemos um movimento mundial de “raiva de quem sabe”, e o discurso de ódio constantemente agride aqueles mais ponderados e razoáveis.
Assim, convém alguns questionamentos: seria o fascismo realmente eterno? O alerta de Eco ainda se faz atual? Coloquemo-nos a pensar.
Referências:
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das letras, 1999.
KANT, Imannuel. O que é o esclarecimeno? Textos Seletos. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. 4. Ed. Petropolis: Vozes, 2010. p.63-71.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
ECO, Umberto. O nome da rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernadini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.
ECO, Umberto. O fascismo eterno. in: Cinco Escritos Morais, Tradução de: Eliana Aguiar, Editora Record: Rio de Janeiro, 2002. Disponível aqui
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Tradução de João Ferreira. 11. ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1998.
Gian Ruschel. Professor de História e Filosofia, Mestre e doutorando em Educação nas Ciências e pesquisador de temas como filosofia moderna, história da filosofia, republicanismo e democracia, educação republicana, fascismo e totalitarismos.