A oportunidade de escrever um texto sobre minha carreira acadêmica veio em um momento de transição na minha vida: de achar que eu talvez pudesse me dar bem com a vida acadêmica para ter quase 100% do meu tempo tomado por atividades de pesquisa — e estar ativamente buscando por mais.

Fica o aviso, portanto, que este depoimento terá uma função quase terapêutica para mim. Um segundo aviso fundamental é que não espero de forma alguma passar com esse texto um teor meritocrático, ‘acredite nos seus sonhos’ ou qualquer coisa semelhante. Narrarei aqui única e exclusivamente a minha trajetória até esse momento, para a qual o apoio de família, amigos e iniciativas como o Deviante foi e continuará sendo fundamental. Dito isso, espero que possa de alguma forma contribuir também com as reflexões e decisões de carreira de quem quer que esteja lendo.

Um pouco de contexto. No momento em que escrevo, estou nos primeiros meses de um mestrado por pesquisa (MRes – Masters By Research) na Universidade de Glasgow, Escócia. O meu programa chama-se Creativity, Inclusivity and the Virtual (‘criatividade, inclusividade e o virtual’), e meu tópico de pesquisa atual são shows musicais que ocorrem dentro de videogames online.

Mais especificamente, estou buscando entender de que formas esses eventos virtuais podem ser mais (ou menos) inclusivos em relação a eventos musicais presenciais. Parece estranhamente específico, certo? E não vou negar: de fato é. No entanto, o fato é que esses eventos existem, estão em franca ascensão, e afetam milhões de pessoas — o que torna um olhar acadêmico sobre eles extremamente importante.

Inclusive, eu diria que a habilidade de olhar atentamente para fenômenos que passam como desimportantes ou específicos demais para a maioria das pessoas talvez seja um dos meus ganhos acadêmicos mais valiosos até esse ponto. Portanto, vale a pena voltarmos um pouco para entender como foi minha trajetória até aqui. 

 

O início: bacharelados e frustrações

Eu considero que comecei a existir academicamente em 2011, aos 21 anos de idade, quando entrei na faculdade para estudar música popular. Antes, eu havia tido uma passagem extremamente frustrante (e incompleta) pela faculdade de jornalismo.

A história por trás disso é comum a muita gente. Eu sempre fui envolvido com música e com escrita. E na hora de prestar vestibular, por mais que a paixão por fazer arte falasse mais alto, o incentivo familiar naturalmente pendia em direção a tentar usar minhas aptidões em uma carreira que tivesse maiores chances de consolidação e formalização (para deixar claro, isso foi antes do surgimento da palavra ‘uberização’). E, assim, entrei na faculdade de comunicação pensando que talvez me tornar um jornalista musical pudesse satisfazer minhas necessidades materiais ao mesmo tempo em que me permitiria o envolvimento com o centro absoluto das minhas atenções.  

Essa aventura durou pouco mais que dois anos, e para não dizer que foi inútil, digo que foi ótima para me ajudar a enxergar que aquilo não fazia o menor sentido para mim. Ainda como estudante de jornalismo, eu consegui meu primeiro emprego… como professor de música. Tomei, então, a decisão de trocar de curso, o que deu início a alguns dos anos mais trabalhosos — porém mais satisfatórios — da minha vida.

A faculdade de música me deu um senso de propósito, e foi a primeira vez na vida em que senti que minhas aptidões estavam sendo utilizadas quase que em sua plenitude. ‘Quase’, pois a formação que tive foi extremamente focada na prática musical, e aos poucos comecei a sentir falta de uma carga mais crítica. Estudávamos técnicas para tocar, técnicas para compor, técnicas para improvisar, técnicas para arranjar… Naquele ambiente, pouco se refletia sobre o significado histórico ou social de qualquer daquelas coisas, e matérias dedicadas a isso — como História da Música Brasileira, por exemplo — eram claramente menosprezadas por alunos, mas também em certa medida pela própria instituição. 

Eu adquiri uma noção mais clara de que era diferente da maioria dos meus colegas quando cheguei ao TCC, em 2015. Enquanto a maioria via aquilo como um obstáculo doloroso na trajetória de prática musical, para mim a ideia de pesquisar a fundo um tema do meu interesse — e escrever freneticamente sobre aquilo, diga-se de passagem — era nada menos que empolgante.

Eu abracei esse projeto com todas as minhas forças, escrevi uma dissertação de 100 páginas (o que, para ser justo, deveu-se mais à falta de edição do que a qualquer outro fator) e conquistei a boa vontade do meu orientador, que passou a ativamente me incentivar a buscar uma carreira acadêmica. E um outro processo começou a se formar a partir de então. 

 

O Reino Unido surge no mapa

Foi durante o TCC que descobri que o Reino Unido era um centro de referência para estudos acadêmicos voltados à música pop. Enquanto a Europa continental historicamente exportou a tradição da música erudita que permeia boa parte dos cursos universitários de música até hoje, os Estados Unidos responderam a isso elevando o Jazz à categoria de ‘música academicamente relevante’ a partir de meados do Século XX.

E, em décadas recentes, o Reino Unido (por motivos que eu não entendo totalmente, mas desconfio se dever em grande parte à influência colossal dos Beatles) se tornou um celeiro de produção acadêmica voltada à música popular como um todo, inclusive promovendo interseções com outros campos, como história, sociologia e economia.

Eu tomei conhecimento disso quando fui buscar referências bibliográficas para o meu TCC, o que automaticamente despertou uma curiosidade e um desejo: a maioria esmagadora dos autores que estavam escrevendo seriamente sobre os gêneros e fenômenos musicais de meu interesse estavam no Reino Unido, o que me fez transformar o país no norte da minha bússola acadêmica. Ao final do TCC, estava decidido a buscar um mestrado, e a fazê-lo no Reino Unido.  

Logo, no entanto, me deparei com o fato de que o Reino Unido é um dos países mais caros do mundo, e que uma mudança para cá estava muito além das minhas capacidades financeiras de músico recém-formado. Não só isso, mas minha companheira (na época namorada) não demonstrava o menor interesse em sair do país, e eu não tinha o menor interesse em fazê-lo sem ela.

Isso esfriou meus ânimos, e aos poucos me fez perder o foco na trajetória acadêmica. Comecei a trabalhar como produtor musical e voltei a dar aulas, com o objetivo de conquistar coisas muito mais palpáveis no dia a dia: sobrevivência e um mínimo de estrutura material. A inquietação acadêmica, no entanto, nunca me abandonou por completo.  

 

Inquietações acadêmicas

Em minha trajetória, comecei a perceber o quanto o conhecimento musical é muito frequentemente vendido como algo para poucos, quase sobrenatural, o que passou a me incomodar profundamente. Assim, como professor, eu gradualmente desenvolvi uma paixão por ajudar pessoas a entenderem conceitos musicais que são (erroneamente) tratados como abstratos ou complexos demais para o ser humano médio entender. Por outro lado, comecei a me incomodar também com o tanto de desinformação musical que circula comumente, e que frequentemente leva pessoas a formarem conceitos distorcidos sobre sua própria cultura: coisas que você certamente já ouviu, como ‘baterista não é músico’, ‘funk não é música’, ‘ouvir Mozart te deixa automaticamente mais inteligente’, entre outros.

Esse conjunto de inquietações me levou a criar o canal @oqueemusica-victorcamilo7488">O Que É Música? em 2017, o que logo me permitiu iniciar essa longa parceria com o Deviante e o SciCast (graças à mediação do meu grande amigo @EricAdan">Eric Adan). Eu passei a me enxergar (ao menos nas horas vagas) como um divulgador científico musical. E olhando em retrospecto, esse talvez tenha sido o meu primeiro passo decisivo para eventualmente voltar à academia.  

Ainda assim, simplesmente voltar a estudar é um passo nem um pouco simples quando se é um adulto tentando sobreviver. Especialmente quando isso envolve uma mudança internacional. Por isso, ao longo de anos eu continuei trabalhando nas minhas atividades-padrão e tendo a divulgação científica como meu máximo de envolvimento com algo próximo da academia. Nesse meio tempo, flertei diversas vezes com tentativas de iniciar uma pós-graduação no Brasil, mas sempre sem sucesso. Vezes por já estar me sentindo muito distanciado desse universo, vezes por não me identificar com os programas oferecidos, vezes por puro e completo caos das instituições (o que é assunto para outro texto). 

O ponto de virada veio em 2020. Minha companheira começou a manifestar interesse em sair do Brasil, algo inédito até então. E depois de alguns anos no mercado de trabalho, nós já tínhamos condições bem melhores para mudar se fosse necessário. Transformamos isso em um projeto familiar, o que foi absolutamente decisivo. Cogitamos vir para a Escócia, pois já tínhamos algum histórico com o país, e depois de um pouco de pesquisa descobri um programa de pós-graduação chamado MSc Music Industries, na Universidade de Glasgow. Todos os fatores se alinharam, e finalmente embarcamos em 2021. 

 

Enfim pós-graduando

Um ponto importante sobre a progressão acadêmica no Reino Unido é que ela é um pouco diferente do que temos no Brasil. Aqui, eu nunca tive o contato com o conceito de ‘lato sensu’ e ‘stricto sensu’: em vez disso, fala-se de Post Graduate Taught (pós-graduação ensinada) e Post Graduate by Research (pós-graduação por pesquisa).

Cursos PGT funcionam de forma muito semelhante a pós-graduações lato sensu no Brasil, no sentido de que envolvem muitas aulas, muito trabalho prático, uma carga relativamente baixa de trabalho independente, e dessa forma acabam ocupando um nicho importante na porta de entrada para o mundo acadêmico, ao mesmo tempo em que servem como cursos de especialização para aqueles sem nenhum interesse em ir mais além na academia.

A diferença é que um diploma PGT por aqui tem o status de um diploma de mestrado, e efetivamente o é. Por isso, ao menos nas artes e ciências humanas, são mais raros os casos de pessoas que se envolvem com PGR já no nível do mestrado: a trajetória mais comum é passar direto de PGT para fazer pesquisa em nível doutoral. E só estou fazendo questão de expor tudo isso pois meu caso é um pouco sui generis.  

O curso que vim fazer inicialmente aqui, MSc Music Industries, se encaixa na categoria PGT, e isso era perfeito para os meus objetivos então. Por já estar formado e fora da academia há mais de cinco anos, eu me sentia um pouco alienado desse universo. E ao mesmo tempo em que cogitava vagamente a possibilidade de uma carreira acadêmica, não sabia se iniciar essa busca faria sentido para mim nesse ponto da vida.

O meu mestrado foi, então, uma forma de testar, abrir portas, experimentar um contato maior com pesquisadores, ao mesmo tempo em que adquiria algo que seria valioso caso optasse por não continuar na academia. No entanto, foram necessários poucos meses para que eu percebesse que continuar na academia seria o cenário ideal para mim. Por mais que a carga de pesquisa nesse curso fosse muito básica e superficial, foi o suficiente para criar em mim um sentimento de identificação e pertencimento. Fiquei decidido, então, a buscar um doutorado. 

Dois problemas surgiram. Primeiro: pagar por um doutorado como estudante internacional no Reino Unido é financeiramente devastador, para dizer o mínimo. Por isso, desde o momento em que tomei essa decisão, decidi também tratar o avanço para PGR como uma busca por trabalho: eu só faria se fosse pago por isso. E felizmente, apesar de ainda estar muito longe do ideal, o Reino Unido leva a sério seus pesquisadores, com centenas de milhões de libras investidas anualmente somente para bolsas em artes e ciências humanas. Só o que eu precisaria fazer seria conseguir uma dessas bolsas, certo? Eis aí o segundo problema: além de serem (como esperado) extremamente disputadas, a janela de concorrência só é aberta uma vez por ano, e eu tomei essa decisão quando a janela para o ano seguinte já havia fechado. 

Foi nesse ponto que minha trajetória começou a se desviar um pouco do comum. Eu passei a cogitar o que faria entre o fim do meu mestrado e a próxima janela de concorrência. Afinal, o que justificava minha permanência no Reino Unido até então era o status de estudante. Mais importante, passei também a considerar o que poderia fazer para maximizar minhas chances de conseguir vencer a concorrência quando o momento chegasse. Foi quando, nos últimos meses do meu mestrado PGT, a universidade anunciou uma bolsa para um mestrado PGR, com uma única vaga. Por um ano, eles pagariam alguém para desenvolver um tópico de pesquisa sobre a intersecção entre economias criativas, inclusão e tecnologias virtuais.

Eu enxerguei essa oportunidade como minha tábua de salvação: por mais que significasse fazer um mestrado depois do outro, ela fazia perfeito sentido na minha vida, e significaria ganhar condições muito mais favoráveis para concorrer por uma bolsa de doutorado. Então, passei a me questionar que tipo de pesquisa eu poderia desenvolver, com os recursos adquiridos até então, que se encaixasse no escopo pedido. Foi nesse momento que comecei a me aprofundar mais e mais no tópico dos shows musicais dentro de videogames. E deu certo: aqui estou. 

Nesse momento, estou me aproximando da metade desse ano de pesquisa, e decidido a levar esse tópico adiante em minha carreira acadêmica. Dessa vez, eu não perdi a janela de concorrência, e submeti meu projeto de doutorado para a banca examinadora há poucos dias. Estou em um momento de mistura de empolgação, ansiedade, expectativa e, claro, bastante medo. Escrever isso, portanto, foi uma oportunidade de refletir sobre o caminho que me trouxe até aqui, e espero sinceramente que possa ajudar outros a refletirem sobre suas próprias trajetórias acadêmicas, estejam elas já iniciadas ou não.