Serendipidade. Palavra bonita, ainda que pouco comum. Se não me engano, acabei conhecendo-a e sendo informado de seu significado através de leituras aleatórias por aí. Vem da língua inglesa, serendipity, e significa aquele tipo de descoberta afortunada feita por acaso. Inquietação. Sofro deste mal desde que me reconheço no espelho como gente. Ter um objetivo é o que me impulsiona. Perseguir uma ideia é o que me faz levantar da cama todo dia de manhã e sair para o mundo. A mesmice e eu temos um caso de incompatibilidade de gênios muito grave. Crise de identidade. É o que surge quando a zona de conforto se instala. Já satisfeita a minha curiosidade sobre determinado assunto, qual o desafio? Para que gastar tempo para incrementar marginalmente algum conhecimento? O mundo tem muita coisa ainda a ser descoberta, por que ficar parado no mesmo lugar? Minha trajetória de cientista até chegar onde estou hoje começou exatamente da média ponderada destes três conceitos que expliquei acima. Da inquietação surge a crise de identidade que leva a mais inquietação até que alguma serendipidade dê as caras e acomode as coisas de novo até o ciclo recomeçar.
Minha graduação em Biologia começou na alvorada do século. A empolgação inicial por estar agora fazendo parte de uma (infelizmente ainda) minoria universitária brasileira logo deu lugar ao choque de realidade de ter que lidar com coisas que nunca tinha parado sequer para pensar. Como havia coisa no mundo que eu não tinha a menor ideia que existia! Logo fui convidado para estagiar em um laboratório. Trabalhei com prospecção de novas moléculas antioxidantes. Radicais livres fazem um mal danado para a saúde, eu descobri. Ainda hoje tomo chá verde regularmente por conta disso. Como muito chocolate também (ok, isso é uma boa desculpa para consumir produtos do cacau com menos culpa).
Dois anos de pesquisa intensa, não raro chegando em casa passado das onze horas da noite só para no dia seguinte estar acordado às seis da matina para pegar o busão e às sete já estar na universidade novamente. Bolsista de iniciação científica. Resumo elogiado em Congresso. Convite para estágio em outra universidade. Tudo que qualquer molequinho na academia sonha e…. levantar da cama de manhã passou a ser uma tortura. A inquietação havia chegado. O prato de filé com fritas passou a ter sabor de papelão molhado. Simplesmente estava seguindo protocolos, fazendo algo de maneira mecânica, usando meu córtex cerebral para pensar em outra coisa. Pô, uma área nobre destas dentro da minha cachola não poderia estar sendo subutilizada da forma como estava. Eu tinha que partir para outra. Decisão fácil? Nem pensar! O que os outros iriam dizer? Que direito eu tinha de não estar sentindo-me feliz tendo tudo aquilo que qualquer outra pessoa sonharia? Eu era um mal-agradecido, isto sim! Ganhara tudo de mão beijada e agora estava desdenhando. Só que não, né?
Bem pelo contrário. Só há verdades no que escrevi. Tudo aquilo havia vindo de maneira natural. Eu havia sido convidado para participar de uma equipe. Era um grupo de pesquisa com muito prestígio, então, a bolsa veio logo em seguida. Eu só tinha que seguir as regras e ser feliz. Minha vida acadêmica estava toda traçada. Por outrem! Minha crise de identidade veio por um sentimento de estar fazendo algo que outra pessoa havia pensado e decidido por mim. Eu não me sentia dono de nada, embora estivesse indo bem. Eu queria ter algo meu, que eu tivesse feito, que tivesse a minha cara, as minhas qualidade e os meus erros. Egocêntrico o moço, não? Sim, totalmente. Meu ego não cabe dentro de mim, é um defeito absurdo que eu tenho e que demorei longos anos para domar de maneira a conseguir conviver com pessoas e ser visto como alguém até agradável (de costas, no escuro e com a boca fechada).
Auto-reflexão. Outro termo bonito que todo mundo usa e pouca gente põe em prática. Conhece-te a ti mesmo, Sócrates já ensinava. Nada é mais difícil e assustador do que isso. E nada mais necessário quando a crise de identidade se instala e só há duas alternativas: ou você resolve e descobre o que quer de verdade ou fica infeliz o resto da vida, seja por continuar com o que desagrada seja por desistir de tudo. Como sou egocêntrico e teimoso ao mesmo tempo (em remissão destes dois defeitos, “só por hoje…”), decidi que ia resolver meu problema e ser feliz. Não era a Biologia que me desagradava, era o que eu estava fazendo dentro desta área tão ampla. Como que eu, do alto da arrogância que só uma pessoa de 21 anos tem, poderia ter a resposta da vida, do universo e tudo o mais? Pois é, não era aquele número mágico que perfazia o dobro da minha idade na época, logo saquei. Existia muito mais e eu só poderia descobrir botando a mão na massa.
Ofereci meus serviços para todos os colegas que trabalhavam com outras coisas e que sempre precisavam de mão-de-obra barata. Topei ajudar um grande amigo que trabalhava com zoologia a revisar armadilhas de queda. Sim, tonéis enfiados em buracos no chão onde cobras, lagartos, aranhas, sapos, e tudo o que você possa imaginar de animais caiam (Hobbits, nunca encontramos). Íamos para o campo todo sábado de tarde. Uma longa caminhada até chegar, horas e horas de trabalho no local e uma longa caminhada de volta. Sem ganhar nada, exceto algumas bergamotas (porque sim, sou gaúcho!) que conseguíamos colher no percurso. Má vontade? Nem pensar! Acordava na segunda-feira já empolgado esperando chegar o sábado para ir revisar as armadilhas novamente. Eu estava com aquele brilho no olho de novo, aquela inquietação positiva de ter algo com o que me ocupar, pelo que gastar energia. Saí do laboratório de bioquímica onde estava. Faltavam seis meses para terminar minha bolsa. Dinheiro pesava? Sim, mas abri mão da grana sem pestanejar. Fazia falta? Óbvio, duzentos contos na mão de um moleque eram como encontrar o navio do Willy Caolho, embora churrasco, cerveja, balada e cinema não necessariamente fossem coisas vitais. E aí, aconteceu.
Ao ver que eu tinha uma grande facilidade para lembrar os nomes científicos das espécies depois de ouvi-los apenas uma vez, meu colega de campo comentou: “Por que você não trabalha com taxonomia? Com esta memória, vai ser fácil”. Uma única frase, despretensiosa e fortuita. Bingo! Serendipidade. Auto-reflexão. Inquietação para buscar algo com o que me ocupar. Minha crise de identidade evanesceu como lágrimas na chuva. Eu já sabia o que fazer na segunda-feira seguinte. Iria levantar da cama empolgado novamente para buscar alguém a fim de me orientar na minha recém descoberta paixão: taxonomia, a nobre arte de dar nome para as coisas. Consegui uma professora com tempo livre que aceitou orientar-me no TCC com taxonomia de plantas. Terminei a graduação, passei no mestrado, fiz doutorado, estágio no New York Botanical Garden, trabalhei como técnico de laboratório, consultor ambiental e hoje ocupo uma vaga de professor adjunto na mesma universidade onde tudo começou.
Minha trajetória para virar um cientista me ensinou que fazer da ciência uma profissão não é algo glamoroso, não é algo iluminado, não coloca ninguém em um patamar superior. Ser cientista foi, no meu caso pelo menos, uma forma de domar meus defeitos de caráter, uma forma de tirar alguma ordem do caos absoluto que reina dentro a minha abóbada craniana. A forma que eu encontrei para fazer isso foi trabalhando com a nomenclatura das plantas. Encontrar o nome das plantas já descritas. Batizar aquelas ainda anônimas, muitas delas encontradas sem querer. Por serendipidade. Por eu ser um inquieto que está sempre indo atrás de algo com o que me ocupar. Resolvendo a identidade de organismos vivos até então não conhecidos e não nomeados, muitos já em crise existencial, à beira da extinção.