Nas últimas décadas, o tópico da mudança climática (sobretudo o aquecimento global) tem sido assunto frequente na mídia. Cientistas e políticos vêm discutindo a importância da tomada de ação imediata contra o aquecimento global. Os relatórios do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) pintam um cenário extremamente preocupante para o futuro, e o próprio relatório é criticado por parte dos cientistas por ser muito brando.
Nesse texto vamos explorar parte da argumentação de grupos negacionistas da mudança climática, a afirmação: “Os cientistas sempre erram suas previsões, portanto, seus resultados não são confiáveis”. Vamos entender o que é a mudança do clima, veremos exemplos da argumentação contrária e discutiremos o porquê da existência deste conspiracionismo e, por fim, as consequências possíveis da alteração do clima.
O que é a mudança climática?
Uma distinção importante: os conceitos de mudança climática e aquecimento global são interconectados, mas levemente diferentes. Aquecimento global diz respeito ao aumento da temperatura média da superfície do planeta, enquanto mudança climática se trata de um termo mais amplo que pode ser entendido como as consequências deste aumento (como uma relação de causa e efeito). Por ser um termo que abrange o próprio aquecimento global, “mudança climática” será empregado ocasionalmente como substituição.
A principal causa do aquecimento global é o acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera (como o dióxido de carbono e o metano). Em níveis controlados, esses gases são extremamente importantes para a manutenção do clima (sem eles, a Terra seria pelo menos 35ºC mais fria). O sistema é relativamente simples: o Sol emite radiação (na maior parte luz visível e ondas UV), cerca de 1/3 dessa radiação é refletida de volta ao espaço pela superfície do planeta; a outra parte é absorvida pela terra e o oceano, aquecendo-os. Esse calor é irradiado como energia infravermelha pela superfície. Os gases de efeito estufa são responsáveis por absorver parte dessa radiação, impedindo-a de escapar da atmosfera, conservando a temperatura na superfície do planeta.
A relação direta entre a quantidade de CO2 (dióxido de carbono) presente e a variação de temperatura na superfície da Terra pode ser observada analisando a variação concentração do gás na atmosfera em relação aos ciclos glaciais registrados em geleiras. Maiores quantidades de CO2 estão relacionadas com temperaturas mais altas.
Reiterando: concentrações “normais” de gases de efeito estufa são não apenas benéficas para o clima na Terra, mas necessárias para a manutenção dele. Durante quase toda a história biológica do planeta, os sistemas naturais de controle de CO2 se mostraram eficientes na conservação da temperatura global (plantas ajudam na coleta de CO2, pois utilizam-se dele para produzir seu alimento, embora estudos mostrem que níveis muito elevados de CO2 são negativos para o crescimento delas). Isso mudou com a Revolução Industrial.
Por meio, principalmente, da emissão de poluentes e desmatamento de florestas, a emissão de gases de efeito estufa na Era Moderna atingiu níveis nunca antes vistos. Tais níveis resultam em uma taxa muito maior de radiação capturada pela atmosfera, aumentando rapidamente a temperatura global.
Cientistas acreditam que o aumento na temperatura global pode causar danos colossais ao clima: o aumento de catástrofes, do nível do mar e a extinção de espécies são exemplos.
No último século, destruímos o balanço climático do planeta de uma forma que só poderá ser compreendida daqui a muito tempo, pois os efeitos da mudança ocorrem lentamente. Grupos de pesquisa fazem diversos estudos para entendermos o estrago que já causamos, cientistas fazem previsões para entendermos como o futuro pode se desenrolar e, assim, propormos maneiras de frear os efeitos potencialmente catastróficos das ações humanas.
Porém, um ponto que parece passar despercebido por grande parte das pessoas é: todas as previsões de aquecimento feitas por cientistas que apoiam a mudança climática se provaram erradas.
A ciência está errada?
Um dos maiores exemplos: a previsão de James Hansen, publicada em 1988, predizia um crescimento de cerca de 1,5ºC entre 1960 e 2020. Mas, quando comparada com os dados reais de alteração na temperatura, se mostrou defasada em uma escala de cerca de 0,2ºC.
Muitos negacionistas da mudança climática apontam essas falhas, argumentando que cientistas são incapazes de prever a alteração climática, bem como as consequências do possível aquecimento.
Um dos maiores nomes no negacionismo do clima é Steve Milloy, advogado, lobista, comentarista no canal Fox News e autor de obras como “Green Hell: How Environmentalists Plan to Control Your Life and What You Can Do to Stop Them” (Inferno Verde: Como ambientalistas planejam controlar sua vida e o que você pode fazer para impedi-los).
Steve acredita que a mudança climática é uma fraude, usada para provocar alarmismo, privar as pessoas de suas liberdades e movimentar quantidades enormes de dinheiro. Também acredita que o aumento de 1,5ºC ou 2ºC é insignificante e não apresenta perigos à população.
Afinal, será que o aquecimento global é uma fraude? Como podemos confiar em cientistas se eles são incapazes de propor um modelo observável? Como um aumento tão pequeno na temperatura pode ser perigoso?
Bem, a ciência está… certa
A primeira coisa que deve ser dita sobre o último trecho desse texto é que praticamente todas as informações exibidas na seção anterior estão erradas ou manipuladas pelos autores originais.
Não, aquecimento global não é uma fraude. Mesmo se as previsões climáticas estivessem erradas, análise de dados climáticos no último século deixam extremamente clara a tendência de aquecimento na superfície da Terra como um todo. Nosso planeta está aquecendo, afinal.
E é importante notar: outra argumentação comum nos meios conspiracionistas do clima é a de que o aquecimento global é natural, apontando a intercalação entre períodos de calor e de frio na história. Sim, historicamente, o planeta intercala períodos de temperatura elevada e reduzida, o problema está na escala: nos últimos 800 mil anos, esse processo aconteceu cerca de 8 vezes, trata-se de um processo extremamente lento, que dura milhares de anos para ocorrer e não apenas um século. Não estamos causando apenas uma mudança na temperatura, mas sim uma mudança extremamente abrupta.
Além disso, as previsões climáticas simplesmente não estão erradas. A previsão de Hansen, inclusive, mostrou-se extremamente certeira na análise do clima. Como assim? Bem, o gráfico da previsão que eu te mostrei no início do texto foi manipulado, eis a verdadeira previsão de Hansen (1988) e sua relação com a mudança do clima registrada no período previsto:
Como é possível ver, a previsão original de Hansen apresentava 3 cenários diferentes para o futuro da mudança climática: um mais extremo (cenário A), outro com o crescimento mais provável (cenário B) e outro onde ocorre uma variação do cenário B, em que o aquecimento é razoavelmente mitigado (cenário C). O comportamento registrado no período previsto em 1988 é compatível com o cenário B em quase sua totalidade.
O gráfico do começo do texto não é de autoria minha, trata-se de uma manipulação extremamente mal-intencionada que é espalhada por negacionistas do clima. Ocultando todos os cenários com a exceção do A.
A apresentação de cenários diferentes nas previsões de aquecimento global é comum, até mesmo necessária, pois quando falamos de previsões do comportamento do clima, temos de levar em conta diversos fatores e como as ações e reações humanas se apresentarão em relação a esses. O problema é que a apresentação desses cenários torna a teoria suscetível a ataques e manipulações por negacionistas. Afinal, o artigo realmente previa um aumento muito maior da temperatura média, o fato de ser apenas uma das 3 previsões é o que foi ocultado.
O leitor pode estar se perguntando “Por que alguém faria tudo isso?” ou “Qual o incentivo de negar a teoria da mudança climática se ela é basicamente consenso científico?”
Mudança Climática e o Status Quo
A mudança climática é real. Não só é real como é perigosa.
O planeta Terra é um ecossistema resistente, possui mecanismos para adaptação e conservação que possibilitaram a vida por bilhões de anos. A sociedade como conhecemos é baseada, em partes, no estado ambiental que o sistema possibilitou até agora. Mas o sistema pode ser quebrado.
A teoria de Tipping Points é presente em todas as discussões do clima. Literais “pontos sem retorno”, a partir dos quais a mudança causada por humanos pode gerar uma alteração na lógica interna do planeta. As mudanças podem ser catastróficas: alterações na temperatura média do planeta podem causar um aumento gigantesco em alguma área específica devido à mudança das correntes de ar ou marítimas, geleiras derretendo podem causar o aumento no nível do mar, a presença de desastres ambientais pode vir a se tornar (e vêm se tornando) cada vez mais constante em regiões de risco.
Tipping Points podem ser explicados como um efeito dominó: um aumento pequeno na temperatura global pode ser desastroso. Já estamos na área de risco de vários deles, e 1,5ºC (0,5º acima do que já aumentamos) de aquecimento médio aumentam ainda mais esses riscos.
Um exemplo do efeito dominó é encontrado no artigo “Interacting tipping elements increase risk of climate domino effects under global warming (Earth System Dynamics)”, em tradução livre*:*
Aqui está apenas um exemplo das muitas interações complexas entre os elementos climáticos: se houver derretimento substancial da camada de gelo da Groenlândia liberando água doce no oceano, isso pode retardar a circulação do Atlântico, que é impulsionada por diferenças de temperatura e salinidade e transporta grandes quantidades de calor dos trópicos para as latitudes médias e regiões polares.
Isso, por sua vez, pode levar ao aquecimento líquido no Oceano Antártico e, portanto, pode, a longo prazo, desestabilizar partes do manto de gelo da Antártida. Aumentando os níveis de água em ambos os hemisférios, o que pode contribuir para a desestabilização mútua.
Por ter consequência graduais, alguns estudos apontam a possibilidade de já termos atingido alguns desses pontos sem retorno, pode ser que já seja tarde demais para reverter alguns aspectos do clima, e que agora só podemos lidar com as consequências do que já causamos e fazer tudo o que podemos para frear o aquecimento e impedir futuros desastres.
O que leva Steve Milloy e tantos outros a negar, disfarçar e distorcer os dados que comprovam o aquecimento global é o assustador fato de que é impossível contornarmos as consequências sem mudar completamente a forma que vivemos.
O Acordo de Paris (conjunto de países na tentativa de combater a mudança climática) tem como objetivo limitar o aquecimento global em 1,5ºC (pois o risco de Tipping Points aumenta após esse marco). Para ter 50% de chance de conseguir o objetivo, emissões de CO2 devem ser cortadas pela metade até 2030, e zeradas até 2050, isso simplesmente não é possível na lógica de produção atual.
Existe um motivo para os grupos mais proeminentes no negacionismo no clima serem lobistas e religiosos conservadores, a existência real do risco de cataclisma ambiental torna necessária a mudança do status quo.
Lobistas e empresários (como Milloy, Donald Trump ou Alexandre Costa) lucram quantidades colossais de dinheiro com a lógica de produção e consumo atual — alguns, inclusive, pagam organizações de pesquisa não revisadas por pares para produzir “contra-pesquisa”, algo muito parecido com o que aconteceu com a indústria do tabaco nos anos 70-90.
Já para grupos religiosos, as ideias de aquecimento global e mudança climática representa um desafio direto a ideia de que a Terra é especial (e um presente para a humanidade desfrutar), Isso entra em conflito direto com o fato de que recursos são finitos, de que não podemos explorar o quanto quisermos e de que podemos ser os responsáveis pela nossa própria destruição — o ser humano não é especial e não existe numa realidade afastada do ambiente, nós dependemos dele tanto quanto qualquer outra espécie. Essa mesma contestação é a que afasta grupos extremamente religiosos tanto da mudança climática, tanto da teoria evolutiva.
Reitero: a mudança climática é real. E a única forma de escaparmos de suas consequências é mudando o status quo, repensarmos a nossa relação com o consumo, a produção, o ambiente e a lógica de mercado. O futuro que se desenha é sombrio, então precisamos fazer de tudo para acender a luz.
Fontes e referências
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