Em certo sentido, podemos dizer com segurança que toda manifestação artística é uma interface entre fenômenos físicos, matemáticos e a cognição humana. O que é uma pintura, afinal, se não a química dos pigmentos e a geometria (mesmo que caótica) das formas, lapidadas e manipuladas a ponto de causarem reflexões, emoções e catarse? E, de todas as formas de arte, talvez nenhuma evidencie mais essa relação do que a própria música.
Como músico, eu já havia começado a desenvolver essa percepção na minha época de faculdade. Ao estudar harmonia, a disciplina das correlações entre notas e acordes, descobrimos que existe um sistema perfeitamente lógico que rege a construção da música ocidental. Entendemos que, quando atribuímos qualidades subjetivas a sons musicais, tais como “alegre”, “triste”, “tenso”, “relaxante” ou “misterioso”, estamos traduzindo, em forma de emoção, as relações matemáticas que existem entre aqueles sons.
A cartada final nesse caminho de descobertas foi o meu ingresso no universo da produção musical. Afinal, aqueles que são puramente músicos estão salvaguardados pela própria nomenclatura, e pelo jargão musical. Em seu vocabulário, constam nomes de ritmos, acordes, escalas e notas musicais. “Vamos tocar um samba em Ré Menor!” é uma demanda facilmente compreendida, e transformada em música, por qualquer músico devidamente treinado.
Já o universo da produção musical e da engenharia de áudio permite, e frequentemente exige, que se olhe sob essa profunda camada. Notas musicais se tornam frequências, que podem ser perfeitamente medidas em Hertz e Kilohertz. Acordes e melodias nada mais são do que diferentes formas de combinar essas notas, respeitando proporções numéricas entre seus valores. Os ritmos, capazes de nos fazer dançar de forma tão primal e inconsciente, podem ser dissecados e manipulados na ordem de grandeza de um milissegundo.
É quase como se déssemos um grande zoom e começássemos a trabalhar na Matrix, no grande aglomerado de fenômenos físicos e matemáticos por trás daquelas manifestações artísticas. Saem as cifras e partituras, entram as representações gráficas de ondas sonoras, com seus diferentes harmônicos, frequências e comportamentos dinâmicos.
E, ainda assim, é consenso entre produtores e engenheiros de áudio que todo esse conhecimento é em vão, caso não seja utilizado em prol da própria música.
Nós, produtores e engenheiros, nos tornamos assim uma grande classe de intermediários. Nossa função fundamental é compreender uma mesma demanda sob dimensões e perspectivas completamente diferentes. Devemos entender o que está sendo comunicado com cada obra musical, como, para quem e por que. Acima de tudo, devemos garantir que cada gota de expressividade do artista chegue, sã e salva, até o ouvinte, fechando assim o elo da comunicação.
Para isso, no entanto, devemos ser capazes de acessar a Matrix, e enxergar as manifestações artísticas como aglomerados de fenômenos físicos, promovendo uma comunhão entre esses universos aparentemente (e apenas aparentemente) antagônicos.
Eu frequentemente digo que uma das coisas mais apaixonantes sobre a produção musical é o fato de que, nela, se valorizam igualmente os conhecimentos sobre poesia e sobre física ondulatória. Somos obrigados a enxergar ambas como partes de um mesmo todo, o que parece contrariar a forma como nossa educação e nosso mercado de trabalho têm funcionado nos últimos tempos.
Desde o ensino fundamental, somos levados a enxergar – e eleger – lados no conhecimento. Ou somos “de exatas”, incapazes de sentir e interpretar uma obra de arte; ou somos “de humanas”, totalmente inaptos a compreender as mais universais leis da física. Quanta limitação, e quantas oportunidades perdidas.
Eu não estou dizendo que não devamos ter afinidades ou preferências. Eu mesmo fui “de humanas” por anos a fio, até descobrir o meu apreço pela lógica e matemática do universo musical. Meu ponto aqui é meramente que nos limitemos menos e que cultivemos menos barreiras entre diferentes áreas do conhecimento.
Afinal, assim como a produção musical me ensinou, elas são diferentes partes de um mesmo todo e frequentemente se fortalecem quando tradadas como tal.
Na próxima vez em que se deparar com uma obra de arte, sinta-a, permita-se comunicar-se com ela. E lembre-se de toda a física, lógica e matemática que invariavelmente fazem com que ela exista.